no segundo capítulo da noite na pequena londres o narrador antigo falou do ambiente da firma com uma propriedade enorme, sabendo tudo o que acontecia, ameaçando destemido as perversões que ocorriam naquele lugar, não é mesmo? óbvio: isso nem sempre foi assim. aos dezoito anos eu comecei a trabalhar nesse ambiente, com aquele coração destruído, com aquela mente caótica, afastado de Deus e me relacionando com certo grau de intimidade apenas com pessoas de internet.
o primeiro caso estranho de firma que ocorreu comigo foi ainda enquanto estagiário. entrei para trabalhar junto com uma caloura minha, ambos em seu primeiro trabalho, ambos com a mesma idade e, aparentemente, me saí muito bem. não se passou muito tempo até começar a ajudá-la ali. também fomos construindo uma amizade ingênua, ao menos da minha parte, até porque ou ela já namorava quando nos conhecemos ali ou estava próxima de namorar alguém que eu conhecia e eu de qualquer forma não tinha interesse nenhum em me envolver com alguém que trabalhava ao meu lado. aliás, eu não tinha interesse nenhum em me envolver com alguém.
era engraçado porque eu tinha dezoito e, como eu disse, não havia diferença entre homem e mulher pra mim com dezoito, existia uma barreira muito óbvia entre amizade e namoro como se existissem dois tipos de meninas, as amigas e as namoradas. quando você conhece uma que é amiga ela é sua amiga pra sempre e quando conhece uma que é namorada você não construirá amizade nenhuma e sim dará em cima dela até ela se tornar sua namorada, era uma maneira de ver as coisas que jamais me permitiria ter uma namorada a não ser que alguém me estuprasse ou que eu estuprasse alguém e combinando os seguintes fatores, 1. todas as pessoas do mundo precisam se relacionar com alguém e 2. eu era incapaz de estuprar alguém (graças a Deus, né?), sobrou só alguém tentar me estuprar. (disclaimer de 2024: eu até pensei em como colocaria de outra forma mas... eu acho que a gravidade era essa mesmo)
não, calma! eu misturei as histórias. não é que essa menina tentou isso, tudo bem? ela não tentou nada. o ápice da nossa história foi um dia onde ela terminou com o namorado por telefone, após dias assustadores onde ela chegava atrasada no trabalho ou se ausentava por horas e todos sabíamos que era para brigar com ele no telefone, em uma história que eu graças a Deus não me envolvi porque ela nunca abriu a boca pra falar sobre ele comigo e eu também não estava interessado em conversar desse tipo de assunto com ela. era suficiente falar do cansaço do trabalho, deixá-la expor suas dificuldades e ajudá-la em alguns dos seus problemas tanto do trabalho quanto da faculdade, eu tinha criado barreiras emocionais não só com ela mas com todas as pessoas do mundo e ela percebia isso. o dia que ela terminou com ele, no entanto, seus sentimentos fizeram com que ela expusesse a mim toda sua sensação de abandono, tristeza e eu senti um aperto no peito, aquela fisgadinha. ela era uma japonesa bonita, embora bastante menininha ainda, se arrumava bastante bem porque gostava de concorrer naqueles concursos de modelo dessas famílias japonesas que tem na pequena londres. mas o meu aperto no peito não foi de vontade de pegá-la em meus braços e beijá-la, como num romance, nem de compaixão embora isso tivesse vindo junto também, o meu aperto foi um alerta vermelho do meu coração que lembrava da Carinha de Anjo expondo seus traumas com o namorado para me defraudar. ela se jogou em mim e tudo o que fiz foi, meio travado, segurá-la e dizer que “é complicado mesmo” até chegar o ponto onde ela desceria do ônibus.
não me recordo se tudo permaneceu normal depois disso, acho que sim. não muito tempo depois eles voltaram. e alguns meses depois ela desapareceu da minha vida como pessoa ativa, ela voltou a ser apenas minha caloura da faculdade, eu resolvi ficar e me tornar funcionário efetivo da empresa e ela foi trabalhar em outro lugar.
nessa época eu fui razoavelmente afim de duas moças do mesmo departamento na empresa.
uma era uma menina muito maluca, tão doida quanto eu, que me lembrava um pouco as pessoas da internet. ela era baixinha, tinha cabelo curtinho, um piercing daqueles que eram só a pedrinha no nariz e se vestia como uma menininha indie muito provavelmente porque ela era uma menininha indie. ela às vezes esquecia até o nome dela. eu não fui nada apaixonado mas posso dizer que uma vez fiquei bebendo água por uns dez minutos na frente do departamento para observá-la e, mesmo que tenha passado pelo pior aperto da minha vida no ônibus ao ir embora porque esqueci que dez minutos de água me causariam essa vontade absurda de ir ao banheiro, valeu muito a pena.
a outra era uma japonesa da minha idade que era uma baixinha brava com corpão. ela se vestia como femme fatale mesmo e não preciso dizer como isso era complicado de lidar pra mim, preciso? felizmente, um fato que veio para aliviar minha sanidade foi descobrir que ela era casada entre as conversas com o pessoal da empresa. ufa, casada! eu tinha argumentos o suficiente para passar longe de ter interesse por aquela mulher, não precisaria nem pensar nisso, uma gatinha a menos para eu me preocupar. era estranho porque ela não tinha aliança, ou tinha? acho que não tinha. mas ela inaugurou o período que mais me trouxe uma depressão sobre o sexo feminino: ela ser casada era um empecilho para eu me interessar por ela, mas quem disse que era empecilho para ela se interessar por mim?
não, não, não. graças a Deus acho que ela não era interessada em mim, estou falando em terceira pessoa. descobri coisas não só a respeito dela mas de muitas pessoas: fui descobrindo que não importava muito que essas pessoas estivessem casadas, elas tinham uma vida extraconjugal na empresa, como se a empresa fosse um mundo diferente com suas próprias regras e nada do que ocorresse lá fora valesse ali dentro. isso me chocou muito porque eu era um garoto que via nas pessoas a vontade de fazer o mal e, se elas enchessem meu saco, eu jogaria isso na cara delas e as deixaria traumatizadas, eu nunca tinha visto um ambiente onde isso ocorria como se fosse festa e ninguém estava nem aí. antes de ver uma coisa dessas você não é maduro mentalmente, a única maneira de amadurecer mentalmente é descobrindo o verdadeiro caos que é o mundo e não se perdendo dentro dele, ou quem sabe até se perdendo desde que esteja consciente das possíveis conseqüências. a firma é um ambiente de pessoas torcendo para nunca serem descobertas por seus cônjuges ou, no caso de pessoas com mais habilidades relacionais, elaborando maneiras de fazer o cônjuge aceitar essa condição de ser traído de vez em quando através de chantagem intelectual ou emocional (só quem mora na terra onde é produzido sabe que o Sertanejo Universitário é um culto a isso), um tempinho de intervalo livre e um espaço vazio sobrando basta para duas pessoas combinarem uma transa rápida e descerem a ripa.
ver essas engrenagens da realidade em movimento me deprimiu muito. muito, muito mesmo. eu comecei a me sentir um alienígena, eu finalmente me senti um santo mesmo com tanta corrupção dentro de mim mas isso não era agradável, se o que eu tinha dentro de mim era santidade eu tinha medo do que era o mundo de fato. e eu deveria ter, eu não sabia o que estava me aguardando. eu não fazia a menor idéia do que estava me aguardando.