aos dezenove, trabalhando como funcionário, eu fui vítima secundária da Rainha das Estrelas. secundária porque, não importava o que as mulheres fizessem, eu não abriria mão do meu propósito de selar o meu mundo pervertido dentro de mim, eu não iria para a cama com nenhuma delas. sobretudo porque aos dezenove eu não odiava mais Deus e tinha acabado de desistir de tentar suicídio, tinha acabado de entrar nessa depressão violentíssima onde me refugiei no meu quarto construindo um relacionamento com ele. ele me salvou, ele espancou o anjo da morte no dia em que minha vida acabaria e disse que cuidaria de mim, eu faria minha parte, eu preservaria minha virgindade mesmo tendo minha sexualidade atacada diariamente. ela percebeu que nunca me possuiria a esse ponto então se conformou em fazer dessa forma, “vítima secundária”, bastava brincar. não precisava ir além disso. não precisava de sexo, não precisava sequer de um beijo meu, se ela conseguisse invadir os meus pensamentos estava ótimo e ela era tão boa nisso que conseguiria perceber a vitória na mesma hora.
a Rainha das Estrelas era uma mulher, sinto muito, não existe outra palavra para descrevê-la: gostosa. todo mundo a descreve assim, ela quer ser descrita assim. ela era do alto escalão da empresa, ela dava ordens às pessoas de muitos departamentos e, quando dava muitas ordens a uma pessoa em específico, acabaria tendo uma conversa descontraída com seu gerente onde ele falaria “vê lá, não vai acabar com o casamento dele, hein?” e ela só daria uma risadinha maldosa. ela era casada. ela deveria estar chegando nos seus quarenta anos.
e ela descobriu um garoto de dezenove anos depressivo e contido com uma sexualidade super-desenvolvida, quietinho, num cantinho obscuro do departamento de ti. acho que ela conseguiu ser pior do que a professora na qualidade do ataque, porque eu não me recordo de um dia sequer onde ela se aproximou de mim e o dia continuou normal. às vezes ela nem precisava se aproximar, bastava sentar do outro lado da sala e bater o salto algumas vezes no chão alto o suficiente para o som entrar na minha cabeça mesmo com fones de ouvido e eu olharia, perceberia que era ela, então ela colocaria aquele sorriso maligno de mulher possessiva no rosto e olharia dentro dos meus olhos, às vezes enquanto conversando com outras pessoas, às vezes passava a olhar para seus próprios pés e os batia de novo no chão para me ver reagindo. eu sei que ela fazia isso. na época endoidava e não entendia nada mas hoje sei, não só por ter tirado de outras mulheres que elas são capazes de fazer essas coisas, não só por conhecer as suas histórias ocultas mas porque, como disse em algum lugar, depois de algum tempo eu passei a fazer isso para ver se era tão poderoso quanto parecia e era. eu era capaz de enquadrar pessoas no meu ritmo, de fazê-las mexerem o corpo conforme meus sinais sendo elas capazes de perceber ou não e seriam tiques que elas não conseguiriam segurar até eu parar.
ela não falava muito comigo mas, quando falava, era absurdamente simpática. absurdamente mesmo. ela me dizia “oi” e abria um sorriso que mexia comigo. uma vez em uma festa alguém estava comentando sobre como eu era maluco e ela disse, não me recordo se na mesma frase como colocarei mas no mínimo em intervalos muito próximos de tempo, com aquela voz cantadinha e suave de mulher madura dela, “o que? mas um menino tão bonzinho?” “você é bem bonzinho, né? um menininho, dá vontade de levar pra casa”.
eu passei por temporadas e temporadas ali dentro. em algumas ela tinha mais tempo para ir até a sala onde eu ficava e sempre deixava um recadinho com alguma parte do corpo, em outras ela sumiria. depois de um tempo gente subordinada dela descobriu essas coisas minhas, não sei se através dela. uma moça também ao redor dos trinta anos que tinha problemas de auto-estima (ela se achava muito feia e todo mundo a chamava de feia. eu não a achava feia, não gostava de participar quando esse assunto chegava) e muita frustração no coração vinha tentar brincar comigo também mas era mais direta, não conseguia se controlar tanto. ela às vezes sentava do meu lado sem necessidade nenhuma de pedir algum serviço e pedia, me elogiava por ser bonzinho, me elogiava por trabalhar bem, me elogiava por ser fofinho e, é claro, quando sentia que era oportuno, dava umas mexidas no meu cabelo ou mesmo tentava operar os truques da Rainha das Estrelas apesar de não ter a mesma qualidade. às vezes íamos embora juntos com mais algumas pessoas e numa dessas, certo dia, ela alcançou meu ouvido e me perguntou quando eu iria até a cama dela conhecer suas algemas porque elas andavam bem solitárias. não pareceu “ter maldade” como deve ocorrer nos filmes pornôs (eu nunca assisti um filme, filme mesmo, pornô, mas por favor não me considerem santo. é que eu nunca precisei assistir um filme pornô), pareceu ter sido em tom de piada porque todo mundo diz essas coisas em tom de piada para quem ainda está na etapa de tentar fisgar, mas eu já tinha sentido aquele tipo de perversão nela faz tempo e outras pessoas já tinham passado por ali, a cama dela tinha mesmo aquelas algemas.
essa, ao menos, era solteira. ela morava sozinha, pertencia a uma família de irmãs que ela odiava, as pessoas da empresa não gostavam muito dela então eu era uma exceção. ela era mesmo muito solitária e, mascarando-os através de histórias e piadas como eu mesmo sempre fiz, ela me contou muitos dos seus sentimentos e eu deixei muitas mensagens de esperança a ela, mesmo sendo tão depressivo. no meio desse verdadeiro circo sexual eu estava me relacionando apenas com Deus, minha existência estava voltando a ter sentido, meu espírito estava sendo reaceso. eu muitas vezes dormia chorando e acordava chorando mas saber que eram só lágrimas, que eu não estava me espancando, que eu não estava cogitando suicídio, deixava meu espírito tranquilo. ele conversava, manso, com a minha alma, falando “está doendo agora porque você está muito machucada mas vai passar, um dia vai passar”, e isso me deixava muito esperançoso. eu ainda não tinha felicidade para dar a ninguém mas já tinha essa esperança, e essa esperança foi o que deixei a ela.
o que tenho certeza que foi muito melhor que minhas impressões digitais nas suas algemas.
se querem saber, eu não guardo raiva nem mágoa dessa mulher nem das outras e nem da Rainha das Estrelas. não é fácil lidar com a minha imaginação a respeito delas, sobretudo porque se eu abrir brecha à Rainha ela fará de novo e eu já não tenho nada a perder nessa história e não preciso ter medo de assumir que meu corpo adora ser um brinquedo daquela mulher, mas a Rainha também não passa de uma mulher carente. todas essas pessoas são carentes. os homens são tristes e frustrados com seu casamento porque suas mulheres são um “inferno de mulher”, as mulheres são insatisfeitas com seus homens porque eles são afundados em pornografia e prostituição com outras mulheres, todo mundo sabe que é corno, não tem felicidade, não tem amor, não tem mais nada. apenas os filhos. a minha presença pode chocar as pessoas ou fazê-las acreditar que sou um verdadeiro otário, depende do dia e do humor delas, porque estou resistindo a algo que não deveria por um propósito maior.
a Rainha não estava só me provocando ao me chamar de menino bonzinho, é que… nessa intimidade doentia dos nossos corpos ela percebeu que estava me possuindo, me dominando, que eu não tinha “a pontinha de vontade de estraçalhar ela” porque se tivesse eu teria feito. ela não via um homem flertando com ela, ela via uma menininha resistindo ao desejo rangendo os dentes e tentando desviar o olhar de todas as formas, saindo da sala para tomar uma água quando conseguia, o que provavelmente multiplicava o desejo dela por mim porque isso é delicioso para uma mulher que quer sensação de poder mas, que o multiplicasse por um milhão, eu não seria dela. tinha algo de errado comigo, eu não estava gostando, estava sentindo prazer mas meu coração estava indo na direção contrária. eu era um menino bonzinho. ela queria que seu marido fosse um menino bonzinho também, fosse alguém que resistisse às outras mulheres, eu não sei se no seu grau de destruição do casamento ela se importava com o fato de que o marido dela caía na armadilha de outras mulheres ou o simples fato de não partir pra cima bastaria para ela se sentir agradada. o marido dela também não deveria ser uma pessoa muito feliz porque, se ela sabia fazer aquilo com um salto para me prender, imagina o que ela não sabia fazer com aquele salto para arrebentar o seu marido, né?
é estranho que eu tenha entrado em contato com essas feridas profundas do casamento das pessoas. não posso dizer que meu pecado é um chamado, mas não tem como eu não ficar atento a ter nascido debaixo de um casamento caótico que terminaria em divórcio, ter visto esse casamento ser restaurado por um milagre de Deus, ter visto meus pais se tornarem conselheiros e restauradores de casais no quintal da minha casa e ter vivido pessoalmente tudo isso e mais tantas outras coisas que ainda contarei.
a Rainha das Estrelas se divorciou enquanto eu estava ausente e, quando voltei alguns anos depois, ela estava muito mais ambígua com as pessoas num geral, mas o seu sorriso e o seu “oi” ficaram um pouco mais leves e sinceros pra mim. eu sou uma pessoa mais madura, mais esperta e… mais intensa agora. estou em posição de vantagem e ela percebeu isso, ela já sabe que eu rio ao invés de ficar em choque quando ela aparece em situações e poses que não são normais, ela já sabe que quando bate o salto no chão eu mudo a personalidade e dou uma piscada que é pra ela entender que ela é gatinha e meu corpo ainda sente tudo aquilo mas já não estou mais em situação de dominado. já sei que ela é quem está vítima de desejo e é ela quem depende da minha boa vontade para eu não chegar, fazer uma mulher de quarenta que jamais atrairia um novinho de vinte-e-três com toda a carga de paixão juvenil que um novinho de vinte-e-três pode oferecer aliada com a sexualidade que a diverte satisfazer esse desejo uma vez e torná-la refém disso por um bom tempo, me buscando pelos cantos da empresa e até ligando em casa para ser atendida pela mamãe que é mais nova que ela falando “oi, quem é você?”.
como é o fim de toda Rainha das Estrelas ao chegar aos cinqüenta anos.
e, se às vezes meu ego quer brincar com ela nessa nova situação, a verdade é que eu fico triste. fico triste vendo ela, uma senhora de seus quarenta anos, ficando inquieta e cheia de desejo de brincar comigo como se eu fosse seu brinquedo favorito da coleção, sabendo que não sou uma pessoa de também quarenta anos que dá conta de uma vida fragilizada como a dela, que uma vez que passasse a mão em sua cabeça e a encostasse no meu peito (o que senti vontade e não tenho vergonha alguma de assumir, não existe homem que não sinta isso ao se sensibilizar com uma mulher) eu teria uma maluca monitorando os meus passos, me trancando em seu quarto (talvez literalmente) para que eu não entrasse em contato com ninguém do sexo feminino, dando um jeito de mandar embora o máximo de mulheres da empresa por minha causa. não tem a ver com eu ser um homem excepcional, eu não sou, é só que isso é mais normal do que o leitor imagina, é só que eu conheço essa história. é só a manifestação do débito relacional de uma divorciada de quarenta anos com relação a um menino superdotado virgem de vinte-e-três.
caso não saibam, caso nunca tenham sido líderes ou chefes de uma empresa, muitas menininhas bonitinhas não são mandadas embora por conta do machismo e da competitividade dos chefes homens mas pelo ciúme doentio das chefes mulheres com relação a algum amante. eu mesmo já ouvi pelos corredores “essa aí não vai durar muito tempo, está na mira da Rainha” e sabia que da sexta-feira ela não passaria. embora sim, há machismo. há chefe comendo estagiária e a mandando embora pra não se complicar, há chefe contratando funcionária só pra pegar, há tudo isso. a firma é o ambiente mais frustrante que já conheci na minha vida em todos os sentidos. se isso está te deixando triste tente imaginar como eu me senti triste aos dezoito anos, com a minha cabeça super-prejudicada, isolada e suicida, leitor. eu estou contando a você essa história, em um relacionamento de leitor e escritor, nós estamos juntos nisso… eu, no entanto, quando vivi isso, vivi completamente sozinho, cheio de incertezas, cheio de me perguntar “isso está mesmo acontecendo na minha frente ou é só impressão minha?”, cheio de ficar me questionando se aquilo existia como um dilema moral desestruturador para chegar alguém e puxar assunto “hahaha viu aquela moça que foi mandada embora? essa aí eu ouvi falar que gostava de prender o cara num canto pra ele chamar ela de puta, de biscate, de tudo quanto é coisa e depois pagar um boquetão nervoso” como se fosse a coisa mais natural do mundo. e era.
do mundo.
com relação a ela, à Rainha das Estrelas, eu queria que ela encontrasse alguém que a divertisse novamente sem machucá-la tanto, alguém que não causasse nela tanta vontade de machucá-lo também, de vez em quando tudo bem mas não acredito que esse deva ser o sentimento predominante num relacionamento. estarem juntos se odiando é o modo padrão de grande parte dos casamentos no mundo, em especial os da firma, e eu nunca tive uma namorada muito menos fui casado para saber como funciona tudo isso mas tenho a impressão de que não precisa ser assim. na minha casa não é assim e eu sei que meus pais não estão escondendo de mim, se eles não conseguiam esconder quando eu tinha quatro anos imagine se esconderiam agora que tenho vinte-e-três. não quero um relacionamento como os da firma, só seria capaz de namorar uma menina de firma se ela fosse, também, muito estável numa igreja, do contrário eu prefiro evitar o nervoso.
entendeu melhor de onde veio tudo o que perfurou minha alma enquanto eu estava com a Miss Maldade? eu acho que não foi suficiente falar de brincadeirinhas para chamar atenção, acho que vocês não entenderam que quando o antigo narrador falou sobre não deixar os pensamentos tomarem conta de você quando uma mulher te convida para ver um strip-tease dela é porque o narrador estava dizendo que uma mulher, vinte anos mais velha que ele (não era a Rainha das Estrelas, era… outra rainha, de outras estrelas), o convidou e ele teve que recusar todo sem-jeito.