a primeira vez que me peguei partindo um coração foi aos vinte anos.
a vida não era muito simples naquele tempo, embora não fosse tão complicada na minha cabeça. aos dezessete precisei ver no céu a esperança pela primeira vez por precisar de esperança, por precisar do reencontro com o desenhista do céu e das estrelas. aos dezessete anos descobri ser uma estrela porque não suportava mais ser um corpo de carne e osso, aos dezessete anos descobri que, se fosse para continuar na terra, eu preferia honestamente morrer. foi o que fiz: tentar deixar de existir na terra por não acreditar no céu. não suporto a minha existência material, a quantidade de ácido sulfúrico que foi jogada na minha alma para corroê-la em cada fio desde a minha infância começou a surtir efeito aos dezesseis anos quando irracionalmente passei a me destruir das maneiras que descrevi no capítulo anterior e na sétima estrela cadente, passei meses examinando o meu propósito material na terra e só vi coisas horríveis e assustadoras com um fim ainda mais inaceitável e não quis fazer parte disso.
eu me odeio. quero que meu corpo morra o mais rápido possível, quanto mais eu vivo do meu espírito mais agraciado com a minha vida fico.
quando conheci a Primeira Vítima eu era um semeador compulsivo de amor porque me sentia feliz e deslumbrado desvendando uma vida espiritual que era novidade pra mim, mas a minha alma ainda era o mesmo bolinho de espinhos, a minha sensibilidade em alguns aspectos da vida continuava inexistente. não nos conhecemos tão aleatoriamente como o antigo narrador colocou no primeiro capítulo da noite na pequena londres, na verdade eu já era famoso pelo sabor do meu coração e ela precisava disso, ela não estava “no ponto de ônibus” à toa, ela sabia que eu daria amor, carinho e atenção e ela não suportou me ver por perto, pronto para suprir suas carências. eu não era um estranho para ela, ela era estranha para mim, ela era amiga de uma outra moça que já tinha usado da minha estrutura emocional algumas vezes e as meninas, como o ouvinte sabe, se conversam bastante.
isso é um fato revelador sobre a minha situação num geral: eu era uma prostituta emocional. salvaria a noite de quem precisasse desde que não tocassem no meu corpo. ofereceria toda a minha atenção e todas as palavras de amor e encorajamento que eu mesmo não era capaz de receber às outras pessoas e elas eram capazes de receber, elas recebiam, elas se tornavam dependentes e elas viriam dia-após-dia pedir por mais, até não precisarem mais ou quererem usar mais do que minhas palavras.
a maneira como eu e a Primeira Vítima “terminamos” foi com uma de minhas personalidades alternativas encerrando, cheia de ódio, quaisquer meios de nos conversarmos e escrevendo um pedido de desculpas sem nenhum arrependimento (se houvesse arrependimento seria um pedido de perdão, esse veio só anos depois da minha parte) de estar tomando de volta pra si a minha vida. “isso é maluquice!”. vendo hoje com maturidade e sinceridade percebo que isso foi, de uma maneira totalmente confusa, a maneira de eu dizer que estava cansado de oferecer o que podia e, não só isso, como ela queria que eu oferecesse coisas que eu não tinha o menor interesse em oferecer. ela queria a minha intimidade como eu tinha a dela mas em nenhum momento pedi pela sua intimidade, ela me entregou gratuitamente e eu não sabia que não deveria aceitar. eu não queria ser seu namoradinho fofinho, eu sequer acreditava ser capaz de ser um namorado e ainda estava tentando esquecer a Moça da Carta de Amor.
onde eu errei nisso tudo, meu ouvinte?
em dois pontos, um já exposto e o outro que será exposto agora. em primeiro lugar, como disse, não sabia que não deveria aceitar sua intimidade: na história passada apresentei um fato interessante sobre mim que é o de conhecer a intimidade triste de muitas pessoas, isso tem um efeito monstruoso sobre as minhas conversas porque não tenho sensibilidade recíproca, ouço as coisas como uma mãe ouvindo sua filha e não como um homem que vai suprir essa carência; você pode dizer, se for mais maldoso (eu sou então diria isso), que estou apenas suprindo a minha própria carência de ouvir carências já que essa é a minha maneira de viver a vida desde a infância. eu ouço problemas dos outros, conforto e consolo os outros, proponho com bastante amor e doçura uma solução para esses problemas quando sou solicitado e é o que estou acostumado a fazer, esse é o tipo de relação que sou acostumado a ter com as pessoas. os meus sentimentos nunca serviram para serem vividos, sempre serviram para serem usados. e eu, honestamente, me sinto feliz ao ser usado. nesse caso eu a deixei fantasiando que estava desejando suprir toda sua carência porque conseguia conversar sobre toda sua carência, estava interessado em sua carência mas, quando chegou a hora de supri-la (e isso era, obviamente, fazendo sexo), apenas virei as costas e fui embora.
ela foi apenas um projeto de engenharia emocional pra mim. um projeto que durou meses, que escapou do meu controle e, quando escapou, eu o abortei. isso é tão cruel, não é? eu não sabia que era, jamais conseguiria imaginar que as coisas eram da maneira que estou descrevendo agora porque o meu contexto emocional era assustador. a dor que ela sentiu quando fiz isso na verdade é a dor que sinto desde que existo, com a diferença de que foi uma pancada muito forte porque ela não estava acostumada a senti-la e eu, como disse no fim do capítulo anterior, acreditava piamente que a vida sentimental era só isso. eu nunca cogitei que alguém pudesse suprir quaisquer carências minhas.
em segundo lugar: nunca relacionei os fatos por ser incapaz de relacioná-los, mas sou uma pessoa perversa. como expliquei ao contar da historinha da palavra “violentada”, o meu vocabulário é pervertido. com excelência encontro, testo e uso duplos-sentidos nas conversas então toda e qualquer conversa comigo tem o efeito de ninguém saber se é séria ou não. isso, em conversas masculinas, apenas afeta minha credibilidade. isso, em conversas femininas, dependendo da menina, faz elas acreditarem que estou flertando constantemente. uma menina sensibilizada como a Primeira Vítima não poderia entender de outra forma, falar de “coração”, “amor”, sentimentos e outras coisas com a constância que falo e nunca deixar de instigar algo novo nas conversas a colocou num cenário fantasioso onde nós já estávamos juntos e ficaríamos juntos até que algo acontecesse ou até que a morte nos separasse.
foi tudo muito mais destrutivo do que pareceu no primeiro capítulo.
depois de mim a Primeira Vítima desistiu do seu sonho de fazer medicina e também de homens. ela constantemente manifestava homofobia comigo por acreditar que eu, uma pessoa religiosa, não gostava de homossexuais. o seu relacionamento posterior foi seu primeiro relacionamento homoafetivo.