Bem, se encerramos a história com a Bem-te-vi, teremos de recapitular um pouco de tudo para que eu possa contar com mais detalhes algumas cenas que passaram despercebidas.
Talvez eu tenha contado que, em algum momento dessa história, passei a servir no culto de idosos da igreja e vi uma garota mestiça tocando teclado e permanecendo no culto depois.
Pra mim não era uma garotinha, era uma mulher de uns 30 e poucos anos, casada, com seu vestido de gente velha, sua rasteirinha confortável de gente velha e seu jeito discreto pouquíssimo correspondente à loucura juvenil chamativa de andar.(não me julguem por isso, todo mundo com 23 anos acha que a segunda metade dos 30 já é coisa de gente velha. Estou ali na boca dos 30 agora e sei que a juventude vai até os 50.)
Não conseguia parar de olhar para ela durante o culto, suas trocas de posições de braços, suas pernas mexendo, seu rosto... não tinha como.
Como devo ter dito, me senti muito mal. Não queria estar pensando em absolutamente ninguém e, quando estivesse preparado para pensar em alguém, gostaria que fosse a Bem-te-vi, porque ela foi legal comigo, foi ousada comigo (na medida do possível para garotas crentes), era bonita e tudo mais.
Felizmente, tudo se encerrou aí.Ou era o que eu achava.
A história com a Garota Japonesa foi uma das mais longas da minha vida, tão longas que não faz sentido eu contar só ela. Ela foi acontecendo enquanto outras histórias foram acontecendo, afinal, já estamos começando assim, já estamos começando com ela sendo uma aparição, quase como um fantasma, na história da Bem-te-vi. Pois é, era isso.
Não a vi mais desde então, era só uma mulher mais velha casada como qualquer outra da minha igreja. Gravei a imagem dela na minha cabeça porque não teria como não gravar, mas não fiz nada com relação a isso.
O final de ano se passou, as tragédias vieram, fiz todas as minhas besteiras com a Bem-te-vi, tomei uma dura da sua mãe, cortei todos os meios de interagir com ela porque tudo aquilo doía demais no meu coração e aí outro ano veio.
O ano onde eu não seria mais calouro no seminário da igreja, seria veterano. Quem seriam os calouros? Seriam pessoas que eu conhecia? Ou não? Só novidades?
Algo que não identifiquei é que eu estava no meu “auge” dentro da igreja e, veja só, não identifiquei porque não sabia que existia isso de “auge”. Até sabia que existiam as pessoas descoladas, famosas e influentes lá dentro mas nunca fui nada disso em nenhum momento da vida então não soube sequer identificar que estava me tornando essa pessoa, mas o critério é simples: eu conhecia toda a molecada ali e toda a molecada ali me conhecia.
Pouquíssimas pessoas da lista de calouros eram grandes novidades, eram gente que eu nunca tinha ao menos dito um “oi”, cumprimentado, enfim. Só sou péssimo com nomes, então até chegarem as aulas eu não sabia quem era quem. Até que vieram as aulas e, para minha completa surpresa, estava lá a Garota Japonesa.
A Garota Japonesa.
Julgando pela turma com quem ela andava, ela não parecia ser mais velha. Pelas roupas que ela estava usando, também não. As roupas de velha pareciam ser apenas pelo clima do culto de idosos, ali havia uma pessoa bem diferente. Andava um pouco mais deslocada, passos um pouco assustados.
Quem era ela? De onde vinha? O que fazia? E suas amigas, quem eram? Eu também não conhecia maioria delas. Também não estava com ânimo pra ficar fazendo amizade, me envolvendo e tudo mais, tudo o que fiz foi observar.
Apenas olhar.
Algo que é importante dizer aqui é que toda a história com a Bem-te-vi me expôs a uma dor dificílima de lidar, e já era difícil lidar com a dor da Miss Bondade, a da Foránea, a da Moça da Carta de Amor, a da Brunette, a da Carinha de Anjo, enfim, todas as dores. Todas aquelas dores que fiquei por anos regurgitando sem saber que eram dores, achando que eram só situações comuns da vida e que a vida seria assim pra sempre.
Senti muito ódio da Bem-te-vi e percebi que senti ódio, de uma maneira muito mais pura do que com a Miss Bondade. Acho que o episódio da Miss Bondade foi agoniante, fui colocado contra a parede com todos aqueles sentimentos que estava carregando há anos e eles simplesmente explodiram, mal consigo dizer que era eu mesmo fazendo aquelas coisas, derramando aquelas lágrimas, mas dessa vez foi um pouco diferente. Parece que, embora eu continuasse não sabendo lidar com o que estava sentindo, percebi bem cedo.
Meu corpo percebeu ainda mais cedo que eu, também. Tomarei o cuidado de não dizer que ela “correu atrás de mim algumas vezes”, só porque coincidentemente vi ela aparecendo na minha sala do seminário várias vezes sendo que ela nunca fazia isso. E se parece que estou indiretamente dizendo isso ao mencionar esse fato, é mentira: poderia ser qualquer coisa, afinal, ela acabou se relacionando com uma pessoa da sala ao lado.
O importante é que eu a via e sentia algo que não conseguia nomear, mas era frustrante, tinha gosto de chumbo na boca e causava um desconforto no estômago, ao mesmo tempo em que ainda a achava uma pessoa boa. Só queria distância, meu corpo tentava me afastar dela. Sempre que a víamos e nos cumprimentávamos algo acontecia dentro de mim que me causava um desespero para ficar longe.
Eu ficava triste. Pensava que, de alguma forma, poderia estar a magoando, mas era mais forte que eu. Eu já estava magoado. Não necessariamente porque ela não me correspondia, mas por ter sido ameaçado por sua mãe como se fosse um bandido, e era uma situação estranha que me acendia um alerta de que viveria a mesma história da Miss Bondade mais uma vez.
Era uma história que eu não queria viver mais. Estava cansado de me machucar com meninas que eu gostava, só queria algo que desse certo. Ao mesmo tempo já tinha desistido disso.
No meio de tudo isso, decidi que flertar não era crime. Isso foi absurdamente importante pra mim. Aprendi tudo errado sobre sexo, sobre sexualidade, conforme estava falando lá atrás sobre cultura de pureza. Só que foi doloroso.
Até então eu me sentia como uma vítima de um jogo de tabuleiro cruel, o jogo do sexo, onde maioria das pessoas estavam tentando me devorar e eu morria de medo delas, olhava para as meninas morrendo de medo de elas perceberem que eu estava olhando, estava sendo fraco, caindo na minha tentação, pecando, porque é claro que elas sentiriam nojo de mim, essa pessoa nojenta, com desejos nojentos, caídos, e algumas também poderiam rir de mim. É só ler as histórias, acho que em nenhuma delas consegui expressar tão claramente esse sentimento, mas está tudo lá. É como se o caminho ao sexo fosse um tombo moral.
Isso foi um problema pra mim quando decidi que flertar não era crime: o que aconteceu não foi que simplesmente aceitei que queria flertar, o que aceitei foi imaginar que era o vilão do tabuleiro e estava afim de destruir as pessoas também.
Eu era bastante bom em flertar, aparentemente. Conseguia olhar fixamente para uma mulher, devorá-la com os olhos, a minha cabeça soltava uma verdadeira boiada de desejos. Mas eu sentia um misto de ansiedade com ódio.
Ansiedade, porque: e se a mulher me retornasse o olhar? Continuaria sendo um frouxo que pararia de olhar, ou continuaria olhando? O que aconteceria? E se desse em algo, o que raios eu iria fazer?
Ódio porque aquilo era errado, mas tudo bem, eu era errado e estava assumindo isso pra mim mesmo. Não queria ser errado, queria ser uma pessoa capaz de um celibato, mas não era, infelizmente era pecador demais. Não conseguia fazer o que era correto, o que homens de verdade faziam (mais problemas da cultura de pureza), eu precisava flertar, ficar olhando e desejando uma mulher que nem um idiota.
É insano ler o que estou escrevendo, meu Deus! Mas era assim que eu pensava. E culpo pessoas por isso. Me disseram que sexo fora do casamento era pecado e que desejos sexuais fora do casamento eram tentações, depois ficaram tentando remendar explicando que “é ruim mas é normal porque é do homem”. Porra, eu era (sou?) cristão, não queria ser ruim, ninguém quer ser ruim.
Quem não conhece a doutrina da salvação pela graça não quer ser ruim para não ir pro inferno, e quem conhece a doutrina da salvação pela graça mas sempre adiciona o “mas” da doutrina da santificação visível pelas obras (sendo a obra aquele código moral religioso ridículo) não quer ser ruim para não sentir que está fracassando em se tornar parecido com “Jesus”. É uma sinuca de bico. Posso explicar mais depois, agora não.
Voltando, eu agora me sentia um vilão. Mandava aquele olhar desejoso para a menina e... o que acontecia? Vou contar o que acontecia.
Em um acampamento de seminaristas da igreja, notei a Garota Japonesa parada conversando com sua amiga e, bem, era a Garota Japonesa. Aquela garota esquisita por quem eu fui “tombado” um ano atrás, aquela garota esquisita que eu não conhecia e estava interessado porque ela era esquisita.
Comecei a observá-la atentamente. Sentei, cruzei as pernas, comecei a olhar, fiz rostos estranhos, coloquei a mão no queixo. Ela olhou pra mim, eu desviei o olhar e ri. Depois pensei que não precisava ter desviado o olhar e voltei a olhar. Aí ela olhou pra mim mais uma vez, e eu ficava entre desviar o olhar e continuar olhando fixamente. E sorrir, com um sorriso um pouco maldoso, não de alguém que estava feliz, mas de alguém que estava jogando um jogo de tabuleiro e só aceitaria ganhar ou perder.
Foi um grande momento, mas depois me senti um psicopata (esse “adjetivo” estava na moda na época), uma pessoa horrível, me perguntei por que estava fazendo isso, qual era a necessidade. Fiquei horrível mesmo. Depois me levantei dizendo “Bom, eu sou essa pessoa. Sou uma pessoa ruim, não sou? Que as pessoas sofram com a minha ruindade” e passei a rir de tudo.
Independente do que acontecesse eu nunca seria tão babaca quanto a Miss Bondade mesmo.
Por fim, as duas turmas foram convidadas para assistir um filme de crente no cinema e tanto eu quanto ela estávamos lá. Fiz questão de sentar na mesma fileira que ela. Não lembro se foi ao lado mas, se não foi, foi contra minha vontade.
Eu queria brincar com fogo (risos, uma coisa tão incomum, né? Sentar na mesma fileira da pessoa que você está interessado no cinema. Oh meu Deus). Na volta simplesmente decidi entrar no meio da galera dela e me enturmar – o ápice da safadeza, a forma humana da lascívia (...risos) –, dei um jeito de descobrir seu nome e a adicionei no Facebook. Vi seus interesses, foquei no que eu tinha de comum – ela era psicóloga e gostava de alguns livros que eu já tinha lido – e comecei a puxar assunto com ela.
Sabe? Era um pouco mais fácil porque sabia que ela não estava interessada em mim. Comecei a perceber isso: era mais fácil pra mim flertar com pessoas que não demonstraram gostar de mim porque, caso contrário, me sentia na obrigação de corresponder a esse sentimento ou de deixar claro que não correspondia, e aí criava problemas e mais problemas tentando chegar a essa situação o mais rápido possível. No caso dela, eu não tinha compromisso nenhum. E se ela parasse de falar comigo? Ela pararia, vida que segue, só flertei, só brinquei com ela então não importava.