Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

v-ix. heartshaped star

12 de maio de 2018

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v
anatomia da alma frágil: mapa geográfico da corrupção e perversão humana [ou: heartshaped star — heartshaped star]

eu finalmente quis uma mulher. claramente quis uma mulher. não terminei dizendo “ah, nem queria mesmo” ou “me livrei de uma bomba”. eu simplesmente quis: comecei a gostar, contei que gostava e não me arrependi de ter gostado. tem noção de como isso foi uma reviravolta pra mim? não era coisa da minha imaginação restaurada pela fé em Deus, era real! ela não era perfeita como ninguém é perfeito mas, meu Deus, era… uma pessoa simples, uma pessoa que não era viciada em manipulação e destruição da minha masculinidade.

um tempinho depois me senti limpo pela primeira vez e também senti que estava ficando pronto. muitas coisas foram mudando dentro de mim porque deixei de ter milhões de vozes me botando pra baixo, comecei a me sentir uma folha limpa, não era mais obrigado a ver um monstro no espelho e também não morria mais de medo de mulher porque, tadinhas, elas não eram psicopatas, eram cheias de desejos, tinham carência em coisas tão bobas quanto contar e saber de alguém como foi seu dia e por aí vai. estava começando a confiar na construção realista de mulheres na minha mente, ela sempre existiu mas nunca tive forças pra acreditar nisso.

perguntei, então, a um amigo muito próximo e autoridade sobre a Miss Bondade mais uma vez. ele se assustou um pouco e disse para eu ter calma, que “será que eu gostava dela mesmo”, será que isso, será que aquilo. é claro que eu não “gostava”, eu estava interessado, ainda não sabia muito bem explicar mas quando falei com ele a respeito disso eu já estava começando a amadurecer nessa idéia. tinha acabado de tomar um fora de uma menina por quem eu parecia já ter constituído uma família na minha mente, não tinha ocorrido nada de mal comigo, já estava ciente de que isso era normal e que não deveria me preocupar nem colocar peso nisso. mas ouvi isso dele e, num sinal de respeito, concordei em acalmar.

a calma, no entanto, não veio até mim. fiquei interessado em uma menina que morava em outra cidade, bem distante de mim, mas lembrei da história da Moça da Carta de Amor e já me fechei. também me fechei pensando que ela era amiga de pessoas que me odiavam. e me fechei, por fim e mais importante, sabendo que ela tinha a sexualidade certa para acontecer tudo aquilo que descrevi em algum momento desse capítulo: eu sabia que ela terminaria no hospício depois que colocasse meus monstros todos na mesa, ela tinha bastante problemas com a imoralidade sexual e eu me divertiria tanto, mas tanto, mas tanto, implantando um arsenal de monstros de maneira passivo-agressiva em seu coração que talvez ela fosse terminar surtada; eu também não sairia bem nessa história, tenho certeza que sairia carregando uma culpa assassina nas costas, mas isso no máximo me faria infeliz pelo resto da vida. não sou capaz de tentar tirar minha vida novamente.

era uma situação nojenta de perigosa mas não conseguimos não “nos aproximar”. logo disse a ela que, não fosse o fato de carregar tanta coisa dentro de mim, teria tentado algo com ela. ficou “tudo bem” de novo. não sabia que ela estava namorando um amigo meu, ou talvez ainda não estivesse, mas ainda era um fato bem irrelevante pra mim.

por aí também, em uma festa de ano novo, acabei tomando uma quantidade exagerada de champanhe, me desinibindo (foi a primeira vez que bebi), flertando e quase ficando com uma amiga minha que também era mãe solteira e tentou por meses me prender nos seus problemas emocionais. embora eu já estivesse meio cafajeste e, toda vez que ela chegava com a conversa de “quando é que vou prender esse passarinho na minha gaiola, hein…”, eu dizia “não fala essas coisa que sou tímido” e escapava. algumas taças de champanhe a mais e o passarinho que vos fala estaria preso cantando para uma mãe e sua linda filhinha de dez anos. no dia seguinte concluí que bebida alcoólica era algo que não tinha necessidade alguma de entrar na minha vida.

achei importante contar esse fato.

a verdade é que me senti tão vivo assim que todo aquele inferno dentro de mim acabou que comecei a sentir a contraparte de estar vivo também, comecei a perceber que todo esse tempo com Deus tinha me restaurado para muita coisa mas que eu não era, de fato, tão feliz quanto acreditava. que havia um mar de frustrações dentro de mim. eu… comecei a perceber que estava acreditando naquele Deus psicopata que comentei no início do capítulo e iniciei um processo de “despsicopatização” de Deus, de desintoxicação da minha visão de um Deus sádico e jogador de xadrez humano, e quando entrei em contato com a parte do meu coração que criou essa concepção senti muita vontade de morrer. entrei em contato com a minha depressão sendo um ser humano vivo, senti medo de mim mesmo, percebi que Deus não era um psicopata, eu era; brincava com as minhas próprias emoções para me destruir, tinha alguém dentro de mim que me odiava, tinha alguém dentro de mim extremamente frio, calculista e manipulador que já tinha percebido ao escrever os outros capítulos da noite na pequena londres mas nunca tinha visto em ação e agora ele estava ali, agindo novamente, construindo paranóias de novo.

mas não consegui despsicopatizar Deus.

só fiquei ali, largado e quebrado no chão, depressivo. não passava por um episódio de depressão há anos. estava desempregado, surtado, depressivo e interessado em uma menina por quem não deveria estar interessado. no período mais terrível dessa crise passei de trinta a quarenta horas seguidas deitado na cama, não querendo levantar, ocasionalmente chorando e meus pais tentaram de tudo para me ajudar exceto me dizer que tudo ficaria bem. oh yeah, baby, como é gostoso lembrar da situação de estar destruído por dentro e não ter ninguém pra só te fazer companhia enquanto você se reconstrói! eu amo a depressão.

nasceu uma música disso e, assim que ela saiu de mim, o espírito de morte foi embora imediatamente. ficou a depressão, é claro, assim como ocorreu naquele ano da última tentativa de suicídio. essa música usa basicamente a estrutura emocional da música de onze minutos que fiz durante a depressão. mostrei a uma das poucas pessoas que conhecia que entendia algo de música na época, não só para ele ouvir mas me ajudar porque finalmente entendi que a música me deixava maluco. esses “processos criativos” me paralisavam emocionalmente e me faziam ficar temporariamente obcecado tentando expulsar as músicas de mim para que me libertasse desses sentimentos extremos. o que ele disse foi que nem ficou tão legal assim, o que não me feriu porque concordei que tinha a “expulsado” de mim, não tive estrutura para poli-la, não tive aparato técnico para fazê-la exatamente como estava na minha imaginação. mas, o mais importante: ele sugeriu que eu parasse de incomodar o mundo com “espasmos”, era a hora de construir uma obra completa, porque eu tinha Algo a dizer e esse Algo não teria valor algum caso eu continuasse soltando pedacinhos de carta aleatoriamente. ele sugeriu que eu parasse de contar estrelas e construísse uma constelação. esse foi o melhor conselho que já me deram sobre isso. já emocionalmente a única pessoa que me suportou durante esse período foi “a menina com quem não tentei nada”, que merece um nome de personagem então a chamarei de Foránea. aquela que joga as nossas flores no chão quando não estamos olhando, aquela que rimos das piadas que só fazem sentido em sua língua materna e não na nossa, aquela que pede para nos jogarmos “só para testar uma coisa” e nós perguntamos “de qual altura, señorita?”. aquela que não nos ama.

no meu aniversário, o que ocorreu bem nessa época, passei um dia horrível cheio de carências de atenção em uma festa com meus amigos até que por fim eles revelaram que lembraram sim do meu aniversário e tinham comprado até um bolinho. fiquei muito feliz, embora estivesse tão emocionalmente cansado dessa crise que não consegui demonstrar muito bem toda essa felicidade interna. cheio de sentimentos cheguei em casa, sentei no meu teclado e coloquei nele tudo o que estava acontecendo. deu uma música de uns três minutinhos, tive uma crise de choro que durou uma noite inteira.

o nome dessa música é heartshaped star.
oficialmente fui libertado pela moça dos cabelos negros e longos nesse meu aniversário. ela disse “você é um garotinho lindo, conquiste as suas estrelas. eu canto pra você”. esse foi o dia onde voltei a existir.

 

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star