eu lembro de algumas meninas da igreja também na infância. alguns nomes, ao menos. nenhuma delas está na igreja hoje em dia, não consigo lembrar de uma amiguinha de infância que ainda está ali, comigo.
tá, uma. que não está necessariamente comigo, mas ainda está ali na igreja, em algum lugar onde não presto muita atenção.
as duas histórias mais importantes que ocorreram com meninas na minha infância foram semelhantes, uma mais intensa na amizade e outra mais intensa nos fatos em si.
a mais intensa na amizade foi uma filha de pessoas muito, mas muito próximas mesmo, dos meus pais. nos vimos todo final de semana durante anos e brincamos com a galerinha de tudo o que for possível imaginar (até de mãe-da-rua-da-cor), a irmãzinha dela nasceu na mesma época que meu irmão do meio, nós fomos a todos os eventos de ministério infantil juntos (ela fazia dança e eu futsal). como todas as meninas da história, nós brigávamos muito sobre qualquer coisa quando estávamos de mau humor e nos ajudávamos muito em qualquer outra situação, já fui na casa dela instalar the sims e ficar jogando com ela (inclusive fui muito desrespeitoso nesse episódio e a chamei de burra sem perceber na frente do pai dela (quem é o burro agora?)). espero que nenhum leitor seja próximo o suficiente de mim para saber quem é, pois posso estar contando demais, mas é importante para a história: o pai dela era bastante rígido e agressivo e, embora tivesse uma ótima postura na igreja, exagerava um pouquinho na “correção” e também na maneira de lidar com isso dentro da família. eu, o especialista em se colocar em enrascada pela percepção dos ambientes, notava isso e sentia muita raiva. eu gostava dele, não tinha por que não gostar, mas queria muito bancar o heroizinho dela porque ver isso me subia o sangue então eu, que convivi com eles entre os seis e os dez anos, briguei várias vezes com ele como se fosse uma pessoa adulta. quem leu a sétima estrela terá uma imaginação mais fértil das cenas.
algumas vezes ele falou para o meu pai que eu era um malcriado respondão e meu pai, confuso, me colocou no sofá e me perguntou o que tinha acontecido e eu desabafei tudo. meu pai ficava meio sem jeito, mas tentava me contar de uma maneira que uma criança como eu poderia compreender que eu não poderia me intrometer nos problemas dos outros. não entrava na minha cabeça que aquilo era problema dos outros porque ela era a minha amiga. não era problema dos outros, era problema meu. eu não me lembro de ter me conformado com isso, não foi por isso que nos distanciamos e sim porque eles tiveram uma crise forte no relacionamento e se afastaram da igreja. a minha amiguinha “se perdeu” no mundo e eu fiquei muito, muito triste.
anos depois, no final do ano onde eu estava em depressão fracassando em voltar pra igreja por conta das crises de ansiedade (um ano antes da Primeira Vítima. dez anos depois da última vez que vi essa menina), eu decidi que tentaria ir sozinho pra lá. era um culto muito importante de final de ano. peguei um ônibus e fui, encontrei-a na entrada, ambos abrimos um enorme sorriso, “uau! quanto tempo!”, nos cumprimentamos e perguntamos “você está bem?” um ao outro. ambos respondemos um pouco sem jeito, ambos estávamos quebrados por dentro. não nos acompanhamos e não assistimos o culto juntos. tive uma crise de ansiedade no meio do culto e fui ao banheiro chorar, fiquei trancado por alguns minutos chorando, mas esse foi o único dia daquele ano que não me arrependi de ter ido à igreja. ela ainda existia! ela tinha esperança de encontrar a saída! vez ou outra no ano lembro dela e desejo que ela tenha encontrado a saída, talvez eu nunca descubra se ela encontrou. tomara que um dia eu descubra que ela encontrou.
se ela foi afim de mim? todo mundo diz que sim. eu não sei, mas ando começando a acreditar que todo mundo tem razão, então ela deve ter sido. ela lembrava meu nome, ela deve ter sido. eu lembrava o nome dela, mas eu nunca fui afim dela como uma pessoa normal, ela foi a primeira menina com quem tive uma relação de amizade doentíssima onde eu queria salvá-la das garras de um mundo cruel e encararia esse mundo todo por ela (como de fato encarei seu próprio pai, olho-no-olho, sendo uma criança) sem casar com ela, sem nem namorar ela. só sendo seu amiguinho.
não é muito necessário observar, mas observarei: o mundo cruel tinha garras assassinas e me mataria, eu só tinha muita determinação e portanto morreria como um homem muito corajoso. Deus, não crendo que seria muito útil um filho corajoso debaixo da terra, interrompeu essa história antes que fosse tarde demais.
aos dez anos de idade.