talvez já não seja mais tão difícil entender a minha revolta com o mundo. não estou contando a última história porque o desfecho trágico ocorreu já na minha juventude mas a história anterior, do pai violento, unida com todas as outras histórias da minha infância e potencializadas pela minha sexualidade corrompida, colaboraram muito com a minha visão cética de mundo já na infância. eu conhecia a intimidade triste de muita gente, o mundo nunca foi um lugar legal no meu ponto de vista, sempre vi em todas as pessoas um lado ameaçador e violento que elas só estavam escondendo de mim e nunca deixei alguém entrar na minha intimidade sem mostrar esse lado, mas também nunca rejeitei alguém que o mostrou pra mim. as pessoas se rejeitam sozinhas, criando climas pesados que na verdade não existem nas conversas comigo e eu fico sem jeito de descrever o que elas sentem contra a vontade delas só pra dizer que está tudo bem, que não é necessário sentir.
a conta é simples embora não tenha nada de inteligente: eu sou capaz de sentir e fantasiar o pior das pessoas, de captar seus sinais e convertê-los em elementos para o quadro de suas maldades ocultas, sendo assim sou menos hostil a quem não esconde esse lado de mim porque sinto que não estou sendo enganado. peguei um apreço por conhecer o pior das pessoas, o que elas tinham de mais bestial e diabólico. sou um verdadeiro colecionador de maldades humanas, de mentiras e auto-enganações, eu sou capaz de reduzir qualquer coisa no mundo a meros sentimentos ocultos ruins sobretudo porque tudo é, de fato, reduzível a sentimentos ocultos ruins. a única coisa que pode proteger você de mim é o amor, melhor dizendo, Amor, com letra maiúscula.
se você não faz algo por amor eu sinto muito mas um dia acordarei possesso pela minha bruxa interior de saltão e, nesse dia, relacionarei isso que você faz a algum de seus sentimentos mesquinhos e tirarei sua vontade de fazê-lo para sempre. pessoas que fazem as coisas por motivos que não terminam no amor não conseguem conviver comigo, eu dreno delas a vontade de fazer qualquer coisa porque acabo apontando sua mesquinhez interior, sua “razão oculta firmada no orgulho próprio”. a intenção é justamente que elas não se percam nisso mas elas se perdem porque muitas vezes estou certo, e não adianta resistir mentindo pra mim porque minha intenção não é saber, eu já sei tudo o que preciso sobre você antes de te dizer meu primeiro “oi”, a minha intenção é que você sinta o ruir dentro de você então mentir pra mim mas sentir é vitória minha também.
ah, eu percebo se você sente.
na adolescência o Dono Desse Mundo escreveu um livro sobre pessoas com habilidades especiais e uma das personagens lia mentes. para facilitar seu trabalho ela fazia perguntas à outra pessoa, para que essas informações viessem até a superfície do cérebro. a outra pessoa não precisava responder, bastava fazer o esforço de pensar na resposta e o trabalho estava feito. a vilã, que a botava de joelhos, não ocultava a verdade evitando respondê-la ou tentando enganá-la, ela ocultava a verdade falando “se você me fizer uma pergunta eu te mato. leia minha mente! ela tem uma cena da sua morte. vai ser assim”.
essa personagem foi baseada em mim. ou, talvez, eu seja baseado nela.
lembra da sétima estrela, leitor? eu sou uma pessoa socialmente má, sou um vilão com um herói oculto porque, no final das contas, do meu jeito torto, estou trabalhando no tribunal do amor. quero que você faça o que quer porque quer, quero que se sinta a pessoa mais segura do mundo, que absolutamente ninguém possa contestar o que você está fazendo. hoje, sendo uma pessoa madura, eu não desequilibro as pessoas de graça, mas já as desequilibrei muito sem nem perceber que elas realmente me viam como o diabo. hoje, sendo uma pessoa madura e tendo amor pelo que faço, quando desequilibro alguém, desequilibro por amor e quando essa pessoa tenta me acusar disso eu só piso mais forte no coração dela e digo “shhhhh… continue pensando no que está fazendo”. não me interessa sair de ridículo, não me interessa que ela tente me humilhar em público, não me interessa que ela tente usar a mesma estratégia contra mim, o meu coração já está calibrado para tomar todos os danos possíveis do pequeno ratinho se batendo debaixo de mim e convertê-los em motivos de deboche. é cruel, é muito cruel. é quem eu sou.
é triste, no entanto, que eu não tenha controle sobre isso quando as pessoas desejam entrar na minha vida. a Chessmaster que o narrador antigo expôs no capítulo passado foi exposta de uma maneira muito humilde, a Chessmaster simplesmente “existe”, ela sempre vai me proteger das pessoas mesmo que essas pessoas não sejam ruins. se elas estão sendo falsas comigo, mesmo que por amor, mesmo que seja por não querer que eu me sinta mal ou só porque é normal que as pessoas não se exponham completamente a você se não te conhecem muito bem, a Chessmaster as pegará pelo pescoço e as pressionará até que desembuchem a verdade. eu sei a verdade, eu sinto no seu olhar, no seu sorriso, no seu tom de voz, no seu caminhar, na sua escolha de palavras, eu sei de qual dicionário vem as suas palavras, eu sei quando na internet você está demorando pra responder porque ainda não teve como ou porque está pensando na resposta ou porque não está bem. quero usar tudo isso a seu favor mas primeiro preciso usar contra você porque, em algum lugar da minha cabeça, faz completo sentido que você esteja unido a todas as pessoas que me odeiam (sendo que elas provavelmente não me odeiam) numa aposta para me ridicularizar ou fazer eu me sentir mal como se isso fosse questão de vida ou morte, porque as minhas fantasias a respeito disso são muito intensas e mortais. a minha intimidade é extremamente machucada, violada, não porque tive traumas profundos mas porque tive uma vida de traumas superficiais, eu sou um traumatizado crônico. a minha intimidade só conhece o sofrimento, o meu primeiro contato com a sexualidade foi o ódio e eu nunca tive outro tipo de contato ou nunca consegui interpretar contatos de outra forma.
nessa altura da infância eu já era assim. o que nunca aprendi é que as pessoas não querem expor sua maldade aos outros, elas se sentem invadidas quando isso acontece. eu nunca aprendi isso a começar por mim mesmo, havia uma época onde todas as pessoas que conviviam comigo sabiam que eu era uma pessoa perturbada de tanto eu contar tudo como se não houvesse problema algum. só depois de sucessivos “olha, eu não quero saber” eu aprendi a não falar porque… as pessoas não querem saber. eu tinha um vocabulário avantajado, inclusive em impurezas, eu era muito hábil em falar sobre coisas pervertidas às vezes sem nem perceber.
a verdade é que a chave para a minha maturidade é o mistério. não, não é “me tornar” misterioso, isso eu já sou. é encarar essa verdade sobre mim: eu sou misterioso. não importa o quanto me esforce para demonstrar a verdade sobre mim, as pessoas não acreditam. não é que eu seja um mentiroso compulsivo, ao menos não em atividade já que uma das coisas que mais martelei na sétima estrela foi sobre a minha possibilidade de mitomania, mas… eu me enxergo muito mal. talvez você reconheça tudo o que direi a seguir por causa da sétima estrela, mas a linguagem aqui é diferente, a linguagem aqui é a da noite na pequena londres: eu tenho graves problemas de identidade e isso não é uma confusão, isso é excesso de energia, como eu poderia pensar em tanta coisa ao mesmo tempo sem que essas coisas tomassem formas de personagens diferentes que estão brigando entre si pelo holofote do meu corpo? sendo assim estou sendo completamente sincero ao me expressar agora, mas isso já não terá valor nos próximos trinta minutos, muito menos no outro dia e no mês seguinte não existe possibilidade de eu voltar a esse lugar. ainda que sejam inúmeras palavras, todas elas se deterioram com uma facilidade assustadora.
sendo assim, não há razão para acreditar no que falo sobre mim mesmo. não é mentiroso mas está ocultando muita coisa, eu sempre estou mostrando muito acreditando que estou mostrando tudo sem perceber que é só uma explosão, é só pra assustar e/ou acomodar o ouvinte. se você me congelar no tempo e começar a prestar atenção nos detalhes vai perceber que tudo aquilo que estava harmônico, bonito e até pragmático por fora é uma soma de conflitos internos que assumiram essa forma tentando, na melhor das intenções, ser compreendido por todos, parecer familiar e identificável para os outros, parecer comunicativo e convidativo, porque não faz sentido que todos esses conflitos internos que podem assumir essa forma tão harmônica, tão bonita e tão pragmática sejam tão difíceis de compreender mas eles são, eles poderem assumir essa forma não significa que eles devem assumir. eu não sou harmônico, bonito e pragmático, toda vez que consigo organizar o que quero e me expresso fica perfeito, faz completo sentido mas só faz porque talhei milhares de conflitos e contradições que estavam dentro de mim para que isso pudesse sair de maneira compreensível. quanto mais completo e cheio de elementos conectáveis o meu conteúdo mais ele oculta independente do quão convincente seja, mais você precisa ouvir de novo e perceber que, espera, não faz sentido que isso seja assim, que eu enganei você porque é mais interessante devorar seus sentimentos que deixá-lo devorar os meus. se você está me entendendo é um sinal de alerta, cheque novamente as palavras, cheque se não está me usando como espelho. veja de onde saiu a combinação de coisas que disse a você, perceba que não faz sentido que eu tenha unido essas coisas que não se conversam, feito elas conversarem e mostrado a você um resultado que parece uma coisa só. eu sou uma quimera imaginativa mas coloco máscaras nas minhas várias cabeças para que pareçam todas da mesma espécie e isso engana quase todo mundo.
em nome da verdadeira sinceridade, eu desisto de ser compreendido.