por outro lado a Moça da Carta de Amor me ensinou duas coisas bem preciosas a respeito de mim mesmo que, lapidadas, se tornariam importantíssimas positivamente em minha vida: em primeiro lugar ela me ensinou a expressar eloqüentemente meus sentimentos. fiquei fascinado pela maneira como ela desenhou com as palavras a imaginação que tinha de nós.
em segundo lugar eu não poderia esperar que alguém chegasse e fizesse tudo isso que ela fez, mas a respeito de mim ela abriu de volta uma porta do meu coração que havia se fechado. tinha prometido a mim mesmo que nunca mais seria sincero depois da Carinha de Anjo porque todas as meninas iriam brincar com meus sentimentos como ela fez e me fazer me sentir a pessoa mais idiota do mundo ao “terminar o serviço” para alguém que nunca se importou comigo na frente de todos. não que eu ainda lembrasse da Carinha de Anjo, era hipoteticamente impossível eu esbarrar nela, é só que esse escudo emocional se enraizou em mim de uma maneira que deixei de enxergá-lo.
entendi que valia a pena ser sincero e isso é sensacional porque gosto de ser sincero. a minha área de relacionamentos é uma bagunça porque eu, uma pessoa que preza pela sinceridade, não consigo ser sincero nela. entendo que hajam as questões do ego mas ela nunca se preocupou com o meu ego, isso não era importante, sobretudo porque ela sabia que jamais se tornaria uma “brincadeira” nas minhas mãos. nunca deixamos de ser sinceros a respeito do que aconteceu para “evitar inflar o ego da outra pessoa” ou para nos machucarmos, mesmo depois de anos, então toda vez que isso acontece com relação a outras meninas eu olho com certo desdém, vejo como uma fraqueza que não tenho vontade alguma de me intrometer e sempre que for consultado responderei “sim, eu gostei de você de verdade” sem problema nenhum. tentaram me convencer de que esse era um comportamento doentio, mas a verdade é sempre um comportamento saudável e é a única maneira de permitir que essas feridas se curem de fato. o tempo não apaga, relacionar-se com outras pessoas não apaga. o engraçado dessa história é que costumo ferir o segundo mandamento, mas nunca o primeiro, e esse foi o único caso onde eu e a moça saímos bem-resolvidos mas eu e Deus não.
não posso dizer que mantive esse padrão de sinceridade pra sempre, mas sempre quis. continuo isso depois.
agora contarei uma história paralela a várias outras histórias desse capítulo e do capítulo anterior: antes de entrar para o ambiente da “firma” eu fiz, pela primeira vez, a sétima estrela cadente. isso foi apenas um ano após o heartbreak da Carinha de Anjo, não entendi o que significava, não entendi por que a criei, para mim era uma trilha sonora de uma brincadeira entre amigos mas não sabia que meus sentimentos existiam, não sabia que tê-la dentro de mim significava Algo, que gostar de ouvir o que ouvia significava Algo. esse foi um ano assustador, lotado de crises dissociativas extremas, tentativas de suicídio e a entrada na firma. nos últimos meses comprei um teclado e, assim que ele chegou em casa e o liguei pela primeira vez, não me importei em procurar vídeos de como aprender a tocar, não me importei em procurar por aulas de teclado, eu só estava tão agoniado com toda a minha sobrecarga emocional que não sabia como comunicar a ninguém que imediatamente toquei bem lentamente as coisas que meu ouvido gostaria de ouvir.
eu chorei a noite toda.
a noite toda.
eu entendi pela primeira vez tudo o que estava sentindo. sempre desconfiei demais das palavras para acreditar que elas eram capazes de explicar o que eu estava sentindo, eu não tinha mais amigos por perto para expressar com gestos e expressões o que estava sentindo e morria de medo da coisa horrível que via no espelho, mas aquele som… aquelas notas… os meus ouvidos as captaram, os meus ouvidos entenderam, a minha alma estava gritando. a minha alma não parava de gritar. a agonia era gigantesca. eu entendi, entre quatro paredes, o que eu sentia na minha intimidade.
chamei o resultado disso tudo de “valsa da alma gritante”. ela é a sexta estrela cadente. quando a completei, desesperado, exatamente quatro anos depois, consegui parar de assistir pornografia. não me diga que a pornografia é indiferente, que existem milhares de coisas “mais importantes que isso” para se importar. se você soubesse onde eu já cheguei você jamais diria que é indiferente.
uma versão desse ano, no entanto, existe. devo dizer que foi a coisa mais horrível que já produzi. a primeira versão da sétima estrela foi feita totalmente no computador, já a primeira versão da sexta eu tentei tocar e eu tocava muito mal, não sabia nada sobre música, não sabia da existência de metrônomo, não sabia da existência de tempo, não sabia como era a parte antes do solo e, se o ouvinte já passou pela sexta estrela cadente, deve se lembrar que a parte do solo é uma reviravolta musical. também não havia bateria. não sei se ainda tenho essa versão, um dia a procurarei. mostrei a um amigo e ele gostou, provavelmente porque se esforçou para “entender” o que havia acontecido na música. reconheçamos: estava mesmo horrível.
no mês em que essa música ficou pronta eu fui efetivado na empresa onde trabalhava como estagiário, dois meses depois passei pela minha pior e última tentativa de suicídio. tive dois meses de silêncio, até mesmo de paz. isso aconteceu de repente como uma recaída e me deixou completamente destruído por dentro, o que acarretou na depressão profunda dos meses seguintes. caso queira que lhe situe na linha do tempo estou falando da época onde conheci a Rainha das Estrelas.
nessa depressão profunda tive crises dissociativas diferentes das ocasionais, tive um período de contemplar as minhas crises dissociativas. pude perceber coisas simples sobre os meus próprios sentimentos, como um psicopata tendo pequenos impulsos de “despertar”. comecei a reparar que o tempo não passava sempre da mesma forma, que dependendo da velocidade dos meus batimentos cardíacos o tempo passava mais rápido ou mais devagar, tive pesadelos sobre o inferno, tive sonhos com uma terceira pessoa fazendo papel de mediador entre minhas duas personalidades (até então eu sempre intercalava duas personalidades). durante esse período iniciei a música mais importante que já fiz até hoje, correspondente à quarta estrela cadente e à nona: nessa eu aprendi sobre música. aprendi acordes ao descobrir que, tocando duas notas ao mesmo tempo, o som saía mais legal, e tocando três notas ao mesmo tempo o som saía mais legal ainda. toquei os instrumentos isoladamente, primeiro o teclado-base, depois o teclado-solo (apenas ouvindo o teclado-base), depois o baixo (apenas ouvindo os teclados), e quando fui colocar a percussão digitalmente percebi que existia essa coisa estranha chamada “tempo”, que os instrumentos precisavam estar sincronizados e que eles não estavam, assim como não estavam na primeira versão da sexta estrela. só havia um problema: na sexta estrela eram dois teclados, a não ser que alguém colocasse um metrônomo tocando nenhum não-profissional perceberia que não existe tempo naquela música, já nessa haviam três instrumentos diferentes e uma percussão e a percussão determina o tempo. então eu colocava a bateria num lugar e não dava, aí montava uma seqüência perfeita e percebia que todos os instrumentos estavam fora do lugar.
eu não entendi como esse caos dizia tudo sobre mim. a minha vida sentimental estava completamente descompassada, eu não sabia que precisava de tempo, que as coisas precisavam estar em harmonia. havia uma desconexão profunda entre os elementos do meu coração, mas esses elementos ainda pertenciam à mesma coisa, se você conseguisse juntá-los teria algo bom. eu não consegui juntar muito bem e acabei acrescentando um órgão bizarro que deixou tudo ainda mais estranho, mas gostei do órgão, gostei do resultado, e se você quer saber a noite na pequena londres não existiria sem esse órgão. esse é o órgão do solo da noite na pequena londres.
terminei essa música exausto emocionalmente, entreguei-a desesperado porque não aguentava mais trabalhar nela, ela durou cinco meses e esses cinco meses foram de depressão. não, não melhorei por tê-la terminado, eu não fiquei satisfeito quando a terminei, era incapaz de ficar satisfeito comigo mesmo e ouvir uma música tão desconjuntada me deixava mal. ainda assim ela me empolgava, eu queria que as pessoas ouvissem. acho que só quem já gerou algo sabe o que é a carência de que as pessoas vejam aquilo que você fez, de que as pessoas tentem entrar em sintonia, descrevam o que elas sentiram ao ver, ao ouvir, ao ler, ver se conseguiu transpassar aquilo que estava dentro de você para o mundo e com qual qualidade transpassou. todo mundo achou a música “estranha”, mais ainda porque denunciei compulsivamente tudo o que havia de errado nela para que as pessoas não viessem me falar: eu não queria ser avisado de que tinha errado, eu já sabia que tinha errado. mas gostei do “estranha”. houveram pessoas que identificaram um diálogo e tudo aquilo, no final das contas, era um diálogo. isso me deixou feliz.
também estava desfrutando do meu aprendizado monstruoso com essa música: eu tinha aprendido a usar mais do que teclado, agora tinha um baixo e um órgão e era mais fácil pra mim aprender a usar sintetizadores e violinos sintetizados e foi assim que, ao entrar de férias da faculdade, tentei mais uma vez fazer a sétima estrela. eu amei o resultado. as outras pessoas nem tanto, era tudo muito artificial.
no ano seguinte, primeiro round da Moça da Carta de Amor, meu coração se endureceu e produziu uma só música de dois minutos. ela se chamava “limitado”. no outro, no hiato com a Projeto de Skinner, fiz parte de um projeto de desenvolver um jogo em 48 horas, fiz uma música curta e maravilhosa para a trilha sonora usando um teclado e um violão (até hoje sou satisfeito com ela) e também fiz cinco segundos da segunda estrela cadente, além da minha masterpiece do casal de teclados onde tentei expressar pela primeira vez algo que não estava no meu coração, mas na minha mente (a música é um verdadeiro caos).
algo que não observei mas é muito importante é que venci o transtorno dissociativo de identidade durante a primeira história com a Projeto de Skinner. “transtorno dissociativo de identidade” é como chamo essa coisa que aconteceu comigo, que nunca soube muito bem se era mesmo um transtorno psicológico ou algo espiritual, porque acabou assim que fui batizado na igreja. ainda assim minha linguagem de expressão emocional para essa música foi a do diálogo dos teclados, foi a última vez que isso aconteceu até que decidi construir a constelação.
onde quis chegar com tudo isso? quis chegar que, meu querido ouvinte, a música foi a maneira que encontrei de me expressar sinceramente ao mundo. e meu primeiro vocabulário emocional foi construído durante a minha depressão. “tá, mas onde estávamos?” estávamos no fim do segundo round com a Moça da Carta de Amor, onde comentei que ela me ensinou a expressar eloqüentemente meus sentimentos. ela me ensinou a parar de escrever apenas monólogos e diálogos com a sua declaração de amor pra mim, ela me ensinou a desenhar cenários românticos, a imaginar o amor, o romance. ela me transformou de uma prostituta emocional, que conversava diretamente com o coração das pessoas percebendo elas ou não, em uma pessoa romântica. eu aprendi a escrever romances, aprendi a usar as palavras para não só transcrever as minhas conversas como para contar com riqueza de detalhes sobre os momentos que passava junto com as pessoas, expandi meu vocabulário musical e lentamente fui tentando aprender a tocar mais músicas que estavam na minha cabeça (eu já tinha mais de vinte músicas feitas dentro de mim, mas a grande maioria eu não fazia a menor idéia de como ficaria fora de mim). pode ser que você já tenha entendido o que aconteceu aqui, ouvinte: a Moça da Carta de Amor me ensinou a escrever a noite na pequena londres. até então a noite na pequena londres não era Steely Dan tocando j-pop, ela era um pseudo-cover de Strokes (ou the pillows. melhor the pillows), que uma vez tentei fazer ainda na época das crises dissociativas e ficou horrível porque… eu simplesmente não sabia fazer música.
você pode ler tudo isso e se deslumbrar com essa “história de amor”, pensar “por que vocês não ficam juntos?”, pensar que ainda guardo sentimentos de paixão e romance por ela, mas… eu não guardo. acho impossível impedir a minha esposa de sentir ciúmes dela, eu sentiria ciúmes de um homem se a minha esposa tivesse a mesma história com esse homem que tive com a Moça da Carta de Amor, e aposto que qualquer namorado que ela teve depois de passar por mim só fingiu que não sente ciúmes de mim. mas é, gosto mais dela do que de maioria das pessoas que passaram pela minha vida, mas já não sou mais uma pessoa apaixonada por ela. não acho que teríamos esse privilégio se tivéssemos “ido longe demais”, mas não fomos e por isso mesmo mantivemos a amizade.