Série: heartshaped star - estrela cadente

heart-shaped star: estrela cadente iii

27 de fevereiro de 2017

a bondade, o céu e uma multa por limite de velocidade

 

não existe nada mais deprimente que não acreditar na bondade. não falando da desconfiança, que se trata de outro problema completamente diferente, mas da descrença. é melhor alguém que acredite que só uma pessoa no mundo todo pratica, ou praticou, a bondade genuína, que alguém que acredite que ninguém a pratica, mas todos praticam interesses relativamente bons.

o céu é composto de bondade genuína.

não sei se pessoas que não acreditam em bondade genuína não acreditam no céu, ou se pessoas que não acreditam no céu não acreditam em bondade genuína. a verdade é que o céu se vive todos os dias ou não, o céu não é uma abstração distante de algo que alcançaremos no futuro, na morte, mas algo que diariamente construímos ou destruímos com uma bondade que só pode estar além daquilo que visa melhorar os nossos arredores. o céu é estar alinhado com a bondade.

a bondade existe.

enquanto uma pessoa acreditar que ela existe, ela existe. ela não é absurda. subtraindo nossos obstáculos pessoais e analisando friamente uma situação o que percebemos é que ser bom é uma de duas opções, acreditar que o mal é a única possibilidade é um esforço enorme que fazemos todos os dias a ponto de nos tornarmos acostumados a sofrer para extrair de outras pessoas o seu pior.
talvez seja mais fácil se esforçar para esperar o mal porque ele é mais previsível, ou aparente ser mais previsível, porque um poço que não se conhece o fundo ainda é mais finito que o céu. a bondade é infinita, graça é infinita, quando um problema aparece a maldade faz de tudo para mantê-lo como está e, portanto, é um agente de manutenção. enquanto a bondade é o exercício de uma criatividade que traz ao mundo algo que ainda não existe, para possibilitar um futuro que não era pra ser daquela forma mas a partir disso será.
Cristo é o exemplo maior da bondade, a encarnação da bondade. o seu sacrifício abriu um futuro de possibilidade de salvação que, até então, não existia. a vida dele ensinou às pessoas um modo de viver, de tratar uns aos outros, que até então não existia. como se tivesse trazido um pouquinho, aliás, o céu completo, à terra.

tanto o céu quanto o inferno estão na terra, e estão dentro de nós, e manifestam-se através de nós. não é nossa responsabilidade decidir qual é qual, pessoas menos generosas não têm razão nenhuma para se sentirem mal por serem menos generosas, pessoas mais generosas também não possuem motivo para se sentirem melhores que as outras por serem generosas. creio eu que a generosidade pode ser aprendida todo dia, que pessoas amargas podem se tornar menos amargas com o tempo, só um acontecimento define se isso vai acontecer ou não: se ela acredita na bondade.
se ela acredita que, mesmo que as pessoas com quem ela vai conversar e se relacionar estejam vivendo o inferno nesse momento, ela pode acender uma fagulha de esperança no coração delas mesmo que isso não dê em nada no fim. é impossível fazer isso sem acreditar genuinamente na bondade, acreditando em “resultados positivos”, em “eficácia”. eu duvido muito que Jesus era uma pessoa que pensava nos resultados da sua cruz, eu duvido muito que, quando o Pai perguntou ao seu Filho “você vai mesmo lá morrer por todo mundo? e se não der certo, e se ninguém te aceitar, e se ninguém for salvo?” ele respondeu “puts meu velho aí lascou né”, as respostas possíveis devem estar circulando entre “normal, ué, acontece” e “eu sei que alguém será salvo” porque essa é a natureza da bondade, ela varia entre aceitar que nem todos conseguem se desarmar para aceitá-la (precisam procurar justificativas, teorias sobre os desejos do subconsciente, lógicas que provam auto-enganação, o que honestamente faz parte de viver o inferno e eu sei disso porque também possuo alguns infernos na minha cabeça) e que, se você é generoso, não tem razão para nenhuma outra pessoa no mundo não o ser também.
ser generoso é jogar gentilmente com as outras pessoas, às vezes deixar elas um pouco confusas com suas próprias expectativas, testar se há possibilidade de retorno. muitas pessoas estão tão presas em porões de suas almas que nem sabem que, se algum necessitado pedir meia hora, uma hora, de atenção pra contar uma história, elas vão aceitar, ouvir, se agradar em ouvir, abraçá-lo no fim e fazê-lo chorar porque abraços não são assim tão comuns quanto se pensa. elas simplesmente não conseguem enxergar que, no final das contas, possuem uma reserva de esperança dentro de si. só receber bondade intensifica essa chama, ou mesmo a reacende.

ser generoso é viver o céu.

o mundo só pode adquirir cores, alegria, paz, vida, por quem acredita na bondade. viver com medo de como as pessoas reagir é o inferno, imaginar que é impossível acontecer algo de bom na sua vida sem que você seja cobrado por isso é inferno. acreditar que Deus não está de olho nesse mundo, não porque vai torná-lo perfeito, mas porque ama os seus, gosta dos seus, cuida dos seus, protege os seus de tudo aquilo que eles são incapazes sozinhos, é o inferno.
por outro lado, o paraíso está na mente, na alma e no coração humano, de quem não se importa tanto com o fato de ser imperfeito mas acredita que as pessoas são capazes de se ajudar ainda assim. pelo fato de que ocasionalmente se percebe ajudando aos outros ainda assim. pelo fato de que acredita que o coração não foi feito para ser habitado por demônios mas pelo divino, e portanto se une a esse divino para expulsar esses demônios dia-após-dia. pelo fato de que tem a coragem de chegar em qualquer pessoa e perguntar se ela está bem, se precisa de alguma coisa, de orar, interceder por ela, de sentar e almoçar ou jantar com ela em qualquer lugar. pelo fato de que se importa incondicionalmente, porque sente uma importância incondicional, talvez ensinada por outras pessoas ou talvez adquirida pelo próprio Deus. acreditar que todos têm importância é bondade. acreditar que todos têm sua história e que, embora seja desnecessário pegar a caneta e escrever alguma coisa lá, todas essas histórias são importantes, é bondade.

a bondade é uma maneira estranha e absoluta de se viver a vida, ela precisa ser vivida exatamente da maneira que é. não existe bondade de fora pra dentro, só de dentro pra fora. melhor dizendo, a bondade não é um “pensamento positivo”, algo que você decide pensar porque quer bons resultados, porque tem a intenção de obter bons resultados, porque tem a intenção de alcançar aquilo que estou expressando aqui. não, não é assim. a bondade é uma decisão de mudar eternamente a maneira de enxergar a vida, obtenha você os resultados que deseja ou não, transforme-se o mundo ao seu redor ou não, transforme-se seu comportamento ou não.
nada acontece de um dia pro outro e toda ação feita com base em seus resultados é essencialmente falsa ou, no mínimo, antagônica à bondade, essencialmente imprevisível e dependente de fé. a bondade traz obrigatoriamente suas frustrações, seu desejo de desistir e sua conclusão fatal, o “não consigo mais voltar atrás, viver o céu e de vez em quando ser trazido de volta aos subúrbios da terra ainda é melhor do que viver o inferno”. o desejo de desistir só pode ser resistido com… a própria generosidade.

a bondade é uma transformação puramente interior com reflexos exteriores. é impossível forjar atitudes bondosas sem fazer elas perderem sua bondade real, a bondade postiça é previsível. é metodológica, é conjunto de regras. e a bondade, vamos repetir? é imprevisível, é viva, cada momento é algo diferente e novo. é algo assustador, se parar pra pensar.

acho que muitas pessoas comentam sobre a bondade, sobre “trazer o reino”, em seus atos práticos e até mesmo em seus motivos, justificativas. é correto. é claro que é correto. pra falar a verdade, embora tenha iniciado o processo de dar vida a essa música há duas semanas ou três, e tenha terminado ela quinta, o que mais ouvi em ministrações de carnaval (que começaram sexta) foi sobre a bondade e fiquei muito feliz de ouvir. é confirmação de coisas acontecendo dentro de mim que não conseguia entender.
mas acho que não vi ninguém comentando, a nível pessoal, a nível de “e eu, o que está acontecendo comigo?”, sobre a bondade. sobre, pra falar bem a verdade, a bondade de Jesus Cristo. eu desisto, estou falando de religião tanto quanto de romance tanto quanto de qualquer outra coisa. mas, no fundo, estou falando só do que sempre foi real. só do que sempre vi as pessoas que me ensinaram a viver vivendo.
nós sabemos que é nossa obrigação, como cristãos, trazer o reino de Deus. e nós sabemos que é gostoso, como cristãos, trazer o reino de Deus. e nós sabemos que nós, como cristãos, mudamos quando trazemos o reino de Deus. mas o que acontece dentro de nós quando mudamos? melhor dizendo, o que acontece dentro de nós para que mudemos? não é que não nos interessemos por isso. é que, talvez, as palavras não dêem conta de explicar o que acontece dentro de nós. talvez não tenhamos no nosso vocabulário como montar frases que expliquem como é bom ser bom, não porque somos perfeitos, mas porque acreditamos que a bondade é motriz, dispensa qualquer motivo para estar no mundo.
temos, talvez, algumas notas. mas não sei se essas são as notas. não sei qual é o som da bondade. será que são mesmo essas notas que tenho? qual é a velocidade ideal do céu em quilômetros por hora? eu não sei, realmente.

o que sei é que, pouco-a-pouco, construímos um universo em nossa mente e banhamos-no diariamente com as coisas que deixamos entrar e sair do nosso coração. às vezes os prédios que construímos em nossas cabeças terão dias ensolarados, ótimos para se passear no lago, às vezes terão dias de tempestade onde o mais seguro é se fechar na sua casinha e ficar deitado numa coberta.
mas nós precisamos construir os prédios e as casas. precisamos definir se a cidade da nossa cabeça tem pessoas que se recusam a conversar, que só conversam por interesse ou carência, ou porque é legal conversar e se conhecer. se, na cidade da nossa cabeça, as pessoas perdoam dívidas materiais ou emocionais, ou vive-se uma justiça implacável onde todas as pessoas que erram devem morrer, ou vive-se o caos. se a cidade da nossa cabeça tem gente passando fome, pedindo esmola. se a cidade da nossa cabeça tem pessoas que são carinhosas e amorosas umas com as outras, ouvindo os problemas umas das outras, ajudando umas às outras, ou se cada um está isolado no seu apartamento ocasionalmente cogitando suicídio. é aí que começa a sua maneira pessoal de “construir o reino de Deus”, é aí que começa o sonho e a esperança. não é em outro lugar. você nunca vai conseguir acreditar na bondade “porque” começou a fazer algo que não acredita, embora seja ótimo começar a fazer algo que não acredita porque, vendo o que era até ontem impossível se tornar possível, você acaba começando a acreditar; e também porque, pra começar a fazer “algo que não acredita”, no fundo, em alguma coisa você acredita.
é confortável sentir o céu sendo construído dentro de você. é claro que não é você mesmo quem faz isso, só aceita deixar alguém (nós-sabemos-quem) construir, porque por si mesmo é incapaz de dar forma ao que não sabe o que é. nós só podemos abrir nossas portas dos desejos, desejar o que é bom, desejar acreditar na bondade.

é confortável morar no céu. mesmo estando na terra. é confortável deitar no travesseiro e deixar os habitantes do céu falarem contigo, e não os habitantes do inferno; os habitantes do céu não costumam gastar tempo falando “você fez essas coisas de errado hoje”, eles preferem gastar com “você foi muito bem hoje e amanhã vai ter a oportunidade de ser melhor ainda”. é confortável fechar os olhos e ter vontade de sorrir ao invés de chorar, em especial quando o único lugar que temos para recorrer é o lugar que existe quando fechamos nossos olhos. é confortável se sentir à vontade pra falar com qualquer pessoa, afinal ser ranzinza é um problema da pessoa, não seu, e ela ser grosseira contigo não faz diferença nenhuma, mas ela retribuir com generosidade é gostoso e acontece com mais freqüência do que se suspeita. menos pessoas odeiam um “bom dia” do que se suspeita.
é confortável ter a oportunidade de, às vezes, oferecer seu céu para abrigar pessoas e seus sentimentos feridos. às vezes só deixar elas falarem, às vezes falar alguma coisa também, às vezes só lembrá-las de que são amadas. às vezes alugar alguma casa desse céu por um tempo pra pessoa. é confortável acreditar que existem pessoas que também lhe oferecerão esse céu delas sem desejar nada em troca, é confortável que essas pessoas existam de fato, é confortável porque muitas vezes o céu de outras pessoas ilumina o nosso inferno. é confortável, também, oferecer seu próprio céu a si mesmo e perceber que ele tem curas que você nem sabia que estavam lá.
é confortável acordar no dia seguinte e perceber que mais cantos do seu universo estão cheios de graça. que conseguiu ser inferno por menos tempo hoje que ontem, que conseguiu descobrir como ser céu em uma situação que até ontem era inferno.

é confortável.
e é bom.

e é bom que esteja confortável porque, quando a terra acabar, é lá que vamos morar.

 

 

Você leu um capítulo da série heartshaped star - estrela cadente

escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star