Não muito tempo depois de partir meu primeiro coração tive meu primeiro grande despertar para uma realidade da vida. Ainda tinha vinte anos. Poderia dizer que esse foi o ano mais importante da minha vida, não fosse o fato de que todos os anos possuem acontecimentos extraordinários que escolhemos ignorar apenas por sermos tontos e não conseguirmos compreender como a vida é uma trajetória una onde cada pedaço é importante.
Estou brincando, podem xingar os anos ruins.
Mas é sério.
Meus vinte anos abocanharam uma carteira de habilitação, minha primeira carta de amor adulta, meu primeiro coração partido sabendo o que estava fazendo, minha volta para a igreja, meu primeiro círculo de amigos desde A Queda, a primeira vez que fui assaltado, minha primeira eleição para presidente (poderia ter sido a segunda, mas quem se apressaria para uma eleição?), descobrir que pessoas sem doença mental (explícita) não acreditavam que existe de fato uma realidade, e por fim Deus decidiu que eu merecia voltar a viver em unidade comigo mesmo. Ufa! Quanta coisa. Foi um verdadeiro arrombo mental para um garoto caipirão de interior, diria até que era desnecessário se não acreditasse em Deus e em seus planos.
Exceto que não sou um garoto caipirão do interior. Sou um filho dos céus estrelados da Pequena Londres. Ninguém sabe, de fato, o que é a Pequena Londres. Metade caipira, metade cidade grande. Metade maloqueira, metade elegante. Metade esquemas de corrupção planejados até a medula, metade justiça impiedosa. Na Pequena Londres, desde que você não participe de uma seita secreta de ricos que deve existir, você deve ter nascido no Hospital Evangélico ou na Santa Casa. É essa sua impressão, é isso que escolheram para você.
Uma cidade espiritualmente perigosa, mas graciosa. Em muitas noites você encontrará anjos por aí, trazendo verdades reveladas a qualquer ser humano em vista. Procure por anjos nos hospitais em determinadas noites e eles estarão lá. Procure por anjos nas ruas, e eles estarão lá. A Pequena Londres tem um batalhão de anjos sendo treinado de tempos em tempos, porque muitas pessoas simplesmente sabem que os demônios não dormem.
Nas ruas da Pequena Londres existem pessoas extraordinárias e extraordinariamente endemoniadas. Pegue sua Bíblia, recite versículos a essas pessoas e seja pulverizado por uma manipulação de versículos que provavelmente vai te deixar chorando no chão. Mencione qualquer apologético bobo e receba Leibniz. As pessoas das nossas ruas não desejam meras palavras recitadas, desejam vida; não desejam sobreviver, desejam viver.
Com isso, digo a você leitor: bem-vindo aos meus vinte-e-um anos! Bem-vindo ao segundo capítulo da nossa aventura pelas ruas e corações da cidade.
Muito mudou após meu primeiro coração partido. Talvez porque, quando você fica um tempo no coração de alguém e vai embora, você acaba levando algo. É muito difícil sentir saudades de uma pessoa quando se toma os cuidados de não se envolver fisicamente, e foi essa a razão de Deus pedir encarecidamente a seus filhos para não se envolverem fisicamente até saberem o que querem da vida, momento esse que ele chamou carinhosamente de “casamento”. Nunca dá muito certo porque “saber o que quer da vida” é impossível, mas dá certo o suficiente para Deus insistir que a instituição existe e ter criado a Igreja para, sobretudo, ajudar as pessoas a alcançarem ela.
Mas fato é: nunca senti saudade da Primeira Vítima, mas ela deixou marcas na minha imaginação, assim como a moça da carta de amor. Não tinha motivo para desejar menos do que alguém que quisesse conversar comigo todos os dias, toda hora que fosse possível, e que estivesse interessada no meu bem-estar, e que estivesse empolgada de estar ao meu lado. Tudo isso é bom, eu acho. Ainda quero isso, mas reconheço hoje que há um problema: é difícil estabelecer critérios baseados no que vem de pessoas que já passaram pela sua vida; muito disso não é um desejo profundo enraizado do seu coração, mas um simples mimo que ele se acostumou a receber. E o coração se acostuma muito facilmente a essas coisas, se engana que precisa daquilo, pronto e acabou.
Aos vinte e um anos de idade recebi um apelido que, por não saber explicar, remodelarei e chamarei de Light Fuse And Get Away (Acenda o Pavio e Vá Embora). Você logo vai entender.
Bem, tudo isso que acabei percebendo que desejo é essencialmente bom. Mesmo com a maturidade que tenho hoje, ao menos em relação àquela época, reconheço que não suporto conversar com meninas que decidem que conversa é no tempo delas e fim. O que era quase uma lei para as primeiras meninas que me interessei. Sabe o que gosto dos chats? É que você manda uma mensagem e ela pode ser respondida a qualquer momento, seja agora, seja daqui a dez minutos, ou daqui a dez horas, ou no dia seguinte; não me importo se você visualiza e não responde na hora, porque eu visualizo e não respondo na hora. A única coisa que não suporto é a falta de resposta.
Qualquer um em sua sanidade trata a falta de resposta como ignorância, o desprezo, mas acontece que existem as pessoas que acreditam que vão “fazer um charminho” obrigando-o a mandar mensagem duas ou três vezes, que vão se sentir mais desejadas, “nossa que garoto insistente”, “nossa eu valho bastante né”, e eu não tenho saco pra isso. Não tenho saco pra gente que lê dicas de paquera na internet e sai praticando embora, quando pessoalmente onde nada disso existe, ela fique sorrindo que nem uma retardada e nervosa quando você não olha pra ela. Menina é tonta, né? Ela dá o número do telefone, fala que pode mandar mensagem, que pode ligar, se bobear até a cobrar, e aí acha mesmo que você vai ficar inseguro ao não receber uma resposta e não simplesmente muito irritado e se perguntando “o que é que estou fazendo da minha vida?”.
Encontrei esse padrão nas meninas mais novas, com dezessete ou dezoito anos, e peguei uma repulsa natural a elas. A Primeira Vítima tinha dezoito também, mas quer saber? Eu seria capaz de me interessar pela Primeira Vítima, ela não me irritava, só não era a pessoa certa. Essas me irritavam. É claro que não conseguia insistir por três semanas seguidas. Olha o tanto de menina no mundo pra eu ficar me estressando com isso, a Primeira Vítima certamente não era a única menina a ter os parafusos no lugar em algo tão simples quanto manter uma conversa.
Havia algo de muito errado comigo ao pensar assim e eu não poderia descobrir o que era. Você sabe quem sou com vinte-e-um, não sabe? Sou o melancólico incapaz de acreditar que alguém pode se interessar por mim. Como poderia imaginar que estava me transformando num canalha, num galinha, num cafajeste?
Era exatamente isso que estava acontecendo.
Enquanto meu lado melancólico me distanciava de uma menina, meu lado vibrante atraía cinco. Só que eu não poderia ver. Sempre estava prestando atenção na menina de quem estava me distanciando. As meninas que se aproximavam de mim, ao meu ver, jamais poderiam estar com algum sentimento por mim, eu não conseguia vê-las dessa forma.
Aos vinte-e-um, pela primeira vez, estava trabalhando em um lugar novo. Em uma cidade nova. Tinha assumido publicamente meu amor pela perseguição dos sons, pegar a estrada todos os dias me fez me despedir do the pillows, mas o Steely Dan deixei. Quem ganhou meus ouvidos foi o Yes, que na verdade já tinha iniciado seus trabalhos no capítulo anterior. Apresentei Owner Of A Lonely Heart para a Primeira Vítima, sabia? Que engraçado, não é? Much better than an owner of a broken heart? Sou um monstro.
Era último ano de faculdade. Ainda subiria pela Avenida Higienópolis muitas vezes. O fato é que se tornou impulsiva a busca pelos corações. Simplesmente não consegui mais ficar parado a partir do momento em que voltei a interagir com pessoas e parti meu primeiro coração. Precisava conversar, precisava ser interessante, e sempre conseguia alguém para conversar, sempre alguém estava interessada em mim.
Nunca parei pra pensar que estava no último ano de faculdade, precisava caprichar no meu Trabalho de Conclusão de Curso, e que eu nem queria me relacionar com alguém. Era impulso. Uma parte do meu coração se entregou a isso de maneira tão absoluta que algumas vezes pensei, seriamente, em voto de castidade eterno, como se eu realmente precisasse me importar com a castidade num momento onde sequer deveria me importar com relacionamentos. Consegue entender o que estava se passando? Eu também não. Só consigo entender que havia um problema.
Foi num espaço entre essas loucuras de castidade e uma das meninas irritantes que passei pelo round 2 com a Moça da Carta de Amor. Esse é um nome muito pouco generoso para ela, mas não quero falar dela, ela está flutuando em várias histórias minhas por aí. Várias. O que quero falar é que esse round 2 dilacerou meu coração de uma maneira que nunca havia acontecido antes, mesmo que ela não tenha o dilacerado e sim Deus com a sua realidade absoluta inquestionável que jamais me permitiu dizer “sim” pra ela. Até então continuava invicto, zero vezes meu coração partido por uma mulher.
Honestamente? Isso não importa. Também não quero falar de disputa de corações partidos, isso ainda não existia na minha cabeça aos vinte-e-um anos, eu ainda era sincero na minha crença de que ninguém se interessava por mim. Sim, era! Todas as vezes em que fui correspondido em minha vontade de ser interessante troquei os nomes na minha cabeça e tudo bem, continuei a pessoa mais desinteressante do mundo mesmo vivendo o contrário.
O que importa é que tive, pela primeira vez, a sensação de perder o chão. Pela primeira vez eu já não ouvia mais Steely Dan, nem Yes, nem Capsule ao voltar pra casa. Não queria ouvir mais nada. Não queria ter dito aquele “não”. Ela disse exatamente tudo o que eu queria ouvir, ela estava sendo sincera. Eu não disse “não” na minha vontade, disse porque Deus me mandou dizer. Me esquivei por um mês de me importar com o TCC, no mês mais crucial, o que veio a deformá-lo progressivamente ao ponto de terminar como terminou. Meu corpo me rejeitou, eu não queria comer. Minha alma não aceitava que eu tinha feito aquilo, ela se contraía, me perfurava com golpes de tristeza, cada evento positivo que acontecia logo era suprimido num processo de dessignificação que anulava toda sua positividade. Meu único amigo era meu próprio espírito que me confortava lembrando que Deus só manda a gente fazer o que é certo.
Veja, não gosto de cobrar nada de Deus. Juro que não acho errado pensar “nos planos de Deus para minha vida”, mas a verdade é que sou indiferente o suficiente para desprezar ficar pedindo por isso, simplesmente não me importo com o que Deus vai me dar de bom. Tenho uma fé permanente de que estou no roteiro dele, que toda vez que calo a boca e me deixo ser usado “os planos de Deus” já estão acontecendo em sua totalidade e tomo como único desafio calar a boca e me deixar ser usado. É um baita desafio. Nunca consegui cumprir cem por cento, nunca vi alguém conseguir cumprir também, então acho que é um desafio suficiente para me entreter por toda a vida.
Mas isso é metafísico.
O fato é que toda a minha crença foi abalada nesse evento e, pela primeira vez, quis entender “os planos de Deus”. Quis me apegar “aos planos de Deus”. Quis pensar que, no futuro, ele lembraria desse “não” que dei à pessoa que criou um palácio para mim dentro do coração dela e implorou para que eu morasse lá, e eu também implorei a Deus que me deixasse morar lá, mas ele disse “não”.
A única banda que me restou foi ALI PROJECT.
O ALI PROJECT não dá vida a nenhuma paisagem, ele é a minha reparação de danos. Você pode saber que não vou sair do ALI PROJECT da mesma forma que entrei, e que entrei porque não aguentava mais estar daquela forma. Ouvi ALI PROJECT quando cansei de tentar morrer, e ouvi ALI PROJECT quando cansei de estar longe de Deus, e ouvi ALI PROJECT quando voltei a viver em unidade, e dessa vez só me sobrou ALI PROJECT.
Quando estou ouvindo ALI PROJECT não precisa perder tempo me mostrando qualquer coisa. Não precisa perder tempo me dizendo palavras bonitas. Estou dentro de mim mesmo e não vou sair.
Não lembro do que aconteceu naqueles dias: não lembro quais aulas tive, quais lanchões comi, quais meninas paquerei, quais broncas tomei. Vagamente lembro de, algumas vezes, uma amiga minha ter me tirado da aula pra me levar pra tomar sorvete. Só lembro das dores de cabeça que senti no 933 de olhos fechados porque não estava conseguindo dormir, e da parede do meu quarto também porque não conseguia dormir.
Meu pai sempre me alertou: “olha, eu te conheço, a única coisa capaz de te fazer reprovar matéria no curso é mulher”. Acho que entendi o motivo.
Quer um consolo? Ainda não entendi os planos de Deus porque minha história ainda não acabou mas ela entendeu, compartilhou comigo, e tudo deu certo.
Acho que ela vai rir de mim lendo isso, mas que bom que contei essa história. Tenho essa dívida de ter parecido não me importar com tudo o que aconteceu tanto quanto ela, mas esse foi o homem que fui após dizer aquele “não”. Você não sofreu sozinha.
Meu pai viaja muito. Toda semana pega estrada e é sempre a estrada que passa pelo meu trabalho, que aos vinte-e-um anos era novo.
Por eu ter habilitação e precisar treinar, ele me deixava pegar o carro dele às vezes e levar até o trabalho, de onde ele continuava viagem. É um carro chiquérrimo, nem parece que a gente é pobre.
É que meu pai gosta muito de carro.
As únicas músicas que minha família ouve são louvores da igreja. Dos mais antigos, ainda. Não que eles detestem os novos, mas eles possuem os mesmos MP3s num pen-drive dos tempos em que 512MB era um absurdo e para eles é agradável o suficiente. Qualquer dia eu de presente coloco um CD inteiro da Laura Souguellis em MP3 ali, eles vão gostar, eles gostam de tudo o que está na igreja e é bom. Sempre digo que a bandinha de igreja do interior é o refúgio musical do Brasil.
Mas notei que o trecho entre Londrina e Cambé, a BR-369, é perfeito para o Beatles. E sempre quis conhecer os Beatles. No Parque Ney Braga tem uma passarela com réplicas do Big Ben, o ideal é que você passe por lá enquanto o Ringo Starr está estourando a bateria, embora tenha gente que por ter ouvido muito Metallica não acredite que o Ringo explode a bateria muito mais do que três Lars Ulrich. Quem é que liga para Lars Ulrich?
Não que soubesse de tudo isso até então. O carro chique do meu pai jamais tocaria um Beatles. Aliás, pensando bem, nunca diga “jamais” para meu pai. Tudo é possível pro meu pai. Meu pai só não consegue fazer o que ele não quer fazer.
E foi chegando de carro chique no trabalho que aprendi a identificar gestos corporais das pessoas. Aprendi a descartar coincidências quando elas ocorrem todos os dias. Sabe? Trabalho com informação, sei tudo o que acontece onde estou porque meu trabalho é saber, uma hora você para de teimar que as pessoas não têm fogo na xandanga. Elas têm sim.
Os homens são terríveis, eles mandam flores para mulheres mesmo que elas sejam casadas e mesmo que eles também sejam casados, discutem coisas obscenas em horário de almoço, mandam umas conversas estranhas para as mulheres e elas caem.
As mulheres? Quer saber? Sou homem, é instintivo odiar as mulheres muito mais do que os homens quando você quer se manter “certinho”. Odeio mulher que chega pertinho de você para você sentir o perfume dela, odeio mulher que só bate salto no chão perto de determinadas pessoas, odeio mulher que derruba umas coisas impossíveis de se derrubar para que você pegue num jogo de cavalheirismo diabólico onde você provavelmente vai olhar para ela de baixo pra cima, e pior ainda, odeio as que derrubam, viram a parte de trás pra você sem motivo aparente nenhum e abaixam empinando o bumbum. Também odeio mulher que descobre que é gostoso te ligar pedindo para resolver problemas pra ela, porque é gostoso conversar com você, só que ela é casada e tem um filho e o fato dela querer se divorciar há cinco anos não vai mudar isso.
É claro que odeio! Elas deixam evidente que você é um tarado, porque se fosse o menino bonzinho que acredita ser não conseguiria identificar que estão fazendo isso. É a linguagem de comunicação entre imaginações pervertidas: quanto mais perfeitinho o padrão é emitido, mais pervertida é a mulher; quanto mais perfeitinho o padrão é compreendido, mais pervertido é o homem. Você consegue reconhecer muitos pecados de ambos os sexos só nessa comunicação entre eles.
Elas conseguem fazer qualquer uma dessas coisas olhando para sua cara, torcendo para que você desvie o olhar, para darem aquele sorrisinho e pensarem “te peguei, otário!”.
Vocês não podem mais dizer que estou viajando, tontas. Sei o que vocês discutem. E vocês também não podem sentir nojo de mim por saber disso, por comentar disso: isso é sórdido, nem deveria existir. Só aguardem o próximo capítulo. Isso aqui é só uma introdução.
E quem se achava inocente, leu isso e começou a identificar a partir de agora (tanto que faz, quanto que nota): não me culpem, não perverti vocês, isso já estava na cabeça de vocês o tempo todo. Mais cedo ou mais tarde iria aparecer e provavelmente seria pior que agora. Quanto mais cedo corrigir esse problema melhor. Só não finja que não está aí porque o papai do fingimento é o diabo.
É claro que, sendo eu o moleque “certinho” que era, passar a compreender esse universo grotesco em movimento desde os dezoito anos me mudou. Piorou muito mais após os vinte-e-um, onde eu não só “ficava sabendo” das coisas como fazia parte desse jogo pagão bizarro também.
A “firma” é um lugar horrível, um verdadeiro desafio para quem quer manter a integridade, mas é o lugar padrão onde você vai trabalhar com informação na Pequena Londres e região então se você é como eu nem adianta correr. É lá mesmo que é pra ficar. É pra não se misturar moralmente mesmo. É pra não falar de órgão sexual das moças da mesa ao lado mesmo. É pra ficar constrangido se alguém falar de fazer strip-tease pra você mesmo. Não importa se é de brincadeira, porque ninguém te fala isso sem esperar que você imagine a cena. A mente dessas pessoas está criando cenas a todo momento em cima disso que eles falam, mesmo que não haja ação nenhuma, e só isso é suficiente para torná-las perversas e darem um monte de trabalho para Deus redesenhar seus neurônios depois. Isso se ele quiser. Será que ele vai querer redesenhar os seus?
Fui claro?
Todo esse passeio pela “firma” foi para falar de mim mesmo. Sim, porque nunca tive esses assuntos (até por não entender nada disso), mas tive que aprender a dizer “não” toda vez que essas imagens estouravam a minha cabeça como um tiro de bazuca. Não vou contar o motivo, mas você já sabe. Se não sabe, não queira saber. Você não precisa.
Foi nesse período que conheci a Miss Bondade. Mais velha que eu, mas com cara de dezesseis (não que eu não tenha uma cara de quinze). Ela era a mulher mais linda com quem eu conseguia me imaginar. Na verdade ela criou esse espaço na minha imaginação onde cabia eu namorar um mulherão, porque era só aparecer meia dúzia de rugas no rosto dela e ela começar a vestir umas roupas de quem saía de casa para ir em outros lugares além da padaria que ela se tornaria um mulherão. Não era sequer um potencial desperdiçado. Estava na cara que uma hora ou outra isso aconteceria.
Bastava um namorado que entendesse um pouquinho de moda.
Eu poderia ser esse namorado sem problema nenhum. Só tinha um problema: moda exige imaginação e a minha não estava no melhor dos estados, estava lotada de alçapões.
Deus capricha nas meninas inocentes e bondosas.
As faz com a defesa mais impenetrável de todas para quem tem uma consciência. Se mandar uma cantada para uma dessas, ela não vai entender nada e você vai ficar constrangido. Elas não sabem falar muito bem com os garotos, então as conversas possuem uma atmosfera pesada se você não tiver uma confiança monstruosa que até então eu não tinha. A sua consciência vai te paralisar se a sua imaginação resolver caminhar para onde não deve, você vai se sentir a pior pessoa do mundo, pedir por dias para Deus te ajudar a nunca mais imaginar aquilo. Em suma: elas são imunes à perversão, simplesmente imunes.
Isso é muito bom, especialmente para elas. Para você, nem tanto.
Nunca consegui decifrar se a Miss Bondade gostava de mim. Até hoje. Se não tenho medo de ter ferido ela é porque sei que ela é uma moça muito querida por Deus, já vi essa menina fazer milagres e não estou brincando. Entra na casa dela pra ver se Deus não vai te falar “toma cuidado moleque, eu estou cuidando dela”, primeiramente através do olhar do pai dela, e depois do olhar da carabina pendurada no quarto do pai dela. Deus jamais me deixaria fazer algum mal a ela, eu pedi a ele taaaaaaantas vezes que não deixasse!
A verdade é que, observando hoje, ela é a única menina que realmente não sei explicar o que aconteceu. Não sei se nós “demos errado”, acho que se eu fosse mais insistente poderia de fato conquistá-la, até os pais dela gostavam de mim, eu… não sei. O problema não foi esse. O problema foi que ela trouxe de volta alguns traços mais sombrios da minha personalidade, talvez ao ler essa descrição aqui você entenda que algumas coisas não se resolveram até hoje.
Chegou um momento onde não aguentava mais me sentir tão impuro, tão desmerecedor de alguém que gostava. Deixei de acreditar que ninguém se interessava por mim para acreditar que não merecia ser do interesse de ninguém, passei a me questionar se realmente deveria insistir em meninas tão boas quanto ela ou algumas outras que conhecia, ou se deveria procurar alguém “do meu tamanho”. Foi o primeiro ataque à minha auto-estima em si, ao meu ego, um sentimento muito mais devastador que se sentir desinteressante porque isso nem me atrapalhava mais.
Fora isso, teve um episódio onde algo terrível tinha acontecido comigo e não soube a quem recorrer. Meu coração apitou na hora, “Miss Bondade! Miss Bondade!”, então saímos e tivemos a conversa mais desastrosa que já vi. Acho que se tivesse conversado comigo mesmo seria melhor.
Isso me fez perceber outra coisa: ela era totalmente crua em lidar com rapazes, essa era a falha de caráter dela, mas não explicarei. Eu teria de construir todo o seu universo masculino. Eu, que já queria uma companhia para conversas, para lanchões nervosos, para viagens, teria de ensiná-la que o olhar de indiferença dói, que um abraço mal-dado faz você se sentir indesejado, que homens não são mulheres para acreditarem no estagnamento então palavras de impulso não fazem diferença, aliás são horríveis e parecem cobrança e nós odiamos ser cobrados, mas homens não são mulheres para terem uma identidade estável então palavras de confiança mudam a vida deles.
Poderia fazer isso se já não estivesse tão machucado de tudo aquilo que tinha mencionado. Minha imaginação se curou muito de lá pra cá, muito mesmo, e creio que o esforço que fiz por ela foi importantíssimo pra isso, mas não fui capaz de manter esse esforço por mais de seis meses. Um dia desisti.
Foi, talvez, a maior mentira que já caí nos meus relacionamentos. Nunca fui impuro demais pra ninguém, não existe “ser impuro demais pra alguém”. Todos os meus amigos ficaram tristes comigo quando isso aconteceu. Todos acreditavam que daria certo. Que eu só precisava ter um pouco mais de confiança e ser menos tímido em fazer o que era certo.
Tudo o que pude fazer foi compôr uma música chamada “Subzero By Anxiety”, deixar o pavio da Miss Bondade aceso e ir embora. Uma vez ela ficou feliz porque eu estava presente em um evento importante para ela. Montou um sorriso especial pra mim, olhou nos meus olhos e disse que não seria a mesma coisa se eu não tivesse aparecido.
Não pude acreditar. Mas não foi um “não pude acreditar” como os outros, até os vinte anos. Meus vinte-e-um anos destruíram a minha auto-estima. A verdadeira, dessa vez.
Assim que fiz vinte-e-dois, tive a Namorada. Lembram dela? A personagem mais importante dessa história aqui. Se isso indica que o personagem que está se narrando aqui para o senhor leitor é o mesmo de lá? Não sei, vai da sua imaginação, vai da sua flexibilidade de tentar fazer as ligações e ver o que funciona e o que não funciona.
Ter a minha auto-estima destruída, por incrível que pareça, não foi tão ruim a longo prazo. Deixei de me importar com ela. Decidi abandonar as pressões do “merecimento”, mesmo que isso significasse que teria de ser mais generoso com as meninas que tentassem algo comigo, porque não faria sentido acreditar que a Miss Bondade cabia na minha mente e ser ríspido e não caber no coração de meninas que me viam como o Mister Bondade. Há! Essa vai render uma boa, espera um momento, serei breve sobre a Namorada porque o episódio mais legal foi o do ciúme da Garota Mais Legal do Mundo e esse eu já contei.
Não falei em nenhum momento da Garota Mais Legal do Mundo por esse motivo, também. O coração dela deve ser uma maquininha de algodão-doce, você tira um pedaço e ele nasce de novo instantaneamente. Nem ouso tocar nessa menina. Também tem o fato de que não dava pra paquerar ela, por mais que ela tivesse tentado me beijar duas vezes, ou três, não lembro, porque nossas conversas se resumiam a foguetes, samplers, matemática, astrologia, instrumentos da Yamaha e videogame. Seria mais fácil paquerar um homem. Ah, e acho que esse ano ela arranjou um namorado, mas não contou pra ninguém. Ops! Não conta pra ninguém.
Sobre a Namorada: conheci ela mais ou menos quando comprei meu primeiro carro, um Celta, que pode ou não ser rebaixado, pode ou não ter neón, dependendo da imaginação do leitor. Conheci ela quando ela precisava de algo que eu podia oferecer, então fiz o que qualquer cafajeste faz: ofereci a ajuda com um cavalo-de-tróia e ela não só aceitou o cavalo como abraçou o cavalo, beijou o cavalo, apostou no cavalo e por aí vai.
Fiquei meio assustado, pra falar a verdade. Ela era uma menina meio doida. Não lembro quantos dias levei pra conseguir o telefone dela, mas foi algo assim, “recorde”. Era óbvio que ela era minha Namorada. Minha mãe tinha dito que a menina apareceria naturalmente, gostaria de mim naturalmente, então eu não precisava ser tão galinha. Só me recomendou escrever uma cartinha pra Deus pedindo o que eu queria numa menina. É sério! E o pior é que fiz isso mesmo.
Aí apareceu ela de pára-quedas na minha vida.
E foi engraçado porque, pela primeira vez, a Primeira Vítima foi superada. Superada, mesmo. A Namorada era meio maníaca. Eu fazia uma pergunta e ela me respondia com um texto de 20 linhas, aí mandava um pedido de desculpas por ter escrito tanto. Achava a coisa mais fofa do mundo. Ela fazia isso toda hora e não perdia a graça. Amo garotas que escrevem muito, me sinto menos só porque também escrevo muito.
Sinto que estou conversando com alguém de imaginação grande, que dá grande valor à sua própria vida, cujos sentimentos vão se tornando um labirinto de palavras que se perdem em si. Aí você, cuidadosamente, vai lá e tira ela desse labirinto com um “aham, sei, sei, é verdade, amei o que você falou” e um sorriso no rosto. Gostando de uma pessoa assim você vai se divertir muito, o que é exatamente o oposto de gostar de uma pessoa que lê Hayek e acha que a única razão para se gastar palavras é falando de coisas que não existem mas parecem inteligentes.
É, leitora, eu sei que você se sentiu ofendida! Mas juro que não estou falando de você. Sempre achei que você tem conserto e ter desistido de você não muda isso. (mentira, ela não leu até aqui, o texto não teve números e dados)
Ela era toda charmosinha, ficava meio tonta quando falava comigo mas era inteligentíssima. Era lotada de coisa pra fazer, eu queria ajudar, mas sequer sabia dirigir meu carro direito para levá-la aos lugares.
Infelizmente conheci ela numa época bem horrível de sua vida.
Sabiam que a Pequena Londres é uma cidade comercial? O que significa que a crise varreu a cidade. Não tem mais carro, o centro está vazio, não dá pra saber muito bem o que vai acontecer. E olha que o esforço administrativo do prefeito foi fora do comum, se tornou admirado no Brasil todo, mas não tem como fazer milagre com cidade comercial.
O desemprego varreu a casa da Namorada. Passou o rodo, mesmo. Foi tão feio, mas tão feio, mas tããããão feio, que ela teve que cortar a internet e vender o celular para pagar contas. Você consegue imaginar, leitor, que existe gente assim? É, é isso aí, bem-vindos à minha vida. Não poderíamos mais conversar pela internet e ela estava o tempo todo ocupada dando um jeito de conseguir dinheiro para pagar as contas de casa.
Sabe o que mais aconteceu de legal? Todo o super-bonder que usei para colar minha auto-estima foi embora com o fato de que eu me sentia incapaz de dirigir meu carrinho, porque meu pai me botava pressão demais. Via tantas pessoas dirigindo pior que eu e andando a cidade toda e eu não poderia nem pegar.
Sim, é isso mesmo que você leu: comprei um carro com meu dinheiro, após ter me formado na faculdade de engenharia, e meu pai estava me proibindo de usar porque achava que eu não dirigia bem o suficiente. O pior é que eu agradeço esse safado? Demorei muito pra entender, mas o fato é que pego esse carro todos os dias numa rodovia movimentada, perigosíssima, onde ocorre morte direto. Todos os dias que tento andar na velocidade da pista ali alguém mostra o dedo do meio pra mim. Ele só fez a prevenção, meio exagerada como sempre. Ele também me disse “gente que se forma em engenharia e pega carro freqüenta Santarena e fica o dia inteiro ouvindo sertanejo universitário. Primeiro quero confirmar que esse fenômeno não vai pegar você”, e eu ri muito, mas era importante.
Isso entendi depois.
No momento só me sentia a pessoa mais impotente do mundo porque não podia dirigir meu carro e não podia conversar com a Namorada. Também andava ouvindo bastante ALI PROJECT, e não preciso repetir o que acontece quando ouço ALI PROJECT, não é?
Chegou um momento onde minha cabeça montou uma cosmologia demoníaca para justificar tudo o que estava acontecendo: Deus estava protegendo ela de mim, assim como provavelmente devia ter protegido a Miss Bondade. Ter montado essa cosmologia demoníaca e acreditado nela, no entanto, me fez montar um contra-ataque: percebi que Deus poderia estar me protegendo dela também. Fui homem o suficiente para recusar ambas e só deixar tudo se tornar claro para definir o que estava acontecendo de fato: o tempo foi passando e foi ficando nítido que não teria como darmos certo, ela se dedicava a umas coisas meio absurdas que exigiam que o namorado dela também largasse a própria vida e se dedicasse. Eu claramente não era esse rapaz, já larguei a vida há muito tempo, mas por outro ministério completamente diferente.
Ela certamente será uma missionária. Não dou mais dois anos pra isso acontecer. Tenho até um amigo pra “arranjar”, só ela pedir, mas preferimos parar de nos falar. Tivemos um curto relacionamento, mas bem eufórico, com trocentas ligações no celular, um colocar crédito pro outro e por aí vai. Não valia a pena perder tempo tentando voltar “só na amizade”.
Finalmente peguei meu Celta sozinho e haveria show dos Beatles todo dia na Pequena Londres. Meu Deus, como esperei por isso. Sempre pensei que, se fosse para largar o the pillows e ficar nesse sofrimento de esperar os Beatles tocarem para mim, compensava pegar o the pillows de volta de uma vez. Mas o the pillows possui uma aura de ingenuidade que não condizia com a minha realidade naquele momento, ao menos na minha cabeça.
A última moça de quem falarei nesse capítulo se chama Miss Maldade. Não se intimidem com o nome, falei apenas de garotas maravilhosas que casarão com homens sortudíssimos e a Miss Maldade não é diferente. Você sabe por que ela é Miss Maldade? Não porque ela é realmente má, mas porque ela me fez entender a mente da Miss Bondade.
Até conhecê-la eu tinha dúvidas de que mulheres conseguiam ir muito longe por seus pretendentes em sutileza, hoje simplesmente fico espantado em como ela conseguiu quase me conquistar sem mandar uma cantada sequer. Acontece que a Miss Maldade é mestre na técnica do “posicionamento”, aposto que é a melhor goleira que já conheci. Espero que ela não acredite que estou rindo dela porque não estou, não quero fazer ela se sentir mal em nenhum momento. Acredito que, de todas as meninas, ela foi a que mais me fez bem. Não aceito que ela não consiga alguém melhor que eu.
Com tão pouco ela quebrou todas as minhas fortalezas e quase, QUASE, me ganhou.
O resultado de todas essas experiências foi um rapaz de alma cansada, sendo parasitado ocasionalmente por garotas bizarras. Já percebia que estava “acendendo o pavio” das meninas, que era meio cafajeste, mas não tinha força nenhuma para parar isso. Era um jogo que não queria ter entrado. Só conseguia pensar em como sair dele mas, quanto mais pensava, mais meninas apareciam, mais amigas desistiam de só me contar seus problemas para começar a mandar cantadinhas, mais eu correspondia a essas cantadinhas impulsivamente por não acreditar que levariam a sério, mais elas levavam a sério, mais tudo ficava errado. Uma hora também percebi que estava sendo refém da minha personalidade vibrante: meu coração passou a gostar de ser paparicado por pessoas que tinham melhorado por minha causa, uma moça ou outra passaram a me mandar foto perguntando se estavam bonitas, dizendo que minha opinião mudaria o dia delas, tive de cortar isso rápido antes que fosse daí pra pior.
A realidade é que esse jogo é um saco. Você não consegue o que quer dentro dele, só dor de cabeça, só desgraça. Mesmo entrando nele sem querer o seu ego é transformado de uma maneira que, em algum momento, você se torna mesmo um canalha. Você quer mesmo brincar, quer mesmo apenas criar números, quer mesmo dominar todas as técnicas. Você se torna um pagão.
É primordial que entendam que acreditar que é um coitado, ou ser um coitado, nunca vai te fazer bem. Em algum momento acreditei que não ser interessante pra ninguém me ajudaria a não me envolver com pessoas erradas, mas isso é mentira. A começar, todo mundo é interessante pra alguém. Toda vez que perceber que está sendo interessante terá uma reação negativa, seja a de rejeitar e fugir da realidade, seja a de abraçar pervertidamente a realidade decidindo se aproveitar disso. Simplesmente aceitar que é interessante e viver com isso fica fora de cogitação, sendo que é a opção certa.
A Miss Maldade me trouxe a saída do jogo.
Como a conheci? Ela estava defendendo gols. Ela se aproximou de mim através das minhas amigas de uma maneira que eu simplesmente não pude perceber. Chegou, alegremente, no meio de todo mundo, cumprimentando todas as meninas como se fossem as melhores amigas do mundo, sentando-se à mesa conosco por um tempo. Ela era uma moça elegantíssima, linda também, mas chamava demais a atenção como ela conseguia se vestir bem sem fazer escândalo com as roupas.
Garotas, não caiam nessa de que “homem não liga pra roupa”. Só uns animais não se importam com o que você está vestindo. Não é que há um padrão para se vestir, é que exige criatividade, você precisa criar imagens bonitas na cabeça das pessoas com cada visual que adota. Caso queira isso, é claro. Mas caso não queira, por que me lê? Não me interesso pela visão de pessoas que moram debaixo de céus consumidos por nuvens negras. As roupas são sua personalidade visual, embora o corpo seja o templo. Esse ditado juvenil que diz sobre “pintar as paredes do templo” ser fazer tatuagem é um engano, as roupas e os acessórios são a pintura, a tatuagem é uma perfuração na estrutura interna. Mesmo que não tenha opinião nenhuma sobre tatuagem porque não me importo com opiniões. A Miss Maldade tinha sua tatuagem, fez na adolescência, pra mim tanto faz. Só estou falando de realidade.
O fato é que se vestir bem afeta todo o espaço na imaginação que a outra pessoa dedicou a você. Estamos falando do mundo adulto onde tudo importa, não do mundo adolescente onde nada importa. E “se vestir bem”, como disse, não tem a ver com um padrão elegante, essas baboseiras estéticas que inventam por aí, mas um visual que impõe a imaginação que deseja que as pessoas tenham de você. Caso goste de ser elogiada detalhadamente, imponha isso à realidade, coloque brincos bonitos, pulseiras, e as pessoas que reparam os detalhes vão poder reparar isso. Caso goste de seu rosto, faça com que seu rosto seja notado. Caso goste de sua boca, faça com que sua boca seja notada. Mas caso goste que as pessoas reparem na sua bunda, vista uma calça bem coladona, empine bastante ela e depois fique reclamando na internet da futilidade dos homens. É assim que funciona. É simplesmente o mesmo motivo pelo qual você arruma seu quarto. Não tem a ver com imposição social, com preconceito, com injustiça, as pessoas simplesmente precisam da correspondência visual com a realidade ou tudo vira bagunça como é a universidade.
A Miss Maldade me ensinou tudo isso. Não, ela não sentou e me contou. Acontece que, quando saíamos entre amigos, conforme ela foi progressivamente conquistando todas as minhas amigas, ela ia me testando com seu arsenal de identidades visuais: num dia queria que eu reparasse no rosto dela, no outro em seus acessórios, no outro na maneira como ela caminhava. Ela conduzia meus olhos como bem entendia e sabia disso, eu também sabia disso, não me importava porque ela nunca tentou me levar para algum lugar impróprio.
Ambos gostávamos de Capsule.
Ah, é verdade. Ela conseguia arrancar um elogio meu toda santa noite, desde a primeira vez que nos vimos. Não gosto de elogiar, venho da “firma”, onde todo elogio é uma derrota. Ela também conseguiu me fazer assistir os filmes que ela assistia.
Só havia um problema: ela era a Miss Maldade e eu era o Mister Bondade. Lembra aquele problema seríssimo que tive com a Miss Bondade? Numa inversão bizarra da realidade me tornei a Miss Bondade dessa moça. Veja, com vinte-e-um anos eu era um jovem indefeso com uma imaginação toda perfurada pelas perversões, mas com vinte-e-dois Deus já tinha me ajudado a desarmar grande parte dessas ratoeiras da minha mente. Quando se é um filho das estrelas, é assim: você faz um pedido para a estrela cadente do papai do céu, a estrela cadente cumpre. Só não queira ver isso se cumprindo porque estraga a surpresa.
E a Miss Maldade vem do mesmo ambiente de “firma”. O despertar dela para a realidade foi tardio, o coração dela foi bastante dilacerado pelos lobos da noite, me conhecer foi um evento que virou o mundo dela de ponta-cabeça. A minha inocência fez de mim, para ela, um herói. Ninguém nunca contou a ela que eu não era inocente. Nem que não era um herói. Tentei mostrar isso a ela, mas não consegui alcançar o sentimento de auto-condenação que ela tinha.
Uma parte dela achava que os joguinhos que ela fazia comigo eram obscenos como os da firma, mas não eram, nunca foram. Eu amava os joguinhos. Eu confiava nela, sabia que ela fazia porque queria meu coração, não porque queria rir da minha cara. Ela também ficava tímida conversando pela internet, só conseguia dominar a situação pessoalmente, e isso era um problema porque tanto eu quanto ela queríamos conversar o dia todo. Queria falar para ela como ela estava linda no dia anterior, sempre evitava elogiar todos os detalhes na hora porque aí poderia elogiar alguns no dia seguinte, ela ficava tão feliz!
Quando percebi a luta dela contra ela mesma pra fazer isso, quando a vi chorar pela primeira vez por isso, lembrei que a perversão dificilmente tem a ver com o que você faz mas com o motivo pelo qual está fazendo. E o diabo não tem a ver com acusá-lo do que você faz, mas com convencê-lo de que está fazendo com a pior das intenções principalmente quando não está. A realidade é que você já venceu o diabo, mas sua vida se torna um inferno quando deixa de acreditar nisso. A vida dela estava um inferno.
Sentia-me cada vez mais impotente vendo ela dar um passo para frente e cinco para trás, e não era bom o suficiente para puxar ela e dizer “olha, chega de chororô, eu quero namorar você”. Estava aprendendo como fazer isso ainda, embora seja só “fazer isso”. Todas as coisas são assim. Só quem já chegou lá e fez, ou não tem nenhuma armadilha montada dentro da própria cabeça, sabe como é “só fazer isso”. Acontece que minhas aventuras debaixo do céu estrelado se trataram de desmontar armadilhas mentais que montei desde a infância.
Vi que meus impulsos de light fuse and get away estavam aflorando, mas decidi pela primeira vez lutar contra eles. Decidi que não entenderia uma mensagem grosseira como uma bomba de rejeição irreversível, que riria das piadinhas sem graça, que não ficaria chateado quando ela não pudesse estar comigo. E lutei por isso. Decidi porque ela tinha amarrado meu coração, embora não tivesse conseguido capturar ainda. Sabia que ela queria estar comigo. Ela abria um sorriso quando eu estava por perto, me abraçava de uma maneira que mostrava que, se pudesse, não me largaria nunca.
Esse se revelou o verdadeiro impulso maligno da minha vida. Estava a ferindo. Conforme ela me via indo embora ficava num misto de impotência, raiva, tristeza, e percebendo que não deveria ter se envolvido com o rapaz que, mesmo de aparência tão inocente, tão ingênua, era apelidado pelos colegas de Light Fuse And Get Away.
Um belo dia, saí com uma amiga minha que conheço há anos e sempre tive uma amizade bonita. Sem nada demais, porque ela era um mulherão. Em todos os sentidos. Essa amiga, como eu, ouvia Beatles. Essa amiga olhou nos meus olhos por tempo suficiente para me prender neles. Disse, sorrindo:
O pavio está aceso, mas tente ir embora agora.
Nesse dia, desisti da Miss Maldade. E também desisti de jogar.