Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

i: meu primeiro céu. meu primeiro coração partido. meu primeiro trânsito.

29 de outubro de 2016

A primeira vez que me peguei partindo um coração foi aos vinte anos.

A vida era muito simples naquele tempo, embora muito mais complicada na minha cabeça. Vinte anos. Não é que “antes da modernidade” as pessoas se casavam com dezesseis, dezessete anos: a Pequena Londres fica no interior do Paraná, e meu palco é um bairro num lugar conhecido pelos próprios moradores e não muitas outras pessoas da cidade. É muito fácil se deparar com gente que estudou contigo durante o ensino fundamental, médio, casada e com ao menos uma linda filhinha aos dezoito anos.

Aos dezessete anos acho que estava trancado num quarto por dezesseis horas do meu dia — as horas que não eram para a faculdade — , e nessas dezesseis horas tudo o que sabia fazer era dormir, jogar videogame, resolver exercícios de cálculo diferencial e integral, mecânica e circuitos elétricos, escrever besteiras adolescentes nos meus cadernos, nos meus blogs e em redes sociais. Aos dezessete anos eu já conversava com uma de minhas primeiras vítimas, ou duas, ou três, não lembro ao certo. Aos dezessete anos também comecei a viver meu pior pesadelo dentro da minha própria cabeça. Não tinha tempo, realmente, para pensar em corações aos dezessete anos. Para mim era piada de mau gosto, gostava de exibir minha incapacidade de me relacionar com as pessoas como um troféu, era legal, era nerd, tinha tudo a ver comigo e com minha mente auto-destrutiva por estar distante de tudo o que poderia construir algo em mim. Aos dezessete, se precisasse, eu me ancoraria na pior garota, com quem jamais teria alguma chance, só para me sentir mal e incapaz e desistir disso porque tinha mais o que fazer.
Aos dezessete eu gostava, muito, da minha faculdade.

Mas que importam os dezessete anos?

Não me lembro realmente com qual idade passei a ver no céu a esperança, por precisar de esperança, por precisar do reencontro com o desenhista do céu e das estrelas. Suspeito que tenha sido aos dezessete. Não tem como ter sido com dezesseis, aos dezesseis tudo era tão normal! Não tem como ter sido com dezoito, aos dezoito meu espírito já estava em coma, com médicos desesperadamente tentando reanimá-lo com melodias.
Só sobrou dezessete. Acredito que a ciência está certa dessa vez. Foi dezessete.

Aos dezessete subi pela primeira vez num prédio da Pequena Londres e fiquei observando a paisagem da cidade por uma madrugada inteira. Se meu corpo tivesse deixado, teria sido ininterruptamente. Estava com uns amigos e alguns amigos de amigos, pedi para um dos amigos de amigos tirar uma foto pra mim porque não tinha celular (aos dezessete eu não trabalhava), mas por algum motivo nunca mais vi ele então essa foto se perdeu pra sempre.
Não tem problema.
Tenho essa foto na minha cabeça até hoje.

Era um dos melhores prédios da Pequena Londres. Localizado na região do centro, próximo da Avenida Higienópolis, que para o leitor significa “é, ele estava exatamente no centro da cidade”. Conseguia ver a Catedral e a Alameda à sua frente, conseguia ver as casinhas da Zona Norte completamente iluminadas, os prédios da recém-formada Gleba Palhano ao Sul, o autódromo e o Estádio do Café; e um campo lindo porque a Pequena Londres não está cercada por montanhas e morros, nem por água, nem por qualquer outra coisa: é uma cidade que celebra a liberdade, que faz o mundo parecer infinito, onde você sempre será o centro do universo, sempre será uma estrela. A Pequena Londres não cria meros moradores, a Pequena Londres cria filhos das estrelas, em especial porque os prédios continuam sendo construídos mas as estrelas continuam a brilhar.

E eu, aos dezessete anos, percebi aonde estava pela primeira vez. Percebi que estava brilhando pela primeira vez. Percebi que, ao ver as pessoas apagadas, queria ajudá-las a brilhar novamente. Percebi que queria ser devolvido ao meu pai celestial mesmo que não acreditasse mais em sua existência.
Eu, aos dezessete anos, passei a viver com intensidade a dualidade da personalidade vibrante, brilhante, que acreditava nos finais felizes e na capacidade de ajudar as pessoas contra a personalidade melancólica, reservada, desconhecida, que só aguarda pacientemente o final de cada dia. Algo muito normal. Só se torna um desastre completo quando nas mãos de quem tem muita imaginação e pouco carinho por si mesmo.
Ambas as minhas personalidades ou, melhor dizendo, ambas as partes da minha personalidade são importantes para todas as histórias que posso contar, mas existe uma verdade que preciso esclarecer porque pode facilitar a sua vida: não importa quantas pessoas elas ajudem, personalidades vibrantes são verdadeiros monstros devoradores de corações e devem ser aprisionados o mais cedo possível para pararem de prejudicar o mundo inteiro com suas ambigüidades criminosas. Aos dezessete eu nem tinha como saber disso.

Ah, tanta coisa interessante se passou! Mas hoje quero me ater aos vinte.


A primeira vez que percebi que parti um coração foi numa época perturbada da minha vida aos vinte anos, mas não era algo realmente preocupante. Aos vinte tudo estava muito melhor. Estava passando por uma turbulência na minha alma e acreditando que todo meu brilho tinha sido jogado fora. Não conseguia mais me alegrar, não queria fazer mais nada, só queria resolver meus problemas de cada dia, chegar em casa e dormir. Mas passaria. Um bom cristão enfrenta qualquer tempestade.

Foi nesse contexto emocional que conheci a Primeira Vítima: voltando da faculdade em algum dos dias da semana de provas, semana onde todos os Fatos Importantes que podem acontecer com um universitário acontecem, encontro uma moça chorando no ponto de ônibus. Ela era muito bonita, de verdade. Só que era daquelas meninas meio bonequinhas, baixinhas, de bochechas redondas e rosadas, e no dia em que nos encontramos pela primeira vez ela estava usando um vestidinho rosa brilhante muito fofo. Jamais pensaria em ter algo com uma menina dessas, é apelação, é o tipo de menina que imediatamente entra na sua imaginação como “irmã mais nova”.

Eu, sem intenção nenhuma de nada que não ajudar já que é fisicamente impossível resistir ao choro de uma garota, resolvi perguntar:

Ei, o que aconteceu?

Pode me falar a verdade! Eu sou gorda, né? Olha pra mim! Não consigo parar de comer. Comi tanto chocolate hoje, mas tanto chocolate, que mesmo tendo vomitado mais da metade eu vou virar uma bola!

Não soube muito bem como reagir. Era muita informação de uma vez só. OK, ela tinha problemas de auto-estima como aproximadamente cem por cento das meninas da idade dela. Só que estava muito eufórica contando tudo isso a um estranho. Não só contando como se sentia, mas já abrindo sua doença como se fosse uma situação de vida-ou-morte. Talvez fosse, mesmo.
Entretanto, ainda que não soubesse como reagir, eu reagi. Peguei uma certa firmeza no olhar que nunca tive e disse, com naturalidade:

Achei você bem bonita, pra falar a verdade.

Era sincero. E não só era sincero como exalava sinceridade. Consegui ver o semblante dela mudando um pouquinho. As bochechas se encheram também. Ela era linda de bochechas cheias, uma pena que provavelmente acredite até hoje que isso é problema de gorda.

O fato é que aquele simples elogio alegrou um pouquinho ela. Não era pura mimadice, ela não estava fazendo pra chamar atenção, só era muito simples fazê-la se sentir bem porque ninguém oferecia a ela o simples. Mesmo que ela merecesse tanto. Ela, como aproximadamente cem por cento das meninas da idade dela, era um pouco problemática, meio mal resolvida com os pais (como eu também era aos dezoito) e tinha uma certa tendência a torná-los um assunto onde ela os ofendia às vezes com carinho às vezes com muita raiva. Coisa de quem tem dezoito anos.

O evento raro era que, até então, eu nunca tinha conhecido alguém com… Bulimia? Realmente não lembro o nome da doença e não me importo, assumo que era burro demais para nomes na época. Agora estou melhorando. É que não preciso saber o nome de “se olhar no espelho, enxergar alguém muito gorda no lugar da pessoa muito bonita que se é, sentir muita raiva e cutucar a garganta com algum objeto longo pra vomitar” se ouvi dias e mais dias de confissões sobre isso, eu sei o nome da Primeira Vítima, saber esse nome é muito mais importante que saber o nome da doença dela. Mas vou jogar no Google depois e ver se acertei o nome porque agora me importo.

Nós trocamos nossos telefones naquele mesmo dia. Já tinha me acostumado a usar WhatsApp, embora não existisse WhatsApp Web ainda e, justamente por isso, eu não desse muita atenção ao WhatsApp. Tinha um grupo de amigos não-tão-próximos-assim porque ainda não tinha recuperado muitas das minhas habilidades sociais, que se deterioraram quando entrei no coma espiritual aos dezoito, e algumas pessoas da internet que conversam comigo quando precisam de algo. E agora ela.

Você já entendeu tudo o que estava acontecendo aí, não é?

Se tivesse a mente que tenho hoje, mesmo não conhecendo a história toda, tenho certeza que saberia dizer que ou isso terminaria em namoro ou terminaria em uma explosão nuclear. Sabe o que é pior? Todas as pessoas ao meu redor sabiam disso. Um dia mencionei ela a esse grupo de amigos e amigas não-tão-próximos e grande parte das pessoas riram, fizeram piada. Fiquei embaraçado, mas não acreditei que a piada existia justamente pela seriedade da situação.


Talvez a melancolia seja o atributo dominante em qualquer ser humano que a possui. Não existe corrente negativa mais forte na alma que a do não-pertencimento, a sensação de que está descolado da realidade, analisando tudo como um fantasma que não tem importância, talvez sequer participação, na seqüência de acontecimentos e portanto é incapaz de influenciar e ser influenciado por tudo. Nada disso é real. Sempre se está influenciando e sendo influenciado por tudo, ao menos enquanto existir. Mas você, afinal de contas, existe?
Quando tudo isso constantemente passeia pela sua mente não há auto-estima, felicidade, técnica que possa vencer. Ele domina. Só a razão, ou melhor, só a fé é capaz de subjugar algumas dessas questões (as mais destrutivas, geralmente) ali dentro; outras ficam lá, indo e voltando para sempre, aparentemente inofensivas mas incomodando.
Quando minha vida está sem brilho sou a pessoa mais melancólica que já conheci. Nada tem valor, nada significa muito de fato pra mim. E, honestamente? Eu não me importo.

Não significa, no entanto, que não me importar me previne de algumas conseqüências terríveis disso: aos vinte, eu era incapaz de acreditar que alguém pudesse se interessar por mim. Quer saber? Até hoje não entendo como isso acontece. Talvez por ter de conviver comigo mesmo o dia todo e já não me espantar com mais nada. Só que, a essa altura do campeonato, acreditar que não acontece já seria uma negação deliberada da realidade e quem nega a realidade é castigado pelo Pai das Estrelas.
Não estou brincando. Realmente acreditava que, com vinte anos existindo na Terra, só uma pessoa tinha gostado de mim: essa eu não poderia negar, ela me escreveu uma carta de amor e contou que planejava se casar e ter filhos comigo, mas não considero que parti o coração dela ao dizer “não” porque nos partimos mutuamente. Eu também queria, quem não quis foi Deus. É outra história. Juro que já contei em algum canto.
Aliás, isso aconteceu apenas alguns meses antes de eu conhecer a Primeira Vítima. Já tinha vinte anos. Ela provava a gravidade dos defeitos da minha melancolia: acreditei fervorosamente que todos os elogios dela — e ela me elogiava muito — eram mentiras, apenas tentativas fracassadas de fazer eu me sentir melhor. Nem após receber essa carta isso mudou. Foi só depois da outra carta (sim, tivemos um round 2! Ou esse foi o 3?), que veio após uma série de eventos usados por Deus para conversar comigo e dizer “Bom dia meu amor! Ou você começa a enxergar o valor que as pessoas te dão, ou vai parar de perceber o valor que eu te dou”, que comecei a prestar atenção que ela estava sendo sincera. Aos vinte e um anos de idade.
Sinais corporais também não funcionavam comigo aos vinte. Tenho uma confissão a fazer: durante essa história que estou contando ocorreu um spin-off, de uma outra menina, que me convidou para ir ao cinema e “quem ela tinha convidado a mais acabou não aparecendo”. Então assistimos um filme todinho, tomamos sorvete juntos, nada aconteceu, a menina ficou meio frustrada mas aceitou. Depois de uns meses ela me descreveu a frustração e eu ri ao mesmo tempo em que me senti bem mal. Só devia ter rido. Se tivesse percebido só teria ido embora. Eu sou menino de igreja, não fui feito pra sair com desconhecidas e beijá-las no primeiro encontro.

Você consegue imaginar o monstro que a Primeira Vítima estava encarando?


Nessa época, estava tomando um dos passos mais importantes da minha vida: aprendendo a dirigir. Não que eu quisesse, apenas estava se tornando necessário demais. Até então eu trabalhava num canto isolado da cidade e estudava por perto, mas passei dois anos da universidade em completa inércia social, sem sair de casa pra nada que não fosse trabalho e faculdade. O ônibus dava conta de tudo. De repente minha universidade tinha mudado de endereço para o outro lado da cidade, e de repente eu tinha amigos e precisava sair com eles, e de repente eu queria sair com eles.

Meu pai sempre disse que me arrependeria de não ter tirado carteira de habilitação ao fazer dezoito e eu concordo, em especial porque comecei a trabalhar com dezoito e meio. Se tivesse dado entrada no processo nessa época ele teria pagado os mil reais e não eu. Também tem o fato de que tirar carteira de habilitação trabalhando e fazendo faculdade é quase tão ruim quanto eleger Hitler.

É que nunca me interessei por carros.

Na minha cabeça teimosa e burra era impossível dirigir e prestar atenção na paisagem, e de que poderia valer qualquer viagem sem uma paisagem? Sem um fone nos ouvidos tocando the pillows e Steely Dan, sem um livro para ler em trânsito parado. Mais da metade da bibliografia de engenharia eu li dentro de um ônibus. Quantas integrais incômodas e algoritmos as pessoas do 502, do 931, do 933, do finado 421, do 110 e do 111 já não viram por culpa minha? Eu levava a sério esse negócio de estudar. A faculdade eu já não levava a sério não, já tinha passado dos dezessete.

Era um medo justificável. Aprendi mesmo que a trilha sonora para a noite na Pequena Londres era the pillows e Steely Dan. Descer a Avenida Higienópolis é Tiny Boat (the pillows), subir a Avenida Higienópolis é Aja (Steely Dan), aquela avenida que passa por baixo da viaduto da PR-445 saindo da UEL é Ano Hito Onaji Sora No Shita De (the pillows), a Avenida Leste-Oeste entre o Terminal Central e o Terminal Oeste é Turn That Heartbeat Over Again (Steely Dan), a Avenida Dez de Dezembro entre a BR-369 e a Rodoviária é King Of The World (Steely Dan), o Parque Industrial é Rikki Don’t Lose That Number (Steely Dan), o Lago Igapó é Twilight Park Waltz (the pillows). O topo de qualquer prédio é Any World (Steely Dan). Me dê qualquer lugar da cidade! Do Jd. Bandeirantes ao Mr. Thomas, da Gleba Palhano ao Cinco Conjuntos, do Jd. Europa à Vila Nova, do Santa Rita ao Guilherme Pires, do União da Vitória ao Vista Bela. Vou te dar uma música.
Não poderia ter aprendido isso de carro, teve que ser de ônibus. Só que meu corpo não aguentava mais, eu precisava dirigir, precisava de um carro. Precisava mudar do the pillows para o Beatles.

Esse processo me rendeu algumas noites bem bonitas.

Era um lugar novo, pessoas novas para alguém que já não tinha mais medo de conversar e novos ônibus para pegar e apreciar novos pontos da cidade. Ah, e é verdade, eu estava namorando.

Só que eu não sabia disso.

Mesmo assim ninguém é tão tonto e mantém algo pela solidariedade: eu e a Primeira Vítima estávamos nos conhecendo bastante, muito rápido, muito anonimamente, porque éramos agradáveis um ao outro e não tínhamos nenhum amigo em comum. Mesmo que eu não soubesse o que isso representava. Não conseguia entender muito do que ela fazia, só do que ela falava, só das descrições que dava sobre cada evento de sua vida. Ela me contava tudo. Acordava descrevendo o nascer do sol e ficava torcendo para meu trabalho não estar tão exigente, porque aí eu discretamente pegaria o celular e responderia as mensagens dela e manteria uma conversa; tinha decorado os horários em que eu pegava ônibus para se preparar e conversar comigo, sabia os lugares onde o 3G ainda não funcionava muito bem para não se irritar com a minha demora ao responder. E sempre queria saber como tinha sido meu dia no final da noite, mesmo que ela tivesse conversado comigo o dia inteiro ao ponto de saber o nome dos sistemas que eu tinha desenvolvido. Nem eu sei o nome dos sistemas que desenvolvo.
Soa irritante, obsessivo, doentio? É claro que soa. Mas não é. Não tanto. É mais natural do que se imagina, depende muito mais do jeito que se faz do que do “fazer”. Você também sabe que dia cai o salário do seu pai pra pedir dinheiro, isso não é doentio, é questão de interesse. Fazia bem pra ela conversar comigo. Às vezes fazia bem pra mim também.

O fato de eu não ter percebido que estava criando uma bola de neve emocional, seqüestrando o coração dela, sendo que era tão óbvio? Agora sim estamos falando de doentio.

Oh, meu Deus do céu.


A grande verdade sobre o partilhamento de corações é que, se você não está disposto a retribuir aquilo que a outra pessoa quer lhe dar, é melhor avisá-la o mais rápido possível e correr. Correr, mesmo. É melhor passar vergonha ouvindo um “não é nada disso que você está pensando” (muitas vezes a gente sabe que é sim, homem não é tão tonto quanto vocês pensam, mas realmente não importa) que deixar alguém criar sentimentos por você. Não porque criar sentimentos por você é ruim, mas porque cria um compartimento completo no coração da outra pessoa… e se você não está lá, você não está lá.

No coração da Primeira Vítima tinha um espaço só pra mim e esse espaço estava desocupado. O que isso significa para um coração? Significa trevas, desgraça e miséria.

Todos os dias ela se sentia mal por minha causa.
Ela não queria que eu soubesse. Porque se sentia egoísta, porque estava criando todos esses sentimentos por mim sabendo no fundo que eu não estava correspondendo. Mulher sempre sabe. Ela tinha sua parcela de culpa, mas só enxergava a sua parte, não queria enxergar a minha porque seria doloroso demais. Lembro que ela odiava demais a própria mãe, que acreditava que o problema do seu pai era a frouxidão de não tê-la largado ainda. Espero que ela já tenha desistido de ler esse texto, se é que ela existe: era exatamente a mesma coisa que ela estava fazendo comigo. Por que eu insistia em ser bondoso? Por que eu insistia em dar atenção? Ela sabia que eu não estava brincando com o coração dela, que estava sendo generoso porque eu era generoso, porque havia uma vontade sincera de fazê-la se sentir bem, mas não era a pessoa que eu queria ao meu lado. Na cabeça dela, ela não merecia minha generosidade.

Acontece que o amor é imerecido, nós simplesmente damos e recebemos sem nenhum motivo em especial. Sempre soube disso, só que pelas metades. Sempre soube dar amor, mas sempre fui horrível em receber. Você pode acreditar que isso é bonito, altruísta, mas não passa de uma das piores falhas de caráter que uma pessoa pode ter.
Uma pessoa incapaz de receber amor torna as pessoas ao seu redor impotentes. Elas tentam criar uma conexão, falham e não conseguem perceber que isso é problema da outra pessoa, acreditam que é dela, que ela não deu amor suficiente, que ela deveria ter feito mais.
Não! Você fez o suficiente. Quem falhou fui eu. Ninguém é obrigado a conhecer os mecanismos de defesa da imaginação corrompida da outra pessoa, mesmo que ela esconda isso em uma pancada de diagnósticos como costumam fazer os recém-chegados no pântano da depressão.

A Primeira Vítima fez o suficiente. Ela foi a pessoa que chegou mais longe em generosidade comigo. Foi a primeira pessoa que, sem se declarar pra mim com uma carta de amor, me fez perceber o que acontece quando alguém está interessado em você. Mesmo que isso tenha sido meio problemático por ter elevado meus critérios ao infinito e me batizado no lago de heartbreaking. Ela foi a única pessoa que apontou estrelas pra mim antes de eu apontar estrelas pra ela, gentilmente, sem me constranger e fazer eu me sentir estúpido por isso.


Essa é uma linda história, mas está faltando uma peça do quebra-cabeça: tudo o que aconteceu aí foi entre uma menina eufórica bulímica e um rapaz melancólico. Lembre-se que o rapaz melancólico só é um homem por inteiro quando está em sintonia com sua personalidade vibrante.

Eu, até então, não estava.

De repente eu estava.

De repente acordei querendo subir pelas paredes, celebrar a liberdade da vida, dar drift de Gol em alguns bairros da cidade, conversar com todo mundo, contar piadas, estudar e trabalhar até altas horas. Então esbarrei em várias mensagens de “bom dia” no meu celular e pensei, como um bom homem Por Inteiro, “o que é que estou fazendo da minha vida?”.

Tudo se fechou na minha cabeça: a menina estava caidinha por mim, os problemas dela não me importavam mais porque eu já tinha percebido que não tinha poder para resolver nenhum (ter poder para resolver problemas, ó meu Deus, a mente de um doente!), eu sabia que não iria dar certo, não tinha mais razão para continuar nutrindo algo ali. Aliás, nunca houve. Foi um despertar doloroso, que me fez ter um conflito interno agressivo de dias e vocês não fazem idéia do que é o choque entre personalidades tão diametralmente opostas quanto a melancólica e a vibrante; oh, vocês não sabem, só Deus e o Lago Igapó sabem.

É isso que acontece com os rapazes, num geral, quando vocês acham que podem cozinhá-los com pouco fogo. Nada tão atrofiado quanto o “não ligar no dia seguinte”, que só descobri do que se trata esses dias e desejo uma boa distância de qualquer contexto onde isso pode ser aplicado. Mas um processo natural.

Isso é específico para quem está no jogo da paquerinha juvenil que só a modernidade heartbreaker pode nos oferecer: para um homem estar falando contigo ele já não está no melhor dos seus momentos, ele já está fragilizado, porque homem não gosta de “jogar conversa fora” da mesma maneira que a mulher, ele fica “querendo saber” das coisas. Cada conversa corre o risco de ser a última se você não fizer esforço para prendê-lo nela, para fazê-lo sentir que aquela conversa não é a coisa mais desnecessária pela qual ele já passou. Num geral cada conversa corre o risco de ser a última, mas ninguém larga uma pessoa que faz ele se sentir necessário da mesma forma que larga alguém que parece ser completamente indiferente à sua presença.

Não que isso não seja específico de algumas personalidades, e não que esse jogo não seja bem estúpido pra começo de conversa, ele só é tão comum agora porque todo mundo resolveu conversar por mensagem. Só que ele existe, pode ser que você precise dele e conhecê-lo serve para algumas outras coisas.

Como para entender essa situação.
Nunca teria dado corda a ela se estivesse com a cabeça no lugar. Três dias de conversa e teria me sentido sufocado e ido embora sem causar nenhum grande estrago. Acontece que eu não estava com a cabeça no lugar, ela foi passear e ficou fora por alguns meses. Quando voltou, por ninguém ter construído alicerce nenhum, ela chegou chutando tudo.

Sabem de uma coisa, rapazes? É uma falha moral não tomar controle da situação quando ela exige o controle. É por isso que a Primeira Vítima foi minha vítima, e não tão culpada quanto eu, e eu não tinha um pinguinho de inocência. Esqueçam essas idéias tontas que ignoram totalmente a individualidade, esqueçam a “independência da mulher”.

Aprendamos a reconhecer quando a moça é incapaz de controlar as próprias emoções, as próprias ilusões. O que despertei na Primeira Vítima foi um vício que nem ela mesma tinha autoridade para cortar, só eu tinha, só eu poderia dizer “chega”, só eu poderia pedir a ela que me expulsasse do seu coração porque não queria estar lá.

Só que isso não é fácil. Foram dias sob altíssima pressão, vindo da minha própria consciência, para dar o golpe de misericórdia. É fácil saber que vai acordar sem uma mensagem depois de tanto tempo? É fácil abandoná-la depois de ter criado a ilusão de que ela precisa de você? É fácil saber que ela vai chorar assim que você for embora? É fácil voltar a não ter motivo algum para acreditar que alguém está interessado nas suas histórias e nas suas canções? Por que não pensar nisso antes de começar? Bem, não tinha começado antes, não sabia que era disso que se tratava. De qual culpa isso me inocentava? Faria diferença? Por que esse interesse estranho em procurar culpados se ambos sairiam machucados?


O céu continuou estrelado. Ela não leu minha última mensagem. No final das contas, eu tirei a minha carteira de habilitação.


Um ano e meio depois dei um jeito de pedir perdão a ela. Ela merecia. E até prometi dar um tiro em quem partir o coração dela de propósito, mas foi de brincadeira. Eu acho.

Pessoas não merecem ser apagadas, pessoas merecem brilhar. Eu acredito em finais felizes.

 

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escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star