Como disse, nada disso foi uma experiência fácil. Tudo foi acontecendo durante períodos intensos de trabalho, onde eu devia toneladas e mais toneladas de projetos, perdendo o sono, ficando em estado mental degradante. Passei por experiências deprimentes nesse meio tempo por conta disso.
Certo dia, num culto de idosos, sentei no chão ao lado da Garota Japonesa por algum motivo aleatório já que não lembro de termos qualquer tipo de intimidade até então, fora algumas conversas muito erradas de Facebook e os olhares. Em algum momento, a Bem-te-vi veio caminhando ao nosso rumo, olhou na minha cara, cumprimentou apenas a Garota Japonesa, acenou para o seu futuro namorado e foi embora.
Na hora não me importei tanto porque estava mais concentrado em quem estava lá e não tinha me magoado, mas depois isso me deixou péssimo. Foi péssimo saber que deixei a impressão de estar jogando numa época em que tudo o que não queria era jogar, embora eu nunca tenha perguntado e, no fundo, nunca poderei saber se foi exatamente isso que se passou na cabeça dela.
Me deixou muito mais magoado porque tive certeza de que ela não se importava com o fato de eu estar mal, para ela era tudo jogo. Eu a odiei muito. Tentei não me permitir odiá-la demais porque, afinal de contas, era crente, tinha que perdoar, blablabla blablabla, mas conforme os anos foram passando e fui deixando de lado essa auto-censura percebi que a odiei muito. E odiei mais ainda a mãe dela. Aliás, até hoje odeio a mãe dela.
Todas essas bombas emocionais estourando dentro de mim inauguraram um período meio fantasmagórico e apático na minha vida, tive uns surtos de falta de atenção perigosíssimos, bati o carro umas duas ou três vezes. Ao mesmo tempo, tive momentos extremamente eufóricos, de comemorar comigo mesmo os flertes que foram divertidos, de botar músicas pop no som do carro e começar a rebolar no volante.
A minha maneira de lidar com isso na época foi como sempre lidei com esses sentimentos desconexos que não compreendia: dissociação, conflitos intensos de identidade mas, como já estava muito mais maduro que aquele adolescente que escrevia cartas em um dia para ler no outro, simplesmente deixei todas as identidades expressarem seus desejos.
Com as danças no volante, trancado no meu quarto, compondo e produzindo música, tocando teclado, fui criando coragem de me sentir sensual, criando uma intimidade com meu corpo que até então era totalmente obscura.
Essa coisa que não entendi muito bem na época foi a minha sexualidade decidindo existir. Meus sentimentos românticos e minhas tensões sexuais se assumindo para mim, se permitindo existir. Meus desejos sexuais gritando comigo e deixando claro que, dali em diante, nós andaríamos de mãos dadas, eles não ficariam mais escondidos em porões da minha alma em nome da religião, de algum código moral, do medo, da vergonha, da falta de auto-estima – embora, é claro, nada tenha acontecido do dia pra noite, iniciava-se uma luta contra essas coisas e todas as outras que silenciavam e oprimiam meus desejos.
E quanto a Deus, quanto ao cristianismo? Bem, existe essa coisa na religião cristã chamada “oração”, não é? Pois meus desejos também oravam. Também diziam seus planos, diziam seus temores, diziam como queriam que fosse verdade, como tal pessoa era bonita, como outra tal pessoa era gostosa, como tal pessoa ficaria maravilhosa naquela posição, e por aí vai.
Para o meu espanto, Deus ouvia e achava normal.
Nunca fui reprovado por Deus por ter desejos sexuais pelas pessoas, ainda que não se restringissem aos desejos contidos na tabelinha permitida pela sexualidade cristã.
Nunca precisei frear meus desejos como se eles fossem monstros incontroláveis, que me fariam prensar mulheres na parede e obrigá-las a fazer sexo comigo. Eu não era uma besta, uma bola sangrenta de pecado merecendo um inferno quente por ser um estuprador que só não teve a oportunidade de estuprar, ou um assassino, ou um manipulador. Não fui criado pra isso, não faço isso, acho nojento, e ponto final.
Já ser prensado na parede por uma mulher sempre aceitei, sem problemas. Infelizmente não lembro de ter acontecido nenhuma vez, o que é uma pena, mas faz parte do mundo em que vivemos e também de ser feio.
OK, acontece que eu tinha uma amiga, vou chamá-la de Caipira, que flertava com bastante gente. Flertou com uns dois ou três amigos meus.
Um deles, bem mais novo, acreditou que ela estava totalmente apaixonada por ele, porque elogiou seu bíceps, tríceps, triceratops, etc. Eu ri porque, bem, conhecia a peça. Além disso, achava engraçado que esse meu amigo ficava tão encantado com esses elogios porque absolutamente todas as meninas da igreja elogiavam os triceratops dele.
Bem, ela era bem bonita, gente boa, simpática. Era minha amiga, no final das contas. Não seria amigo de pessoas que não considero gente boa, seria?
Certo dia, decidi que começaria a trocar olhares e conversar bem mais com ela. Simplesmente surgiu um desejo da minha parte e pensei “bem, por que não?”. Trocávamos mensagens direto, ela me trazia comida às vezes antes do seminário.
O apelido é “Caipira” porque é uma pessoa que veio da mesma cidade que a minha família, e minha família é de uma cidade com, sei lá, 10 mil habitantes, feita principalmente por caminhoneiros e outros tipos de trabalhadores de roça. Sou caipiraço, de certa forma. Não posso negar.
Tínhamos muitos assuntos em comum.
Fui em um evento onde ela estava e foi impossível não trocar olhares por um tempão, ao mesmo tempo em que eu ficava um pouquinho triste porque tinha outra menina no lugar que eu achava bem bonita e gente boa e tinha um interesse, mas não podia olhar. Ainda não tinha ultrapassado essa barreira de flertar com duas pessoas no mesmo lugar.
Ficamos só nisso, só nos olhares. Depois de um tempo o meu lobo desejoso cansou de existir e sobrou uma tremenda crise de auto-estima, de pensar que ela estava brava comigo, estava cansada. Ainda era muito ingênuo (e outras coisas bem mais complicadas) para pensar que, talvez, uma mulher não queira ficar sendo olhada por 24 horas. Depois de meia horinha de olhares já é tempo de dar o próximo passo.
Mas... temos aí mais um problema: eu só sabia olhar. O que vem depois de olhar? Eu não sabia. Você pode rir disso, assim como rio muito agora, mas tenho muita pena da pessoa que eu era. Se eu ainda tivesse quinze anos tudo bem, mas tinha vinte-e-cinco. Você puxa assunto? Você fala do que? Como isso vira um namoro? O que raios acontece que de repente aparece um cenário propício para pedir alguém em namoro? Eu... nunca soube.
Além do mais, a pessoa que eu mais tinha amado na vida até então foi quem me pediu em namoro, não fui eu quem pediu. Ah, eu até já tinha pedido pessoas em namoro... pela internet.
Embora estivesse pensando em namoro, já que é o único lugar para o qual um crente pode ir, não era isso que eu menos entendia. Queria saber que horas os desejos sexuais eram colocados na mesa. Quando é que, de tanto se olhar, vocês se beijavam. Eu não iria fazer algo idiota assim sem permissão da outra pessoa, não precisa ser uma pessoa que diz “Mais feminista que eu?” para entender que isso é abuso.
Como era de se esperar, nada aconteceu nessa noite. Talvez eu tenha a levado até sua casa de carro e conversado sobre os assuntos bestas que nós sempre conversamos, embora um pouco constrangidos, mas foi só.
Fiquei um pouco ansioso com relação a ela e perguntei a uma amiga sobre a possibilidade de haver sentimentos dela, a amiga disse que não estava sabendo de nada.
Penso que estava um pouco melhor da cabeça aí. Fosse antes, criaria uma série de cenários na mente sobre a pessoa no fundo ser o amor da minha vida mas estar se negando, ou estar jogando comigo, ou estar... sei lá, eu era completamente maluco, sei disso. Coisa de “incel” mesmo, o que, deixa eu ser bem claro aqui: todo mundo criado em igreja é um pouco. A cultura de pureza anda lado-a-lado com a mentalidade de um estuprador.
Dessa vez pensei “OK”, não me satisfiz porque pensei que tinha o direito de tirar essa informação dela e também porque, se não hoje, quem sabe amanhã? Quem sabe mês que vem? Quem sabe, com o tempo e mais intimidade, ela pudesse gostar de mim? E pra que ficar tão ansioso por isso, se não tinha problema nenhum?
Como era claro pra mim que eu tinha desejo por ela, queria beijar a boca dela, e talvez até transar com ela, e talvez até viver fantasias com ela, era... mais fácil. Sim, sempre pensei que fosse mais difícil, mas é mais fácil. Um desejo aceito não é seu inimigo, um desejo reprimido é.
Ficou mais fácil porque aprendi a separar das coisas: eu tinha tesão por ela, mas ela era minha amiga e eu valorizava nossa amizade. Não iria deixar esse tesão criar histórias tenebrosas na minha mente que se materializariam em conversas estranhas, instáveis e ansiosas. Eles caminharam juntinhos, sem nenhum conflito, cada um executando suas agendas.
Um dia fomos a outro evento, esse bem longe, apenas com amigos dela. Claramente fui por interesse. Não tinha nada para mim ali além dela. Pouco me importava, estava tentando me educar a não me importar com o fato dos outros acharem que eu era “safado”, “ligeiro”, “mineirinho”, coisas do tipo.
Uma vez conversei com um amigo meu, revoltadíssimo porque não importava o quanto eu tentava ser uma pessoa correta, no meu canto, eu simplesmente não conseguia desgrudar desses rótulos de cara safado pelo simples fato de que conversava com muitas mulheres. Ele me disse “Bem, se o rótulo não vai sair de você, não é melhor abraçá-lo de uma vez?”. Não aceitei a princípio mas fui percebendo com o tempo que doía bem menos dar uma risadinha e dizer “só sei que nada sei” quando alguém me chamava de safado do que ficar bravo.
Em algum momento desse evento nos reunimos, sentamos no chão, e todos começaram a contar suas histórias tenebrosas com ex-namorados ou maridos.
Ela tinha um ex-namorado, um relacionamento de uns dez anos que terminou, e abriu uma série de situações traumáticas criadas pelo namorado controlador de um jeito que passava do aceitável, o que é relativamente normal na minha cidade-natal.
Fiquei um tanto assustado com aquilo.
Fui o último e só pude falar que não tive nenhuma namorada. Ela achou ótimo e me recomendou não namorar, porque namoro era complicado, uma bosta, não valia a pena: era melhor evitar e ter uma vida saudável. Fala bem assustadora, também.
Depois disso ficou fácil perceber que eu não queria um relacionamento com ela, tão fácil que parecia até que ela estava dando um fora em mim com muita classe.
Além dela, conversava com uma outra amiga – outra dessas com quem já tinha flertado antes, mas essa era mais generosa e me dava umas piscadas também – e qualquer dia desses entramos num assunto bastante pesado, no qual discordávamos muito. Não foi uma briga nem nada disso, acho que ela nem sequer percebeu o quão importante aquele assunto era pra mim, o quanto não teria como nós vivermos juntos tendo aquele tipo de discordância.
Considero essa época bastante importante pra mim, porque finalmente estava aprendendo a entender os meus limites.
Talvez a Miss Bondade fosse me desfigurar completamente caso entrássemos num namoro: eu estava aceitando ser uma pessoa que não era para que ela se apaixonasse por mim também, para que tivéssemos um namoro e um casamento “saudável”.
É difícil alguém acreditar no que digo porque tive meu coração partido mas hoje não sinto ódio, nem raiva. nem nojo dela, eu sinto desprezo. E não é pelo que ela fez, mas pelo fato de que ela é uma pessoa sem qualquer gosto, valor ou atributo parecidos comigo. Nós não éramos apenas opostos, nós sequer pertencíamos ao mesmo mundo.
Era só tesão reprimido da minha parte, que se tornou uma fantasia, que se tornou um romance, que encorpei com espiritualidade de uma religiosidade psicótica que te permite se iludir que as maiores insanidades já vistas são “vontade de Deus”. Sabe? Esses tempos uma galera tentou um golpe de estado no Brasil guiados por isso.
Mas esse problema estava oficialmente morrendo. Graças a Deus.