Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

v-xviii. heartshaped star ii — as vozes: conclusão

12 de maio de 2018

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v
anatomia da alma frágil: mapa geográfico da corrupção e perversão humana [ou: heartshaped star — heartshaped star]

conversando com meu amigo a respeito do assunto, e a respeito de muitas coisas, senti que tinha alguém para confiar de novo. não só pelo fato dele ter continuado meu amigo após algo tão insano mas porque tive conversas complicadas, sobre coisas complicadas da minha vida, e ele… aceitou.

passou-se o ano novo, fiz uma viagem para desestressar porque sabia que o inferno chegaria: teria de estudar muito porque decidi que minha vida acadêmica voltaria; estava chegando o prazo da entrega de um projeto muito importante no trabalho, onde deixaria de trabalhar oito horas por dia para trabalhar no mínimo dez. achei que isso seria suficiente mas passei a hospedar mais uma moça com depressão em casa, as finanças que pareciam ter passado do limite de repente atingiram um novo nível além do limite, a família da minha mãe estava lotada de problemas e minha casa é muito ligada à família da minha mãe. a minha vida virou um verdadeiro inferno.

eu… me peguei carregando o fardo da minha casa. o fardo espiritual da minha casa. e estava enorme, estava pesado, estava estressante, estava preocupante. esse fardo se juntou com o trabalho exagerado, num clima estressante e exagerado, sem Rainha das Estrelas para acalmar os nervos dos ousados homens daquele lugar porque ela saiu de férias. voilá, minha vida desmoronou. eu desmoronei. e heart-shaped star, numa medida de segurança, voluntariamente fechou-se no coraçãozinho de novo.

essa depressão foi diferente em dois aspectos. o primeiro, positivo: estava maduro para entender as coisas acontecendo dentro de mim, os monstros se criando, os vícios, os medos, as desconfianças irracionais nas pessoas e pude não surtar nenhuma vez, isso nem mesmo me paralisou; o segundo: eu estava sozinho, a primeira vez que passei por uma depressão forte eu tinha pais não entendendo o que estava acontecendo mas cheios de força e disposição para aprenderem a lidar comigo e cuidarem de mim, dessa vez não só estava depressivo como, por ser um homem forte e sensível que já tinha vencido esse pântano uma vez, estava cuidando das outras pessoas em depressão na minha casa. isso porque a minha mãe, coitada, outra experiente carregadora de fardos, estava carregando a depressão de outras pessoas da família junto com a dela. consegue entender a pirâmide de problemas que estava acontecendo aí? ouvinte, ainda não tinha voltado às aulas de teologia, mas não seria injusto dizer que passei mais tempo na igreja do que em casa. eu via demônios e mais demônios tentando se apossar da minha família e Deus não me deu trégua, ele pediu minhas orações, ele falou “você é um homem de espírito forte, você precisa guerrear”.

mas tudo isso fiz sozinho. se quer que volte a falar de mulheres, estava com muita vergonha do que tinha feito com a Bem-te-vi e nunca mais falei com ela, nunca mais olhei pra ela, sabia que ela poderia interpretar da pior maneira possível mas a depressão consumiu a força emocional que eu precisava para vencer a minha vergonha e… também consumiu a força emocional que eu tinha para me importar. parei de me importar com os sentimentos das pessoas porque não tinha mais tempo e forças, tive de escolher com sabedoria pessoas para me importar e não poderia escolher a Bem-te-vi numa hipótese imaginária de que ela estava incomodada porque parei de olhar pra ela. mas não bastasse ter ficado com vergonha dela, ouvi pessoas comentando de mim de modo que ela tinha espalhado o que aconteceu de alguma forma, então fiquei com vergonha de todo mundo e um pouco triste a respeito dela.

o assunto “mulher” passou a simplesmente me incomodar. eram possibilidades demais, desisti de pensar.

um detalhe importante que pulei e, procurando lugar para encaixá-lo, não achei, mas acho que posso mencionar agora, é que um dia depois do show ter terminado com a Bem-te-vi fiquei me sentindo um verdadeiro maluco. era verdade, qualquer pessoa normal se sentiria perseguida mas para mim era natural o que estava fazendo, tão natural que até ri contando. sem saber muito bem o que pensar de mim mesmo procurei um cantinho na sala de oração da igreja pra falar com Deus e perguntar qual era a opinião dele sobre isso, mas acabei desabando sobre toda a minha vida porque era a última sexta-feira do ano, o ano mais maluco da minha vida. tinha terminado o rascunho da minha constelação, descobri uma infinidade de coisas sobre mim mesmo, fiz uma infinidade de besteiras, aprendi uma infinidade de coisas. e estava chateado comigo mesmo.

me senti inadequado. meu coração se partiu não muito por conta de me sentir “rejeitado”, já era bastante consciente de que não tinha ganhado um “sim”, não tinha problema emocional nenhum com ela exceto talvez o medo de dizer “ooops, foi mal, peguei pesado”. mas peguei pesado e não soube notar que peguei pesado, para mim foi um flerte normal, cheio de dramas e falsos rastejos mas sem problemas porque não estava brincando com o coração de ninguém, não estava fazendo aquilo pra pegá-la e jogar fora ou só para ver ela babando por mim e elevar meu ego, fiz porque realmente estava interessado e afim dela. só que, é, não foi saudável. não só isso como me diverti fazendo, queria fazer mais coisas mirabolantes e ousadas como aquela, mas… não existia espaço para fazer aquilo, ninguém gostava daquilo, todo mundo achava doentio.

me senti uma pessoa exagerada e doente. então chorei muito para Deus exatamente isso. reclamei do fato dele ter me feito uma pessoa exagerada e doente, psicótica, inadequada. não consigo nem lembrar o que falei pra ele mas foi meia hora de reclamação sem parar.

então, logo em seguida, comecei a lembrar de tudo o que tinha feito e ri. comecei a contar para ele, deitado de braços abertos no chão, contar vantagem da minha coragem, montar cenas e contar a ele rindo, gargalhando, como uma pessoa exagerada e doente. de repente percebi que era divertido ser essa pessoa inadequada, que me rendia histórias sensacionais, lembrei que sou uma música e uma música extravagante e sensacional embora tudo ainda estivesse muito bonitinho pela minha até então falta de coragem de jogar toda a linearidade musical de um videogame e de uma música de igreja para pintar quadros musicais ousados, exagerados, monstruosos, assustadores, como uma música do Steely Dan. tive um momento de contar pro meu Pai, esse que está nos céus, todas as bobagens que fiz no ano e foi muito divertido.

então tive um momento de silêncio e de rir. somente rir, somente gargalhar.

quando levantei, no entanto, para o meu completo espanto, estava a Baixinha sentada numa cadeira na minha frente olhando pra mim. a Baixinha é linda, ela me deixa tonto de tão linda, mas ela tem sempre aquela cara brava e má que me deixa com o rabo entre as pernas. eu nunca falei com a Baixinha, não conheço ninguém que é amigo da Baixinha. simplesmente sei que a Baixinha é mais velha que eu, sei no que ela é formada, sei que ela é herdeira de uma pa… empresa, sei que ela tem um carro igual ao meu e mora perto da minha casa. eu e meu melhor amigo juntos somos o banco de dados humano da igreja, as partes da igreja que não conheço ele conhece. perguntei a ele quem era e ele me passou a ficha criminal dela todinha. mas só nos conhecemos assim, de olhar. a vez que ela grudou os olhos em mim no dia do espírito me deixou atônito, não tinha como eu falar com ela, me senti ameaçado, achei que se dissesse “oi” ela me desmaiaria com um soco e colocaria uma fita isolante na minha boca para eu nunca mais falar na minha vida.

meu Deus. como quis que ela viesse na minha direção e dissesse “oi! você gostaria de ser propriedade minha pra sempre? aliás, não sei por que pedi se é uma ordem”. por que a minha cabeça cria essas coisas?

e lá estava ela, olhando para mim de novo, com aqueles olhos poderosos e possessivos que só ela na igreja inteira tem. na última noite de sexta-feira do ano. não lembro se tive coragem de dizer “oi”, acho que não. fui para o outro lado da sala escrever e ela ficou lá por mais um tempo. fiquei morrendo de medo mas de vez em quando dava umas olhadinhas, aquelas olhadinhas torcendo para não ser retribuído e, quando percebia um movimento nos olhos dela, desviava para o meu caderno de novo porque eu não queria morrer. talvez merecesse morrer naquele dia, mas não queria, a Baixinha precisava ter misericórdia de mim.

acho que ela foi embora antes de mim.

gata. ah, o dia que você quiser que eu… tá, tá, voltemos à história.

o fato é que eu não queria mais pensar em mulher, pensar em possibilidade, pensar em mais nada. eu cansei. naquele mês não encontrei a Bem-te-vi nenhuma vez, mas também não tinha como estar nos lugares onde ela costumava estar. uma amiga dela (que ainda não chamaremos de coisa alguma porque estamos a acabar esse mapa e ela, meu ouvinte, faz parte de onde tudo se torna normal) acabou caindo no meu jogo magnético de flertes algum dia desses e entrou na minha órbita, mas a impressão que me deu foi a de que ela não queria ter entrado porque ela resistia tanto quanto eu costumo resistir. o mais engraçado foi que ela resistiu a ela mesma porque eu não estava fazendo nada, foi um mês onde fiquei totalmente quieto no meu cantinho escrevendo.

não queria dedicar a minha cabeça a pensar nisso e não queria sequer abrir brecha porque sabia que, mesmo tentando ser normal, mesmo sendo normal, idéias mirabolantes se formavam ali. não eram idéias maldosas mas eram mirabolantes, me faziam pensar em histórias e situações totalmente irreais que, embora inofensivas, ocupavam muito espaço da minha mente. trabalhando de dez a doze horas por dia não poderia mais gastar neurônios com isso, não havia como trabalhar normalmente e pensar nisso.

não quero dizer que não flertei com ninguém nesse período porque tudo é muito natural pra mim, as coisas saltam de um lugar a outro e voltam e preciso fazer esforço para me importar com isso. não me lembro com quem flertei, quem usou só meus olhos, quem usou minhas palavras, quem se enfiou em alguma história de um dia de duração comigo ou até mais de um dia. era simplesmente irrelevante. e… era bom. nunca tinha me colocado nessa posição de não me importar com os sentimentos das outras pessoas, sempre estava me importando. cada sentimento que descobria existir abria um mundo de importâncias e culpas para mim, de cuidados que deveria ter com as pessoas para não “quebrá-las”, mas percebi que pouquíssimas pessoas tiveram cuidado para não me quebrar lançando suas histórias, seus pecados, seus desejos. pouquíssimas meninas se preocuparam em não me machucar com suas tentativas de me fisgar usando seus próprios desejos ao invés de se importarem com os meus pelo fato do meu interesse nos desejos delas parecer imediato. não me lembro de alguém que quis me avisar das minhas vulnerabilidades, a preferência sempre foi se aproveitar ou, na melhor das hipóteses, dizer “tem algo de errado com você mas não posso te falar”.

percebia coisas erradas nas pessoas e passava a tomar um cuidado impressionante para não acertar seus pontos fracos mas de repente isso já não fazia mais diferença para mim, tornei-me indiferente aos seus problemas. não posso dizer que, aí, me senti livre, porque já estava com meus próprios problemas e os problemas da minha casa, eles eram gigantes e insuportáveis e suficientes na tarefa de me endoidar. algumas vezes quis surtar. algumas vezes surtei. algumas vezes eu, sozinho, como nos “velhos tempos” da depressão suicida, encontrei um cantinho para gritar de chorar a infinidade de feridas geradas em mim pela dor das pessoas que me jogavam as suas dores. e chorar essas dores também.

entre os desesperos causados pela minha agonia, no entanto, sentia gratidão e amor. talvez não fosse diferente do passado, mas a minha percepção mais aguçada do que estava dentro de mim e do que estava carregando me fez ver isso com muita graça. disse “não aguento mais” todos os dias, noite após noite, para dizer logo em seguida “não aguento mais dizer que não aguento mais”. então deitava na minha cama, ouvia de Deus “muito obrigado” e, depois, não ouvia mais nada. era um homem completo sentindo dores completas e tendo alívios completos, sentia a carência das pessoas como se fossem minhas e essas carências não eram só espirituais, emocionais, elas eram físicas, e sentia Deus cuidando pessoalmente de todas elas. começou a se tornar difícil pra mim, também, sentir as carências dos outros e vencer as minhas vontades, me tornei muito sedutor, com uma certa constância as pessoas mais carentes passaram a se aproximar de mim com seus desejos e não foram todos os dias em que cortei o mal pela raiz ao invés de dar um pouquinho de continuidade a isso.

mas descobri que não importava também.
descobri que podia errar nisso, me confessar e começar outro dia como se nada tivesse acontecido. descobri que, se a minha intenção era vencer e não me entregar completamente à lascívia, se a inclinação do meu coração já estava correta desde o início, desde o início a batalha já estava vencida e pouco importavam os erros no meio do caminho da minha mudança de mente. e pouco importavam as pessoas afetadas pela minha mudança de mente, eu não precisava ser perfeito, não precisava colocar os sentimentos dos outros acima dos meus.

foi aí, ouvinte, no meio da depressão, que terminei a árdua tarefa de aprender a me amar.

aprendendo a me amar, aprendendo que minhas limitações eram normais como quaisquer outras e as pessoas deveriam suportá-las com amor como eu suporto as delas, confiei pela primeira vez segredos valiosos da minha vida a um amigo meu. aquele, da faculdade. conforme fui contando, devagar, fui percebendo um pouco de choque, mas também uma disposição genuína de me ouvir e de não querer tirar as conclusões mais erradas possíveis sobre mim, meus comportamentos, a minha vida, como tinha ocorrido já no início da outra vez em que tentei e senti imediatamente que deveria abortar. eu diria que talvez não devesse ter abortado, talvez eu tenha sido muito ruim de me expressar na outra tentativa, mas conhecendo a figura completa vejo que fui de fato protegido; talvez, no entanto, se tentasse me expressar hoje com a linguagem antiga, desconhecendo totalmente os efeitos de ser quem sou, nada teria se saído bem. nunca tinha passado pela situação de ter um enorme peso atirado dos meus ombros à outra pessoa, aos vinte-e-quatro anos de idade, fiquei apavorado por um tempo pensando se tinha feito a coisa certa, pensando “eu não deveria ter confiado. algo de ruim vai acontecer. alguém que não deveria ficar sabendo vai ficar sabendo, vai tentar tocar no que não deve. socorro, Deus, fiz uma besteira enorme”. chorei preso nesses pensamentos mais de uma vez. não me ache ridículo, nem o próprio Deus me repreendeu, dia-após-dia ele ia me tranqüilizando com muita paciência dizendo que tudo ficaria bem e… tudo ficou bem, eu só ganhei alguém para me ajudar, é difícil e estranho receber ajuda mas estou aprendendo.

em outras notícias, certo dia tive de ouvir a confissão de um adolescente por quem tenho muito apreço. passei uma noite inteira ouvindo-o e aconselhando-o. a história era sobre várias coisas, mas sobretudo como ele se sentia a pior pessoa do mundo por ter perdido a inocência aos dez anos vendo dois amiguinhos pouco mais velhos que ele se masturbando para pornografia homossexual. ele tinha dúvidas da sua sexualidade, aos seus treze anos me confessou que às vezes se perguntava se era gay porque já sentiu “coisas” pensando em homens. aos treze, ouvinte, ninguém da pequena londres tem muito contato com todas aquelas idéias mirabolantes sobre a homossexualidade que faz a pessoa tirar tantas conclusões sobre coisas tão difíceis, ele ainda era capaz de relacionar seus sentimentos com a cena chocante aos dez anos. ele se sentia horrível, principalmente, porque ensinou uma criança ainda mais nova que ele a se masturbar e essa criança se tornou viciada, vinha perguntar a ele como se ele fosse um “guru da masturbação” e ele, percebendo os efeitos horríveis que aquilo tinha causado em sua vida, tinha um ódio muito forte de si mesmo por “ter corrompido alguém”.

ouvir essa história mexeu muito comigo porque finalmente estava capaz de entender a peça fundamental do meu sofrimento: desesperado como ele estava, a única coisa que pude usar para confortá-lo foi a minha própria vida. foi olhar em seus olhos e dizer:

você é muito feliz por ainda lembrar como era a vida antes de perder a inocência, por saber a diferença de um mundo inocente para um mundo corrupto. eu não sei, perdi a minha inocência aos três anos de idade. e não estou dizendo isso a você para me comparar: estou dizendo que tudo bem, que se você corrompeu apenas um menino mais novo tudo bem e se corrompeu mais pessoas além dele tudo bem também. não me importo com as pessoas que corrompi, nem sei quais pessoas corrompi e nem sei como as corrompi, é tudo o que sei fazer.
e, meu amigo, eu não me importo. não me importo com tudo o que vi, não me importo com as pessoas que transformei, não me importo com as pessoas que criaram expectativas em coisas que sequer percebi acontecendo. não dou a mínima. você está fazendo o seu melhor? você está obedecendo ao que Deus está te falando hoje? se não está, faça. se está, não se importe.

fiquei refletindo sobre isso. fiquei refletindo sobre ter perdido a inocência com três anos de idade. isso… me deixou feliz. me deixou feliz não porque é bom, mas porque as coisas passaram a fazer sentido. não sabia que a falta de inocência gerava dor, não sabia que tinha um motor de sofrimento perpétuo dentro de mim. vivi a minha vida sentindo uma dor inexplicável sem perceber. e, apoiando uma pessoa sofrendo tanto por algo que, pra mim, era tão simples, pude me sentir forte de novo.

nunca entendi por que as pessoas me achavam uma pessoa segura e forte mas ouvir isso sempre foi constante na minha vida. “você é a pessoa mais segura de si que já conheci”, “você é muito convicto”, blablabla blablabla. sempre pensei que se as pessoas estivessem dentro de mim elas saberiam o que é viver uma insegurança constante e violenta. mas, diante dessa insegurança constante e violenta que vem e assola as pessoas de repente na etapa da sua vida onde elas descobrem que o mundo não é seguro e pacífico e muitas vezes barra, impede-as de realizarem seus sonhos, consegui levantar e realizar meus sonhos. eu, uma criança internamente destruída, não fui destruído. eu, um adolescente internamente destruído, me perdi em milhares de questões e caí, mas ganhei uma segunda chance e não a desperdicei, usei-a ao máximo e estou aqui.

isso é segurança. não ter e ser confrontado com os fantasmas dentro de si não é segurança, é imaturidade. os fantasmas precisam existir, eles precisam te confrontar, eles precisam mostrar o que pode acontecer de errado, revelar as brechas, revelar os problemas. a minha convicção absoluta nunca veio de não acreditar na existência de problemas e brechas, vem de ter certeza de que talhei o maior número de brechas possível e posso fazer o que quiser consciente das possíveis conseqüências. fiz as coisas horríveis com a Miss Bondade tendo consciência das conseqüências e elas não foram tão ruins assim, a minha cabeça piorou muito uma situação muito simples e eu me afoguei nela, mas fiz a loucura enorme com a Bem-te-vi sendo consciente das conseqüências também e não me importei nem um pouco e, se senti toda a vergonha que senti, senti sabendo que sentiria e pensando “valeu a pena”. tenho dificuldades de me arrepender das coisas que faço, é mais fácil para mim me arrepender do que sou porque maioria das coisas erradas que faço eu fiz consciente de que estava errando e já me odiando enquanto fazia mas pensando “foi mal, eu quero isso”. eu nunca fiz algo de errado pensando “não vai dar em nada”.

e também fui notando algo interessante sobre mim mesmo: sou uma pessoa muito pura. ao contrário do que sempre acreditei, e até puni os outros por não acreditarem comigo. pura. elaborei as ferramentas para purificação do coração cedo demais, não tive tempo para torná-lo impuro porque, assombrado na infância, precisei acreditar que as pessoas tinham esperança, precisei acreditar que podia controlar a vontade insana que tinha de chutar os bolos de aniversários das crianças e também precisei acreditar que não havia problema caso não conseguisse uma vez ou outra, então deveria respeitar os outros da mesma forma. precisei de lógicas e fantasias para equilibrar a bagunça que havia se formado e elas estão aqui, formadas, firmes, sempre se esticando com novas situações, novas tensões, novas decepções e novos recomeços. havia sempre o princípio de que era possível ser bom, de que todo mundo merecia uma segunda chance, de que não existe corrupção absoluta, de que não existe o irreversível.

quando me deu a segunda chance, Jesus passou meses tentando me convencer de que nós acreditávamos na mesma coisa porque nunca entendi como a mesma mão que julga pode ser a mesma que perdoa e, se você prestar atenção em todo o meu comportamento enquanto ateu, perceberá que meu intuito sempre foi julgar julgadores porque eu os odiava. só depois de começar a cuidar das pessoas, quando me vi na linha fina entre o corrigir e o permitir por amor, comecei a entender como são coisas que se mesclam. que, se você realmente ama alguém e vê seu comportamento errado, faz bem se interessar pelo seu possível sofrimento e intervir de alguma forma não desrespeitosa.

ainda que tudo isso seja difícil de entender que se passava dentro de mim porque, chicoteando tantas pessoas que chicoteavam os outros, todos passaram a temer receber uma chicotada minha. sou uma das pessoas que deixa claro que é difícil entender o que se passa dentro dos outros, não há um que passe pela minha vida e não passe a refletir como os outros escondem a complexidade dentro de si, mas o ponto é esse e para mim sempre foi esse: não sou eu a pessoa complexa, todo ser humano é complexo, todo ser humano tem uma história e histórias de seus antepassados em suas costas e estão lotados de dificuldades, contradições internas, conceitos que ele acredita serem regras gerais do universo mas na verdade foram criados em sua casa, nos lugares freqüentados; ainda que, trate-os com complexidade demais e você se tornará vítima da complicação das coisas simples porque então o seu sistema de complexidades humanas sobressai o que os outros realmente são. é tudo complicado e simples ao mesmo tempo e concluí, em algum período da minha vida, que não deveria concluir mais nada e me adaptar à pessoa como ela é para amá-la. em outro período da minha vida, muito recente, decidi que isso é muito importante para mim mas a minha saúde mental e emocional também é, então já não faço sacrifícios tão grandes e custosos pelos outros.

o meu pai, uma vez, querendo me fazer refletir sobre os ministérios onde sirvo na igreja, me perguntou qual era a utilidade de eu estar ali. que diferença fazia eu estar ali. ele me perguntou, basicamente, “quem é você?”. ele me perguntou, e não exatamente me perguntou mas foi o que quis me perguntar, por quantas pessoas eu estava morrendo naquele ministério e por quantas pessoas deveria morrer porque Jesus só parava para realizar milagres quando era necessário, ele não deixou de morrer na cruz porque uma pessoa com problema emocional de repente chegou e pediu ajuda, ele tinha senso de proporção e propósito ao fazer as coisas. o seu chamado era morrer por todos. meu pai me perguntou se eu estava morrendo por todos os que deveria estar morrendo e não por uma pessoa que, de repente, acelerou meu coração com seus problemas e me fez largar todos os outros por ela. ele me perguntou qual o meu propósito.

não consegui entender isso na hora porque meu pai, assim como eu, é uma incógnita. ele me pergunta coisas que parecem simples e, meses depois, elas explodem na minha cabeça e me deixam dias pensando a respeito. quando meu pai vem com uma pergunta cruel e as pessoas, principalmente meninas quando estão próximas de mim o suficiente para ouvirem uma pergunta do meu pai, ficam indignadas da pergunta ter sido feita a mim, preciso acalmá-las e dizer “não fale nada. essa pergunta tem um sentido”. e, meses depois, quando Deus falou comigo a respeito do “fardo”, ela começou a fazer sentido.

fui muito longe mas voltemos ao que interessa: eu era uma pessoa pura. uma mente estilhaçada por espíritos de todos os tipos, um núcleo sobrevivente e íntegro. vivendo como uma criança no mundo de adultos porque, quando criança, já vivia no mundo de adultos. é muito mais fácil pra mim agora, estou em vantagem, já sofri as tensões da idade adulta na infância e na adolescência. só estou reparando as pontinhas agora.

não era para eu ter sobrevivido. eu sobrevivi. e agora o mundo terá de me suportar.

novas canções começaram a se formar dentro de mim. não sei como elas serão, mas elas estão mais maduras, mais reais, menos presas dentro de um mundo oculto onde tudo é bonito para me abrigar das tensões da realidade. a ilusão do mundo bonito que não existe lá fora não faz parte de mim, eu acredito no mundo bonito e sempre acreditei, o que nunca acreditei foi numa facilidade de vê-lo ou de que poderia contar com os outros para vê-lo, o mundo bonito sempre dependeu totalmente de mim. da minha opção de viver algo que não está dentro de mim, porque o que está dentro de mim é bastante feio e sujo. da minha opção de viver algo que está em Deus.

foi vivendo todas essas conclusões, ouvinte, que passei por todas as histórias que contarei no próximo capítulo da noite na pequena londres. eu quero que seja o último. são histórias bastante boas que tenho para contar e concluir esse pacote de personagens, e poderia até reunir mais histórias e contar mais capítulos, mas já não quero. já não sou mais protagonista de histórias de corações partidos, roubados, de confusões mentais e emocionais, na noite na pequena londres. não que o mundo tenha deixado de acontecer, é que já entendi, já domino a situação. o show é meu.

 

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

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escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star