espero ter expressado bem o que conheci daquele condomínio. agora vou para a história especial.
a história da Burguesa Solitária.
essa história foi muito importante pra mim porque, se você conversasse comigo aos dez anos de idade, eu não te diria que uma pessoa rica é uma pessoa feliz. meu irmão caçula tem treze e acredita plenamente nisso, esse é um dos aspectos que considero mais imbecis nele, mas não me intrometo no desenvolvimento da personalidade do meu irmão caçula porque ele tem trilhões de informações na cabeça e é muito difícil para ele lidar com todas elas. eu não associo prosperidade financeira a felicidade desde sempre porque, fechado em minhas fantasias infantis, conheci milhares de fantasias onde o rico tinha tudo e estava infeliz e o pobre não tinha nada e era feliz, em especial a parábola do jovem rico da bíblia que foi martelada na minha cabeça desde que meus pais voltaram para a igreja.
a Burguesa Solitária confirmou todas essas fantasias pra mim.
posso estar enganado mas acho que essa história se passa na época mais solitária da minha vida: o período onde meus pais iniciaram a faculdade. todos os meus amiguinhos do condomínio tinham se mudado, eu era a única criança que tinha sobrado fora aquela menina que namorou traficante mas a gente nunca teve, assim, algo em comum pra brincar. esse foi um período muito importante para a confecção dos meus gostos pessoais desconectados de qualquer influência externa e para a formação da minha personalidade isolada. de manhã era o período onde eu assistia desenho, ficava com minha mãe e às vezes com meu pai; de tarde, escola; de noite, então, meus pais iam para a faculdade e eu ficava com uma babá típica jovem que precisava de uma grana, não tenho nenhuma memória do que acontecia aí a princípio e espero que isso seja um sinal bom e não um sinal ruim. se fosse ruim eu saberia, né? …né?
depois de um tempo meu pai comprou um computador porque a faculdade tinha matérias de programação e a instrução, a princípio, foi me proibir de usar. isso não durou muito tempo. eu olhava aquele monitor com capa, olhava aquele gabinete e seu memorável botão TURBO e sentia que o computador estava falando comigo. sentia que ele estava me pedindo para ligá-lo. sentia que ele queria que eu brincasse com ele. os meus carrinhos não me deixavam mais feliz e os meus livros muito menos, o meu master system estava na casa da minha prima. eu queria apertar aqueles botões, queria teclar, queria saber o que era essa máquina misteriosa que meu pai tinha comprado para ele. meu pai tinha todos os motivos do mundo para me proibir, a última vez que tive esse sentimento foi por um rádio que na época era muito chique e eu desmontei ele inteirinho para ver como era por dentro. eu gostava de ver como aparelhos eletrônicos eram por dentro e, quando os via na minha frente, era essa a química que acontecia entre nós: achava que era um convite para destruí-los e descobrir como funcionavam por dentro (meninas, não sejam más com essa frase); infelizmente ficava satisfeito entendendo e nunca os montava de volta, até porque sempre chegava ao ponto de já não ter mais como fazer isso. meu pai, no entanto, era um mago supremo que os montava de volta usando seus super-poderes.
bem, um dia eu mexi no computador. não lembro se apanhei por isso, acho que não. meu pai estava se transformando na pessoa que ele é hoje, que coloca a placa de “proibido” para ver se sou capaz de passar desse limite e lidar com as conseqüências, e foi assim que ele agiu: certa vez fiz algo no windows (98) que bloqueou a instalação de qualquer programa novo, deixou todos os ícones pretos e ele ficou muito bravo comigo, falando “anda moleque! resolve logo” e eu fiquei apavorado, sem ter idéia de como resolver aquele problema. ele provavelmente riu de mim por trás das cortinas. não lembro como resolvi ou se ele resolveu, mas foi por aí que aprendi a formatar computadores.
foi nessa época que, falando dos gostos pessoais “sem” influência externa, meu pai comprou o famoso cd de quinhentas roms do mega drive. eu joguei muito jogo dali, muito mesmo, só dos que cheguei a terminar passei dos cem. não muito tempo depois veio a internet discada e passei a descobrir sites dos meus jogos favoritos, colaborar com eles enviando macetes que eu mesmo tinha descoberto por passar minhas noites todas ali. eu construí uma realidade alternativa ali naquele computador e vivi ela todos os dias, a babá já não tinha mais com o que se preocupar, eu poderia passar a noite sem comer e não haveria problema algum porque era como uma criança que morava dentro do computador.
e eu não me sentia mal, não me sentia só. meus pais dormiam comigo (na mesma casa que eu, né!), meus pais não eram o melhor casal do mundo mas já não haviam mais brigas com risco de divórcio, eu ia para a igreja nos domingos e tinha meus amiguinhos ali, às vezes ia para a casa da minha prima no final de semana e a gente ficava brincando, às vezes viajava para a casa da minha avó com todos os meus primos e a gente combinava de ir no rio com toda a família. eu era, de fato, uma pessoa isolada, talvez até um pouco problemática, excessivamente analítica, mas você não poderia dizer que eu era infeliz e insatisfeito.
a Burguesa Solitária era.
ela era uma menina com problemas de auto-estima por se achar gordinha, filha de pais divorciados (não sei como não tenho certeza disso, mas finjamos que tenho, ok?). acho que convivia apenas com o pai. não parecia ter amigos. morava no centro da cidade, o que, para uma criança da zona norte como eu, era um lugar muito misterioso que tinha apenas lojas, restaurantes, médicos, ônibus e o trenzinho da alegria. eu nunca poderia imaginar que pessoas moravam lá, principalmente crianças.
e, se ela morava no centro, como foi parar no meu apartamento? resposta: nas férias, por algum motivo, ela ficava no apartamento da avó. não, eu não sei o motivo e pensar nas possibilidades de alguém precisar ficar com a avó nas férias está me deixando bastante triste. na verdade isso aconteceu muitas vezes mas ficou evidente em um desses anos onde meus amiguinhos tinham todos se mudado e, nas minhas férias, só estava ela ali. só ali ela foi mais do que “mais uma amiga”, ela foi “a minha amiga”, uma pessoa especial pra mim. não tenho uma memória ruim sequer dessas férias onde brincamos, exceto a consciência de que nós não brincaríamos pra sempre. essa doeu muito em mim mas eu não poderia nem imaginar como doeria nela.
ela foi a única pessoa que entrou no meu mundo virtual da infância, que virou uma tarde jogando a rom de pocahontas do mega drive comigo. não passamos da primeira fase. meu pai foi meu companheiro de master system, de sonic the hedgehog, de moonwalker, de double dragon, de alex kidd in the miracle world, mas fui um jogador completamente solitário de rom de mega drive: ninguém sabia todos os macetes que eu sabia de sonic the hedgehog 2 e todos os nomes de personagens secretos que inventei para as paletas de cores que colocava manualmente no sonic quebrando o jogo (tipo o ashura the hedgehog, sabe? esse é oficial, mas eu tinha os meus), ninguém viu o quanto suei para passar a marble zone do sonic the hedgehog, ninguém me viu tentando zerar os três mega man de mega man: the wily wars na raça porque a bateria de save não funcionava naquele cd, ninguém sabe nada do meu vasto universo interior da infância de mega drive. exceto ela, exceto a pessoa que jogou pocahontas comigo nas minhas férias. eu lembro o nome dela, é claro que lembro o nome dela. mas vocês só precisam saber que ela é a Burguesa Solitária.
certa vez, ainda durante esse período, ela me convidou para ir até o apartamento dela. lá no centro, mesmo. o pai dela demoraria pra chegar em casa então a gente não incomodaria ninguém. minha mãe, então, me levou até lá para passar essa tarde: foi o lugar mais burguês que já conheci fora o apartamento da minha tia em são paulo lá no bairro do são judas, tinha um negócio muito mágico chamado “tv a cabo” onde passava desenho literalmente o dia todo numa televisão que aliás era enorme, perto da já agressiva dezenove polegadas de casa. e tinha um iogurte muito engraçado que ela “sabia fazer”, tipo um picolé que você colocava no congelador de cabeça pra baixo e esperava um tempão, que eu quase subi nas paredes esperando, para que saísse congelado e você pudesse chupar como se fosse um picolé (era só um picolé de iogurte). é engraçado porque hoje em dia tudo isso é normal, tudo isso faz parte da minha vida, tudo isso eu posso comprar e, aliás, a casa onde eu moro vale mais que um apartamento daquele, mas era tudo muito sinônimo de prosperidade para mim na época. ter um videogame mais “da hora” que o atari ou o master system, ter suas próprias fitas ao invés de precisar locar (meu master era o máximo, se você apertasse o botão o sonic aparecia sozinho. dava pra jogar sonic sempre que quisesse. uau!), não precisar dormir e acordar no dia seguinte pra ver desenho. a minha geladeira era recheada mas eu era fresco, eram sempre as mesmas coisas e eu achava que isso significava algo ruim, aquele picolé de iogurte era muito caro e eu insisti muito pra minha mãe comprar mas ela nunca comprou.
eu nunca mais pude visitar o apartamento dela. não, não sei o motivo. existem vários possíveis, ela não apareceu muito mais na casa da avó depois dessas férias. talvez tenha crescido mais um pouquinho e parado de dar trabalho para o pai, talvez eu tenha feito bagunça demais lá e o pai tenha ficado bravo. o motivo possível que mais me assola, porém, é o que ela provavelmente deve ter sentido (seja verdade ou não) por ser uma garota muito frágil, muito mais frágil do que eu poderia perceber sendo uma criança de seis ou sete anos: eu fui na casa dela e fiquei tão deslumbrado com tudo o que ela tinha que não percebi que o que havia de mais valioso ali dentro era ela. dei tanta atenção para o que estava ao meu redor que não dei atenção para ela, não ensinei ela a brincar de carrinho no barro do jardim do condomínio, não cacei um papelão para descer o barranco com ela nas costas, não peguei um copo d’água pra ela em casa, não ensinei ela a jogar pocahontas tecla-a-tecla. eu perdi ela de vista. esse foi o verdadeiro primeiro coração que parti, aos seis ou sete anos de idade. não que eu tenha sido a primeira pessoa a partir o coração dela. o primeiro homem que não notou que o que havia de mais valioso naquele lugar era ela foi seu pai, eu fui um menino que pareceu ser uma nova espécie de homem mas, quando confrontado com essa realidade, acabei sendo só mais do mesmo.
essa história nunca me assombrou e, honestamente, nunca vai me assombrar. ela só… desenhou muitas das minhas fantasias. como disse: não valorizo a riqueza material de uma pessoa, eu sei o quanto ela pode ser triste e solitária com muita coisa. aliás, sei que quanto mais rica uma pessoa mais possibilidades de problemas mentais e emocionais ela tem. menos pessoas te honram quando você é pobre mas, quando isso acontece, você sabe que é real, que é seu, já o rico recebe honra por coisas que não fazem parte dele (seja por bajulação ou não. o patrimônio de alguém oculta completamente sua pessoa, é algo impossível de evitar. você pode respeitar frank zappa mas não sabe quem ele é e nunca vai saber), ele sabe disso e quando resolve fazer os cálculos de quanta honra recebeu de fato acaba descobrindo que recebeu menos honra do que um pobre. maioria dos ricos devem pensar “minha vida seria melhor se eu não tivesse tanta preocupação”, assim como maioria dos pobres pensam “minha vida seria melhor se eu tivesse dinheiro”.
atenção: tópico científico-experimental abaixo. favor enxergá-lo analogicamente e não digitalmente para evitar danos cerebrais.
disclaimer de 2024: é a mesma coisa do disclaimer que fiz em heart-shaped star e a estrela cadente vii parte 2, sobre minhas tentativas de assimilar os estereótipos de gênero. mas acho que, nessa altura do campeonato, o ouvinte já deve ter percebido o quão confuso eu estava.
mas essa história é muito importante. ela ocorreu dez anos antes da Primeira Vítima, tem todos os elementos de um heartbreaking e demonstra como, em todos os sentidos, eu sempre fui propício a isso. propício a ser muito amigo das meninas no sentido mais puro e ingênuo, propício a ser sensível a todos os sentimentos, necessidades e expectativas que as meninas tem… exceto com relação a mim mesmo. lembram, estrela cadente vii? an-si-e-da-de. o romance não é algo feito para o mundo dos adultos com beijo, umas pegações, sexo, pelo contrário: o romance é algo infantil, é algo puro, essencialmente uma amizade composta de um elemento masculino e um feminino.
pelo fato da natureza dos dois serem tão diferentes a maneira de um corresponder ao outro, caso a intenção seja a maneira plena e não as seguranças de uma amizade limitada entre homem e mulher, não é a maneira de um homem corresponder ao outro homem na amizade (ajudando a resolver problemas, debatendo idéias que significa basicamente chegar a um consenso sobre o que viram já que cada um viu uma coisa diferente e é consciente disso, fazendo brincadeirinha maldosa e até se xingando e saindo na porrada, etc.) nem a maneira de uma mulher corresponder à outra mulher na amizade (se elogiando, se tocando, falando qualquer bobagem (eu sou homem, não sei descrever isso. desculpem!) para expressar aquilo que está no coração, etc.), é uma maneira única de um relacionamento entre um homem e uma mulher. sempre há um “a mais” numa amizade entre homem e mulher:
como vê, há muita coisa específica da amizade entre homem e mulher, definitivamente não é a mesma coisa que amizade entre pessoas do mesmo sexo. é claro que estou falando de modelos perfeitos totalmente masculinos e totalmente femininos e que ninguém se encaixa cem por cento em nada disso, eu não me encaixo cem por cento pela maneira como a minha mente funciona, eu acabo tendo que fazer parte do modelo feminino em muita coisa e isso é justamente o que traz toda essa confusão pra minha vida.
eu sou mestre na amizade entre homem e mulher. é o meu padrão. um verdadeiro mestre ao ponto de ter dificuldade na amizade entre homens. eu sempre sou emocional demais, demonstro umas fragilidades que não precisava demonstrar até porque sendo uma pessoa tão sexual e musical falar de sexualidade deixou de ser um mistério pra mim e se tornou semelhante a falar de computadores, não gosto de ficar falando de mulher toda hora porque o resultado é sempre trágico (falo besteira altamente pervertida ou acabo tendo que lidar com um “excesso” de imagens na mente antes de dormir). eu acabo sendo uma bicha por tentar controlar um excesso de hormônio masculino.
pra ser bem sincero, tudo isso é muito danoso pra mim. ainda não entrei nessa parte e pode ser que fique para o último capítulo.
e, como vê, o romance é isso. é a amizade plena entre o homem e a mulher, o homem e a mulher amigos ao máximo. vocês vão acabar querendo satisfazer os anseios um do outro porque são seres humanos cheios de amor e carência e existem certos anseios que, ao satisfazerem, vocês magicamente entram num casamento (o real, não o civil). eu fui severo na sétima estrela e permaneço severo aqui: o seu melhor amigo precisa ser seu cônjuge, se você trata marido/esposa como “marido/esposa” e coloca em outra pessoa o posto de “melhor amigo/a” você não casou, e se não está nesse processo durante o namoro você não está namorando e sim levando um boizinho sexual pro abate no altar.
fim da análise científico-experimental