Acho que encerrei o capítulo anterior falando da Bem-te-vi, não é? Acredito que sim. Lembro com certa consistência do que escrevi.

Vamos revisitar um pouco o episódio da Bem-te-vi: ela veio durante uma tragédia amorosa iminente com a Miss Bondade, que foi uma história de dois anos que ocorreu intercalando-se com outras histórias que, de forma alguma, eram menos importantes. Histórias na Pequena Londres, histórias em outras cidades. Antes dessa tragédia acontecer, tivemos um episódio bastante significativo com a Foránea. Antes da Foránea, Olhos de Cristal. Antes da Olhos de Cristal, Miss Maldade. E antes da Miss Maldade, a Namorada. E antes mesmo da Miss Bondade existir, os episódios com a Moça da Carta de Amor, que foram talvez os mais marcantes.

Muitas histórias, contadas duas vezes, com dois pontos-de-vista um pouco distintos mas talvez um pouco complementares:

Da primeira vez que foi contada, por uma pessoa repleta de problemas de repressão sexual óbvios, que precisava urgentemente reprimir todos esses desejos porque eles eram pecaminosos e levariam o narrador a destruir mulheres puras e santas e acabar caindo nas garras de mulheres terríveis, perversas, pervertidas, impuras, cruéis, más.

Vamos definir esse narrador como um cristão fundamentalista, porque ele é a reprodução perfeita de um rapaz que acredita em algo que chamamos de “cultura de pureza”. Ele vive isso.

Só que ele vive a contradição de ser alguém repleto de desejos sexuais que considera absurdos por serem muito mais do que a imagem de vida sexual para alguém que nunca a teve com alguém além de sua mão, e ao mesmo tempo alguém que possui um coração muito bom para mulheres, que se importa com elas, chora com elas, acha seus assuntos divertidos, as admira e possui amizades ocasionalmente atrapalhadas pelo seu conceito autosabotador de desejo.

É de um aperto no coração enorme pensar que existem pessoas como ele que, quando sentem uma pontinha de desejo por amigas queridas, trancam-se no quarto e choram. Isso não deveria ser uma contradição, mas você não teria como explicar a esse rapaz porque, para ele, o sexo é como uma força mágica que vai desfigurando a pureza de um homem, transformando-o num abusador, numa besta descontrolada, no “homem patriarcal”.

Pode parecer ridículo, e é. Só que uma tralha de coisas erradas foram ensinadas a ele sobre relações humanas, relacionamentos entre homens e mulheres, sexualidade, e ele as aceitou sem questionar – a interpretação de tudo isso, é claro, veio dele mesmo, mas não teria acontecido com informações minimamente decentes.

Quando tomei as rédeas da história e passei a contá-la, assumo, também era uma pessoa diferente de quem sou hoje. É normal que mudemos, e faz um pouco de tempo, né? Uns aninhos desde que saiu o último capítulo.

O que não posso negar, como também cristão, é que também sou uma vítima do fundamentalismo, também sou uma vítima dessa cultura de pureza na qual o antigo narrador estava imerso.

O que temos de profundamente diferente é que estive sempre em busca da verdade, enquanto o antigo narrador estava satisfeito com as doutrinas como elas eram, ainda que fossem mentirosas, ainda que fossem opressivas e repressivas, ainda que o obrigassem a mentir, a ser amigo de pessoas que detestava e que, no fundo sabia ele, o detestavam também. O antigo narrador estava imerso num mundo que não era o seu e não sabia.

Eu... queria saber. Eu queria entender. Dei o benefício da dúvida a todas essas doutrinas, fui generoso com elas, estudei, perguntei, me relacionei, ouvi, obedeci, mas a minha conclusão, talvez demasiado tardia, foi: não.

A minha conclusão veio depois do sofrimento, depois da dor, mas a história ainda não está contada e é ela que vou contar agora.