esse é possivelmente o bloco mais complexo e pesado dessa novela. você pode pular caso se considere uma pessoa frágil e caso se considere uma pessoa burra também. você vai entrar na minha intimidade: ela é difícil de entender, ela é cheia de teorias e práticas estranhas que só fazem sentido pra mim, cheia de palavras com significados que não são os reais mas os que eu mesmo atribuí. é maçante, é o mais próximo que eu, o pobre heart-shaped star, vou conseguir chegar do “espírito da noite na pequena londres”.
disclaimer de 2024: nem vou editar nada desse capítulo porque acho que vale a pena ler essa porra e entender o malabarismo que fui capaz de fazer com minha sexualidade e minha identidade de gênero pra me encaixar na minha religião da época. virtualmente homossexual, puta que pariu. mas ao mesmo tempo "eu era minha máscara" explica tanta coisa.
esse último parágrafo expõe um problema que demorei muito tempo pra resolver na minha mente: eu não gostava da Miss Bondade, não gostava de menina nenhuma, nunca gostei de menina nenhuma; existe algo que você deve ter esquecido aqui, ouvinte, no meio de todos esses dramas, todas essas meninas, mas aqui é um cenário de ansiedade extrema, de fantasias mal-resolvidas na minha cabeça. a verdade que prevalecia sobre mim é aquela dita no capítulo anterior que foi criada na minha infância: eu era virtualmente um homossexual. flertava com as meninas para aliviar as tensões do meu corpo e eventualmente porque descobri que ser observado levava meu ego ao céu e a minha imaginação a criar uns cenários muito divertidos, criava histórias de amor com as meninas porque a Moça da Carta de Amor despertou o desejo de romance em mim, criava o casamento com as meninas na minha cabeça porque aprendi com meus pais que casar é bom e porque na igreja você tem que casar, comentava das meninas com os outros meninos porque todo mundo comentava e eu precisava seguir aqueles protocolos sociais, mas eu não sentia desejo por mulher e não adianta me dizer que sentia porque hoje sinto e sei a diferença do que era para o que sou. eu tinha medo de mulher, mesmo que fosse um homem temível e destemido, um homem que tinha passado pelo vale da sombra e da morte, que era capaz de encarar o presidente da América se fosse necessário, porque a minha alma continuava abusada psicologica, fisica e emocionalmente por elas, morria de medo do sexo porque sabia que me sentiria estuprado até o momento onde teria um ataque de ódio e mandaria a mulher para o hospital, de onde ela eventualmente sairia, e também para uma clínica psiquiátrica, de onde ela nunca mais sairia.
esse foi o motivo pelo qual preservei minha virgindade, ouvinte. não foi por motivos religiosos, não foi por “falta de oportunidade”, foi para me proteger e proteger as pessoas de mim. eu viro a cabeça de pessoas que gostam de virar cabeças. todo esse joguinho que as pessoas más fazem de “mente instável/ coração bom”, de deixarem a outra pessoa maluca aprisionada apanhando do egoísmo delas e, assim que o dedo é apontado, chorar compulsivamente, se condenar, fazer horrores para que ela sinta pena e acredite que está lidando com uma pessoa “pura” “machucada pela vida”, o joguinho do “passivo-agressivo”, está quase colado na minha essência. a minha dissociação ocorreu na infância, tão cedo que não sei como é não viver assim, não sei “quais são os privilégios” de viver assim porque para isso eu teria de conhecer a outra maneira de viver e eu não a conheço.
mas há uma grande diferença entre eu e as pessoas que “fazem joguinho com isso”: não sou um mentiroso compulsivo, sou um potencial mentiroso compulsivo. a minha honestidade me leva a ser essa pessoa que escreve a noite na pequena londres expondo suas próprias falhas de caráter descobertas para que outras pessoas notem que é melhor viver sem isso, que elas no fundo sabem que viver sem isso era muito melhor do que agora que precisam sentir o peso de dívidas emocionais com os céus e a terra. eu nunca entendi por que “cínico” é o adjetivo que as pessoas mais usaram contra mim desde a infância, e isso triplicava a agonia dessas pessoas porque elas apostavam que conseguiriam derrubar a minha máscara ou porque era como se eu não confiasse nelas, elas diziam “tudo bem, você pode tirar essa máscara pra falar comigo” com raiva ou com amor e eu não entendia em nenhum dos dois casos porque eu mesmo acreditava na minha máscara já que ela era tudo o que eu tinha vivido. eu era a minha máscara, eu não sabia que tinha algo por trás, eu não me conhecia e me reconhecia como ser humano. não entendo o fundamento da minha máscara, não sei o que pensava quando tinha três anos de idade, mas sei que ela não foi criada para se aproveitar das outras pessoas e talvez nem mesmo para me proteger das outras pessoas, ela foi criada porque com três anos de idade eu não tinha a capacidade de viver o mundo ao qual fui apresentado pela puberdade forçada então precisava criar uma pessoa que fosse capaz. a minha máscara não faz joguinho com as outras pessoas, ela faz joguinho comigo mesmo. todas as meninas que resolveram jogar por seus próprios motivos, geralmente mesquinhos, sentiram-se disputando minha atenção com uma mulher imaginária e terminaram seguraram vela para os meus dois “eus”.
necessário dizer, um dos meus “eus” era obviamente feminino. não havia vantagem em ser homem nesse mundo. os homens eram pessoas frágeis em quem as mulheres pisavam, maltratavam, xingavam, batiam, tacavam as coisas de casa, manipulavam, ainda por cima nunca eram considerados bonitos, tinham a obrigação de trabalhar enquanto as mulheres trabalhavam “para fazer carreira”, não podiam expressar seus sentimentos (e eu tenho muitos, como deve ter percebido) e muitas outras coisas. não, não é engraçado nem ridículo nem mentiroso da minha parte, ouvinte. não estou falando de um adolescente ou jovem frustrado com tendências conservadoras postando contra o feminismo no twitter, estou falando de uma criança de três anos, confrontada com a sexualidade, debaixo de um casamento em chamas com uma mãe violenta e manipuladora de uma família de mulheres revolucionárias por terem problemas com pai alcoólatra e adúltero e um pai filho de um homem que sempre preferiu o alcoolismo e a prostituição a tentar resolver um conflito emocional dentro de casa (“sentimento é coisa de mulher. homem tem que trabalhar”). não tem nada engraçado e ridículo, ouvinte, e é injusto dizer que nessa idade eu tinha a capacidade de ouvir que estava sendo irreal porque as mulheres sofrem muito.
tudo o que eu precisava, aí, era de alguém chegar em mim, me dar um abraço, dizer “vai ficar tudo bem” e fazer eu me sentir seguro. eu nunca me senti seguro no mundo. meus olhos estão sempre inquietos observando o ambiente vendo se está tudo certo, se as cortinas estão alinhadas, se os livros da estante estão organizados corretamente para não caírem, se não tem ninguém me observando, se a respiração das pessoas ao meu redor está compassada. eu constantemente destôo do ambiente para confundir o padrão de comportamento das pessoas e pegar coisas de sua personalidade em segredo para ver se não estou no meio de pessoas que me odeiam. eu controlo o ambiente e as pessoas sem abrir a boca porque acredito que, se não tiver o controle, estarei em perigo. você sempre vai me ver sabendo tudo o que aconteceu mas nunca interferindo no curso dos fatos.
chegar para uma criança dessas e dizer “você é machista” é coisa que só um monstro é capaz de fazer.
e, voltando, um dos meus “eus” é feminino. o meu “eu” virtual, homossexual. sedutor, verbalmente agressivo, cruel, misterioso, manipulador, que coloca as pessoas umas contra as outras, que desperta desejos irracionais nas pessoas para que elas também criem personalidades alternativas que lutarão por esses desejos (tenho preferência em despertar desejos diametralmente opostos para que elas enlouqueçam e percam a fé em tudo o que sempre acreditaram. “eu sou assim tão horrível?” ela se pergunta, ela se debate. é provável que sim, ela seja, mas será que ela é capaz de descobrir que é e será que ela quer? “e daí? eu também não merecia com três anos de idade. esse é o mundo em que vivemos”), que ama o conflito, ama a contradição, ama dar importância ao que não é importante com mais firmeza que as pessoas que dão pouca importância ao que é importante para que elas se percam ou se sintam insuficientes. era assim que eu enxergava uma mulher. um monstro, o próprio satanás.
quando digo que “me odeio”, ouvinte, quase sempre me refiro a esse “eu”. esse “eu” é uma mentira muito flexível que assume a forma que quer, vai até onde quer, vive com quem quer, e só eu sei que é irreal e mesmo eu tenho dificuldades porque ele me tapeia muito bem. ninguém mais sabe.
eu me sinto a pior pessoa do mundo carregando esse “eu”, mas essa é a maneira de racionalizar os meus problemas, essa é uma construção horrível mas a fiz em cima de alguns outros parágrafos mais sólidos para você não se perder. caso tenha se perdido foi porque quis ou porque se enxergou aí dentro e não gosta que as pessoas te exponham a você mesmo. eu sei como é. dá uma agonia, né? dá a sensação de que sete bilhões de pessoas estão olhando e rindo de você, dessa coisa desprezível que você é, mas passa. ninguém está te acusando de nada, ouvinte, estamos só nós dois aqui e você não é desprezível só por não ser perfeito, na verdade você faz mais mal a você mesmo do que aos outros e aposto que seria um prazer te dar um abraço e dizer que você é amável. “amável” é quem você é, não “desprezível”.
eu sou honesto, eu conheço essa máscara que tenho e sei como ela funciona, não posso controlá-la mas percebi há anos que consigo mudar sua forma pra melhor embora exija paciência porque não acontece na hora. pode levar dias, meses, anos. o que importa pra mim não é ter uma máscara, é o que faço com ela e por que faço, assim como não me importo com o que as pessoas fazem mas com a intenção do coração delas. a não ser que tome um soco na cara, aí pode ser que eu acabe revidando por impulso, né? mas sem ressentimentos.
também é importante notar que chamar tudo isso de “máscara” é uma redução simplista do fenômeno e que dizer que sou especial por ter isso é uma mentira. todos têm. só conheci cedo demais, sem ninguém pra me ajudar, corri perigos demais e não faço a menor idéia de como estou vivo. isso tudo que ninguém vê, meu ouvinte, é meu “universo interior”, é a minha intimidade. sabe? aquele lugar que, quando acontece aquele negócio chamado “novo testamento”, vem um homem completamente maluco chamado Jesus Cristo que se declara “filho de Deus” e diz que quer habitar e transformar. diz que mostrar transformação em qualquer outro lugar não significa nada para ele, diz que não adianta ser tão certinho e justo por fora se está morto aí dentro. não importa que não pegou aquela mulher, caso tenha pensado e fantasiado pegá-la você é um adúltero. não importa que não matou aquele maldito rapaz que te fechou no trânsito, caso tenha pensado e fantasiado matá-lo você é um assassino.
o mundo concreto não tem pena para os crimes cometidos na sua intimidade mas o mundo espiritual tem e isso não é só sobre “pecado”, você porta um espírito que todos os seus descendentes terão de lidar e o propaga, as pessoas ao seu redor o captam de alguma forma. mesmo que não mate ninguém seu filho vai querer, seu neto vai querer, e dadas as circunstâncias corretas algum deles fará. sem contar que as pessoas ao seu redor serão afetadas por isso e podem “despertar” para o homicídio através da sua ira. o mundo espiritual é extremamente caótico, está em guerra constante, a cada instante milhares de anjos e demônios vencem e perdem batalhas, e se você é das pessoas que querem lutar pela coerência e perfeição o mundo espiritual é o pior dos seus infernos porque você é incapaz de vencer qualquer batalha dele. pode doer ouvir, e se estiver doendo peço que pare, mas você é um potencial homicida, é um potencial estuprador, é um potencial manipulador, você não vai conseguir deixar de ser e essa potência é suficiente para te condenar ao inferno. entendeu melhor o sacrifício de Jesus e tudo o que ele levou na cruz? ele levou você na cruz, ele carregou as suas potências, ele sentiu esses seus desejos mórbidos e ficou apavorado porque era um homem puro e inocente aos trinta e poucos anos enquanto seu corpo apodrecia numa cruz. tudo isso trocando de lugar com você para que a sua existência fosse perdoada porque, se ele foi puro você é um potencial homem puro, basta colocá-lo para governar a sua intimidade com todos os seus potenciais. é assim que “mudo a forma da minha máscara” pra melhor.
não, eu não expliquei nada. não deixei nada claro o suficiente embora você possa ter entendido algo e se aberto a algo ouvindo isso. só surtei contando porque essa é a coisa mais maluca que já ouvi, jamais acreditaria se não fosse o fato de que deu certo e eu provo disso. provo disso racional e emocionalmente. se quer saber o nome de alguém por quem eu não consigo esconder a minha paixão descontrolada, esse nome é Jesus Cristo. foi a única pessoa que virou a minha cabeça.
voltando à intimidade: você não conta sobre você mesmo pra qualquer um, eu também não, mas quando se é criança você é bobo e conta sim tudo pra qualquer um, já eu… também não contava. faz parte daquilo que disse nos capítulos anteriores, de “manter meu universo imaginativo coerente para não surtar”.
saindo um pouco desse personagem e sendo eu mesmo, “heart-shaped star”, devo dizer que existo para isso. sou uma música, ouvinte, e a música não mente. a letra da música mente, o músico mente, os entrevistadores mentem mas a música, ah, aquilo que está na música não mente. as músicas expressam com muita clareza como as coisas são na intimidade, ela usa uma linguagem que não é nossa, conversa com os nossos ouvidos driblando a nossa mente porque a mente não consegue entender o que acontece durante uma música: você foi derrotado pela mente caso ouça uma música padronizando a audição, caso preste atenção no formato, em “4/4” ou tempo ou “riff” ou qualquer outra dessas coisas que se comentam por aí; é a mesma coisa de chegar em algum morador de rua e, ao invés de conversar com ele, prestar atenção na sua forma gramatical.
mas não vou explicar “a música”. vou me explicar: a minha identidade não está fundada na música, mas descubro honestamente o que está acontecendo dentro de mim com o que se forma musicalmente dentro de mim, as minhas orações mais sinceras são feitas no meu teclado e no desenho das minhas cordas vocais. agora o mundo está mais fácil pra mim, heart-shaped star, porque a linda moça dos cabelos longos e negros abriu as portas da prisão e hoje sou uma pessoa viva e vibrante embora ainda tenha meus episódios de reclusão, mas precisei criar esse espaço para existir e esse espaço foi criado com a música, com espasmos musicais e depois a constelação que solidificou a minha existência no mundo.
a minha realidade é musical. eu sou humano, mas o mundo ao meu redor é musical. uma pessoa sonora, movida pelos sons e não pelas imagens, pela música que está saindo de você e não por quaisquer outras coisas. por isso, enquanto eu existir, esse inferno sem saber quem sou e o que estou sentindo não existe mais.
estou com preguiça de continuar falando disso aqui, e aposto que você também está com preguiça de ler. chega de loucura. voltaremos à história.