Série: heartshaped star - estrela cadente / estrela cadente vii

heart-shaped star: estrela cadente vii parte 4

6 de outubro de 2017

jornada no fantástico mundo da ansiedade: pare de correr, garotinho lindo parte iv (fim)

 

eu sou uma pessoa má.

socialmente má, essencialmente boa.

não é divertido?

eu, que com cinco anos era muito mais moral que os outros, que com treze anos confrontei a moral dos outros, me tornei uma pessoa má. você consegue imaginar meu rosto ao dizer isso? ele deve ficar triste, deve ficar com um riso mau, deve ficar raivoso? não! ele está tranquilo. a verdade é que conhecendo melhor as pessoas fui me tornando apático à bondade social, a depressão foi tirando de mim a capacidade de ver valor nas coisas sem investigar antes suas intenções e quase fui derrotado por isso, por anos fui derrotado por isso, por anos suspeitei de cada ação bondosa dos outros. como disse em algum outro momento, falando de alguma outra coisa, sou “incapaz de receber amor”. mas isso é o mundo das aparências. como disse em alguma notinha nesse outro momento a força que exerço para dar e receber, principalmente receber porque dar é até bem fácil, amor se tornou a minha linguagem do amor predominante. isso significa que eu lutar para me vencer quer dizer muita coisa, mas essa luta é um verdadeiro desafio para se perceber. tornei-me uma parede contra pessoas medíocres (não me entendam mal: medíocre, de qualidade média, comum) contra minha própria vontade. as minhas respostas ansiosas, secas e cruéis para as perguntas criam barreiras para pessoas que não me conhecem muito bem e às vezes para as pessoas que me conhecem muito bem também, criam barreiras para pessoas que não têm essa capacidade adulta de perceber intenções ocultas.

jovens como eu ainda estão no processo de compreender que o mundo é mais cheio do oculto que do revelado, que as pessoas mentem para si mesmas, acreditam na própria mentira e só depois disso vão para o mundo. jovens como eu estão sempre em bandos, seja um grupo da igreja, ou uma tribo urbana como os emos e punks e todos eles possuem uma superfície de idéias semelhante, adotam o mesmo código de vestimenta, gostam do mesmo tipo de música, usam um vocabulário semelhante, possuem hobbies semelhantes. o adolescente é totalmente isso, você dificilmente vai ver um adolescente se destacando dos outros ao seu redor embora todo adolescente acredite que é diferente de todos os outros. o jovem ainda é isso, mas já não é totalmente isso: ele já começou a perceber que não precisa concordar com seus amigos em tudo, começa a conflitar gostos interiores com gostos do bando, a perceber que certas coisas que aprendeu em casa são muito melhores que as coisas que seus amigos praticam. eu, aos vinte-e-um anos, deixei de me interessar em ser parecido com qualquer pessoa que não fosse meu pai, fora talvez o maior mestre da música do brasil ou quem sabe do mundo. comecei essa fase do conflito dos gostos interiores com o gosto do bando aos dezenove, aos vinte meus amigos já não sabiam mais dizer do que eu gostava ou não. mudo muito rápido se as circunstâncias pedirem, quando me distancio de alguém por um mês e volto a conversar a pessoa pode se surpreender com as mudanças na minha linguagem.


eu me recupero muito rápido. às vezes as pessoas acham que finjo meus problemas pela agilidade que tenho para me recuperar deles. meninas ficam muito frustradas pelo fato de que, quando saímos da “zona de confusão”, eu não reajo como os homens normalmente reagem. não finjo que não houve sentimento algum, não deixo que o tempo os traga à superfície sozinho e então passo a sofrer e xingar todas as mulheres do mundo e abro essa oportunidade para elas, que já se recuperaram da tragédia, agora assistirem de camarote e rirem do meu sofrimento. não, eu choro desenfreadamente por três dias, não tenho medo de agrupar memórias e transformá-las em lágrimas para que saiam de mim bem rápido, e em uma semana isso já não é mais assunto. eu tenho depressão, ó raios, chorar às vezes é um esporte. isso se eu não antecipar a tragédia e chorar tudo com uma semana de antecedência e, quando chega esse momento, eu na verdade já estou me divertindo com ele. é meio psicopático, olhando de longe. já fiz muitas coisas doentes pré-tragédia e pra falar a verdade gosto disso.

mas não é divertido. as pessoas se frustram tentando me ajudar, sobretudo porque ataco o orgulho delas com isso. é normal que as pessoas se sintam defraudadas porque exponho meus problemas, isso toma a forma de uma verdadeira bomba que assusta qualquer um mas, assim que exposto, é provável que eu acorde bem no dia seguinte. primeiro porque meus problemas são infinitamente maiores na cabeça que na realidade, quando eles são trazidos à luz eu vejo um quadro tão mais simples e resolvível que vou lá e resolvo mesmo, sem esperar muito tempo; segundo que, como disse, tenho a capacidade de acordar pensando tudo ao contrário, então minha flexibilidade para mudar a maneira de pensar é enorme e também tenho essa facilidade em não resistir aos meus sentimentos com relação a mim mesmo, tenho essa gama gigantesca de fantasias que me traz milhares de lugares para procurar a cura para os meus problemas. é difícil para mim procurar ajuda, mesmo que às vezes seja o caminho mais curto, porque é muito mais tentador me quebrar e ficar horas me remontando. Deus constantemente precisa me lembrar que não existe só o primeiro mandamento, existe o segundo também. tudo isso implica em: se te contei um problema hoje muito obrigado pela sua ajuda, mas não creia que me tornarei minimamente dependente de você porque no dia seguinte vou embora; serei eternamente grato, sou eternamente grato, mas não crie expectativas dessa dependência, eu realmente vou melhorar e você não vai me manter no seu colinho por meses. mesmo porque, a partir do momento em que você cede o colo uma vez, passo a ser capaz de reproduzi-lo com a minha própria mente. nada que não seja concreto e contínuo me segura.

parece idiotice falar disso mas é muito importante porque vi mesmo pessoas reclamando. as pessoas muitas vezes ajudam outras com esse interesse em usá-las, seja benignamente ou malignamente, sabendo que estão fazendo isso ou não (normalmente não). as pessoas tentam salvar outras pessoas buscando, na verdade, resolver seus próprios problemas. elas projetam seus problemas emocionais nos outros e saem nessa aventura radical de salvá-los tentando salvar a si mesmos. não, não estou te condenando, meu ouvinte. fiz isso a minha vida toda também. e fui vítima disso a minha vida toda: minha ansiedade é capaz de simular problemas emocionais e mentais de todos os tipos, meninas de todos os tipos tentaram me salvar; me salvar da depressão, me salvar do cinismo, me salvar do niilismo, me salvar da descrença, me salvar da crença, me salvar da possessividade, me salvar da solidão, me salvar da esquizofrenia, me salvar da morte, me salvar da frigidez, me salvar da inteligência, me salvar da burrice, me salvar do despertencimento; eu, incapaz de entender o que acontecia comigo entrando em contato com essas meninas, me tornei o espelho da alma delas ao mesmo tempo em que elas se afogavam nas expectativas que falei no capítulo passado. elas entravam em contato com as minhas fantasias e, na intenção de me prender usando como artifício suas próprias emoções, projetavam-se em qualquer personagem que eu quisesse e até hoje não sei se fizeram isso sabendo que estavam fazendo ou não.

elas também não sabem se eu controlava a mente e os desejos delas de propósito ou não, nunca saberão. o meu esclarecimento aqui só causará mais dúvidas porque é isso que a manipulação faz, ela tira a sua capacidade de ter certeza absoluta. ela transforma seu chão em areia movediça. meninas que passaram de um certo grau de intimidade comigo mas não finalizaram o serviço perderam a capacidade de saber se estou sendo real ou teatral em qualquer situação, o melhor a se fazer é se afastar para não enlouquecer tentando adivinhar, e querer adivinhar é tentador. eu perturbo o orgulho das meninas. demonstro que, por trás de um ser que é praticamente um coração ambulante e por conta disso às vezes parece não ter coração, há sim um ego. um ego não é exclusividade masculina. a mulher não aceita que a pessoa cheia de ambiguidades na cabeça da relação não seja o homem, seja ela. elas não aceitam que se relacionaram com alguém que tem, dentro de si, uma mulher que é mais velha que elas, mais manipuladora que elas, com um salto mais alto que o delas; elas querem disputar mas, toda vez que é da minha intenção acabar com a brincadeira, puxo o tapete e deixo elas sem entenderem nada novamente.

a ambiguidade engole todas as vezes que elas tentaram manipular meus sentimentos porque, afinal de contas, eu fui mesmo manipulado ou permiti que acontecesse? eu era mesmo tão inocente ou só fingi, ou era mesmo tão depravado ou só fingi? nessa música, meu ouvinte, sou mesmo tudo isso ou só estou fingindo? quantas personalidades tive enquanto conversávamos e quão conscientes elas estavam umas das outras? entende o horror que é o jogo da manipulação? é comum, ao menos na nossa cultura, que as mulheres aprendam a manipular os homens para conseguirem o que querem e sou uma espécie de vingador dos homens para essas mulheres. elas passam pela minha vida e, depois que as quebro, se vêem obrigadas a se olharem no espelho e dizerem “não, eu não sou uma pessoa boa. as pessoas dizem que sou boa porque as manipulei até se tornarem incapazes de perceber ou proclamar meus erros sem sentir remorso depois”. a verdade é que, como disse, torno-me um espelho da alma das meninas: não sou eu o manipulador, as meninas manipulam elas mesmas tentando me manipular, elas sabem disso, eu sei disso e todo mundo esconde até o fim para evitar frustrações; e, no fim, eu termino no meu quarto fazendo uma música nova e sofrendo todas conseqüências disso e elas com a alma rasgada ou fazendo coisas extremamente idiotas como iniciar um relacionamento para tentar aliviar essa dor. mulheres que se apossaram do pecado da manipulação contraíram um certo grau de depressão tentando se relacionar comigo e sendo confrontadas com esse espelho toda hora e isso é, até certo ponto, saudável para elas sentirem o que os homens sentem quando elas fazem esse estrago neles e começarem a evitar. vez ou outra já senti orgulho disso, vez ou outra já gargalhei com isso mas é horrível, é assustador de horrível, toda vez que me pego pensando nisso com seriedade percebo que é horrível. não gosto de ver acontecendo, quando começa eu tento avisar, tento emitir um sinal, tento qualquer coisa, mas não adianta.

percebo que é horrível porque estou imitando mulheres de quem odiei ser vítima. e, graças a Deus, não sou uma pessoa que costuma sentir muita culpa das coisas, então posso dedicar minhas forças a aprender como fazer diferente.


a ansiedade e a manipulação andam de mãos dadas. a ansiedade quase que obrigatoriamente te ensina a ser dissimulado porque você perde a naturalidade, a espontaneidade, você perde o contato com seu contexto e vai aprendendo formas alternativas de lidar com ele enquanto tenta encontrá-lo novamente. pense no momento em que você vai apresentar um trabalho muito importante na faculdade e fica ansioso (lembrando que sou a personificação da ansiedade, esse é o problema. ansiedade todo mundo tem). você precisa descobrir meios alternativos de fazer aquela apresentação funcionar, precisa prestar atenção nas suas mãos tremendo, precisa prestar atenção em não gaguejar, em não ter tiques como falar “tipo” a cada dois segundos. agora coloque-se no meu lugar: lido com o mundo inteiro dessa forma, sempre estou ansioso então sempre estou me controlando em tudo. se você me explicar que cruzar os braços é sinal de desagrado você não está me explicando um sinal, está me dando uma arma de manipulação porque, já que nunca estarei reagindo com naturalidade, certamente só usarei isso para desequilibrar alguém. se o sorriso conquista coisas e não tenho intenção nenhuma de me expressar de fato para o mundo eu obviamente vou sorrir para conquistar coisas. se mudar o tom de voz para algo sério dá impacto e para algo infantil dá a impressão de deboche vou usá-los para conseguir isso, não para expressar isso. vou adulterar o contexto. vou transformar a realidade e as pessoas ficarão perdidas: se, quando estou no meio de pessoas, eu me canso mentalmente, quando as pessoas estão dentro de mim elas cansam mentalmente. e quando adultero o contexto eu tiro as pessoas da realidade e as coloco dentro de mim.

não sou só uma pessoa influente, sou uma pessoa capaz de tirar a influência dos outros. quando um preletor está falando tenho a capacidade de abrir a boca para falar coisas contrárias e convincentes que causarão um racha na audiência, com serenidade e tranqüilidade e, se o próprio preletor não for mentalmente capaz, até ele é convencido de que estou mais certo que ele. sei tirar filhos da influência dos pais, sei convencer namoradas e esposas de que elas estão com a pessoa errada, sei tirar os fundamentos das doutrinas de uma igreja. se fiz algo e não deu certo é muito provável que você deva guardar suas risadas porque amanhã vai dar, mês que vem vai dar, ano que vem vai dar; dar a rasteira hoje para alguém cair daqui a dois anos, injetar um sentimento hoje para ele aflorar ano que vem: eu sei fazer isso. sei usar a bíblia ou qualquer outro livro para convencer as pessoas do que quero porque honestamente não vejo livros como conteúdo concreto mas como meios de indução psicológica, até porque é isso mesmo que eles são. palavras não existem, esse texto não existe. disse no começo desse livro que não é pra se apegar às minhas palavras, é pra cantá-las; não leia meus textos, cante meus textos; não use a mente para me entender, me abrace e ouça as batidas do meu coração, só elas dizem a verdade. você não chega a verdade alguma lendo a bíblia, chega conversando com Deus enquanto lê, então sem um relacionamento com ele a bíblia não passa de um livro bem imbecil. sei disso porque já li a bíblia inteira sendo ateu e a minha conclusão foi que era só um livro bem imbecil. é um livro à prova de imbecis assim como eu, heart-shaped star, sou uma música à prova de pessoas sem coração. ousou me odiar, ouvinte? teve que me desligar em algum momento? então seu coração não é tão bom quanto imagina porque não mereço ser odiado nem desligado.

esses parágrafos são doentios, não são? a ansiedade, aliada à minha mente superdotada, me tornou psicopata. socialmente mau.

o problema é que isso é totalmente irrelevante. isso só torna as coisas mais difíceis pra mim. ser inexpressivo (ou hiperexpressivo, depende do ponto de vista) e discordante não é um dom, é um castigo. quem disse que quero manipular as pessoas? quem disse que não quero ser capaz de expressar aquilo que sinto vontade? quem disse que minhas músicas não são sinceras, quem disse que meus textos não são sinceros, quem disse que minha vontade de ver as pessoas bem não é sincera? quem disse que não tenho forma de coração? eu quero me expressar corretamente. é a sensação mais desconfortável que existe a de que você não falou o que realmente desejava ter falado, demonstrou o que realmente desejava ter demonstrado. o excesso de coisas na minha cabeça me impedindo de viver naturalmente é uma verdadeira prisão. se não expliquei ainda, meu cansaço ao conviver com pessoas vem daí: não saio de casa para manipular ninguém, saio para conviver com meus amigos, para não ficar só porque por mais agradável que pareça eu sei que causa problemas, e então me deparo com situação atrás de situação onde digo aquilo que não queria, causo impressões que não queria ter causado e, ainda por cima, fico montando milhares de hipóteses do que as pessoas estão pensando de mim como se eu fosse o centro do universo. eu sei que não sou o centro do universo, oh céus!, quem não sabe são os gatilhos da minha mente, eles disparam e não tem o que eu faça que os pare. o excesso de pensamentos simultâneos vai me desgastando, me causando dor de cabeça, me gerando peso nos ombros e nas pálpebras, sinto (sem brincadeira. eu sinto, juro que literalmente sinto) as trilhas neuronais no meu corpo queimando de tanto agir e a única reação possível é procurar algum lugar para descansar.

ser assim não querendo ser assim é o pior castigo que um ser humano poderia sofrer. faço coisas erradas sem querer e, dois segundos depois, tenho milhares de vozes me acusando de ter feito aquilo de propósito. muito raramente tento, de fato, manipular alguém, mas quando faço algo que alguém poderia me acusar de ter feito para manipular sou a primeira pessoa que se acusa; sei subjugar poderosamente o diabo, falar com ele sem aquela gritaria toda mas em um simples tom de desprezo, porque ele é um ser muito ativo na minha mente. já sei até identificar a voz dele, já nem me incomoda mais falar “cala boca vai, vai encher o saco de outro. o nome de Jesus já me livrou de você”. é como uma intimidade reversa. é isso que a bíblia quer dizer sobre tomar cuidado com o julgamento, que a pessoa que muito condena é também muito condenada, é essa a essência da tragédia do éden: o conhecimento mórbido do bem e do mal te traz uma responsabilidade tão grande que talvez valesse a pena você não ter conhecido nada e ter deixado tudo pra Deus, carrego comigo a responsabilidade psico-jurídica (esse termo eu inventei agora. muitos termos desses textos eu inventei. combinar palavras para criar coisas na cabeça dos outros é uma especialidade minha) de uma pessoa de quarenta anos tendo vinte-e-três, sei uma tonelada de coisas que faço de errado e resistir às acusações minhas e dos outros mas principalmente as minhas de que fiz de propósito é um verdadeiro inferno. talvez eu tenha tantas acusações para resistir dentro de mim que até nisso frustro os outros: não adianta me acusar de nada, já pensei nisso, já me acusei disso e já derrotei essa acusação no meu tribunal mental, você está querendo embutir em mim algo que já embuti sozinho e me livrei. sinto lhe informar mas você é uma pessoa lerda.

as meninas que tiveram coração partido por mim e entraram nesse processo de me acusar, direta ou indiretamente, logo perceberam que estavam falando com o vento e desistiram disso porque eu parecia completamente indiferente. elas terminaram se afastando de mim, talvez por frustração, talvez por pensar que já tenho problemas o suficiente sozinho. a única pessoa que me fez sofrer continuamente foi a que, ao invés de entrar nesse jogo macabro de acusações pós-término que aparentemente todas as meninas acham legal fazer, conversava direta e honestamente comigo “eu não estou conseguindo suportar a sua decisão. não aceito o que você está me falando. você está fechando as portas do amor. você se sente só, eu sei que se sente, e sei que gosta de mim. eu te amo e consigo sentir a sua dor aqui dentro, tem um lugar aqui dentro que só cabe você e você está deixando ele vazio” e isso se estendeu por meses. esse sim foi um “joguinho” que partiu meu coração em mil pedaços. sou uma pessoa surpreendentemente honesta, a honestidade me arrebenta mais que qualquer joguinho. e também não me interesso pela sua opinião sobre mim, eu me conheço profundamente bem para levar a sério suas palavras revoltadas com a minha conduta.

além de tudo ainda sinto a tentação de falar que fiz de propósito coisas que não fiz de propósito porque daria uma história muito legal, tão legal que valeria a pena eu sair como vilão. vinte-e-três anos, juventude, o mundo é um playground. tento ao máximo extravasar essas histórias em ficções porque, num piscar de olhos, uma mentira de mitômano transforma aquilo que era apenas ficção numa realidade fantástica incrível que nunca mais vou conseguir esclarecer. sim, não vejo a história de dentro pra fora, vejo de fora pra dentro: não vejo as situações pensando no que gostaria de fazer, vejo pensando em como tais ações alterariam o curso dos fatos, vejo como se estivesse com uma caneta na mão pronto para escrever um capítulo que ainda não existe e sei como colocar as coisas nos lugares certos para que tudo aconteça do jeito que quero, mas isso me assusta demais e quase nunca faço. pelo contrário, tento evitar a todo custo me dedicar totalmente a ter algo do jeito que quero porque vejo o caminho e penso “não, eu não vou fazer essa loucura” e as vezes que fiz e aconteceu mesmo me tranquei no quarto em posição fetal, aterrorizado com o fato de que tenho um mundo em minhas mãos sendo que me sinto tão pequeno e irresponsável. o mundo muitas vezes é um “efeito borboleta” pra mim, a teodicéia é um verdadeiro guia de como suportar o mundo sendo uma pessoa como eu. preciso ficar falando pra mim mesmo “não vou falar isso, não vou falar isso, não vou falar isso” e pessoas mais espertas e mal-intencionadas, principalmente homens que estão loucos para queimar meu filme com alguma menina ou com um chefe ou com um professor, o que seja, aproveitam-se disso para me induzir a falar essas coisas. sou um ímã de canalhas, a minha presença destrói a indiferença, sou a primeira pessoa que alguém procura para se aproveitar e, não fossem minhas explosões de ansiedade e essa minha capacidade de afogar as pessoas no xadrez das minhas fantasias, só Deus sabe o que eu já teria feito indo no embalo dos outros.

as minhas ações têm muito valor, não sei se sou injusto em dizer que têm o dobro do valor de uma ação normal mas sei que têm muito valor. não sei se alguém nota esse valor, mas eu e Deus notamos. por querer viver uma vida normal carregando esse fardo da pressão do contexto sempre estou agindo corretamente por intenção, meu sorriso sincero precisou aguentar um turbilhão de vozes falando “pra que esse sorriso? você está mesmo tão feliz assim? quem você quer convencer de que está feliz? pra que você está mostrando sua felicidade pros outros? o que você quer ganhar com isso?” para sair no meu rosto mas ele está lá, vivo, vibrante e sincero. meu sorriso não saiu do nada, ele já saiu vitorioso. e isso estou falando de mim mesmo, os outros já precisam encarar o desafio de perceber qual é o sorriso que estou usando porque, como disse no começo de tudo isso, tenho vários sorrisos e alguns deles não comunicam coisas boas.

estou servindo chá pra você porque quero ver você feliz: sim, já pensei na hipótese de estar te servindo por querer algo de você e em tantas outras mas não consigo enxergar o mundo dessa forma. não que eu seja a pessoa mais honesta do mundo mas, supondo que eu esteja sendo rasteiro e precise mesmo de algo seu, não vou conseguir ficar satisfeito se ganhar algo manipulando, prefiro conquistar a amizade e só depois pedir sem me incomodar com as vozes na minha cabeça, sabendo que posso ganhar ou não mas a amizade vai ficar. aliás, se preciso de algo seu compensa muito mais te convencer a me dar que te bajular, é mais rápido e menos humilhante e sou mais persuasivo que sedutor embora seja sim muito gatinho, só que isso conta ponto pros dois. se minha cabeça vai criar esse mundo nebuloso e triste onde tudo é jogo de interesses tenha certeza que meu coração vai manter acesa a chama do amor no meio disso, não suporto estar nesse mundo onde tudo é jogo de interesses, sinto vontade de morrer; sei que estou num jogo de interesses, sei que as pessoas ao meu redor estão jogando, sei que sou um jogador e sei agir como jogador mas dentro de mim eu sou real, muito real.

manter meu caráter limpo é uma tarefa dolorosa porque vejo milhares de possibilidades de usar minhas perversões para conseguir o que quero, para eliminar pessoas do meu caminho ou me vingar, sem ninguém perceber. sem nem a própria pessoa perceber embora muitas vezes a idéia seja que ela perceba. não me recordo quando passei a perna ou me vinguei de alguém, o segundo deve ter acontecido mas o primeiro eu duvido. Deus está me vendo e o diabo também, mas confesso que às vezes temo mais o diabo que Deus, às vezes Deus olha para mim meio desapontado se perguntando quando vou entender que não sou Jesus e não fazer burradas humanas por medo e não por temor e amor vai fazer com que eu as internalize e as manifeste sem perceber. quantas pessoas erram comigo e então nossas conversas se tornam verdadeiros campo minados? elas tremendo para falar comigo com medo do que posso fazer quando descobrir a verdade, como se eu já não soubesse e já não tivesse perdoado há tempos, porque a minha crueldade acaba se manifestando em forma de brincadeiras rasteiras que conversam com a parte mais profunda e assustadora de suas consciências dizendo “durma de olhos abertos ou alguém pode pisar na sua cara durante a noite”. não tem jeito, aquilo que a pessoa fez comigo está na minha cabeça e vai fazer parte da música que canto, um dia atingirá em cheio o coração dela e ela ficará toda assustada porque não avisei que a perdoei; ao mesmo tempo em que nem poderia porque eu teria que chegar e expor tantos pecados ocultos que me sentiria inseguro de falar tudo, a pessoa se sentiria insegura de confirmar tudo e nós só brigaríamos.

agora sim, apresentados todos os meus super-poderes, podemos voltar a falar do que é real e palpável.

expectativas, lembram? agora finalmente podemos começar o último episódio, o tão esperado: josé na prisão ou os três anos de escravidão de heart-shaped star na igreja.


quando voltei para a igreja eu parecia uma pessoa tímida. isso, ao menos, na minha cabeça. mas tenho certeza que as pessoas conseguiam ver algo de errado em mim porque eu realmente era capaz de chegar num lugar, não abrir a boca e sair. e deve ser estranho porque minha cara não é a de uma pessoa tímida (fonte: todo mundo). existem pessoas que você olha e se sente indiferente ao fato dela não ter falado nada embora queira cutucar para saber o que há lá dentro, eu não pareço ser uma dessas pessoas, meu silêncio incomoda as pessoas porque parece forçado.

e é forçado. sou o tipo de pessoa que puxa assunto com os outros: se estou num ônibus ou num avião e sento ao lado de alguém sinto impulso de puxar assunto, se entro num lugar onde não conheço ninguém já quero conhecer, sempre quis. mesmo na depressão o que acontecia era que as vozes na minha cabeça me esmagavam dizendo que ninguém tinha por que estar conversando com uma pessoa horrível como eu, então fazia o máximo para acreditar que a presença dos outros me incomodava e portanto eu queria estar sozinho. a presença dos outros me incomoda porque eu, sendo a música que sou, ouço os batimentos cardíacos deles e me interesso pelo ritmo, começo a esboçar quais tipos de sentimentos essa pessoa tem e a partir disso começo a construir um mundo imaginário sobre ela na minha cabeça. as pessoas são lindas, cada uma delas é uma história riquíssima ambulante que não cabe em livro algum exceto o de Deus, quando penso em como minha própria história de vida é cheia de emoções boas e ruins, bonanças e turbulências, penso que a história de todas as pessoas do mundo é assim igualmente saibam eles disso ou não. penso que ao meu lado está um ser tão fantástico quanto eu. é claro que estou interessado, é claro que quero me conectar a ele. eu amo as pessoas. eu amo muito as pessoas. acho que Deus mandou bem demais criando as pessoas. as outras obras ele poderia ter feito diferente, eu não reclamaria, mas no ser humano ele caprichou demais.

por isso a minha timidez é tão estranha. sempre que falo pra alguém que sou tímido essa pessoa ri, garotas acham que digo isso por ser meio cafajeste. é óbvio pelo meu jeito de me expressar que não sou tímido.

só que, na minha cabeça, eu era. e as circunstâncias de quando voltei à igreja me pressionavam a ser. eu era uma pessoa que estava “voltando”, ainda cheio de dúvidas na mente, cheio de pecados morais vergonhosos e cheio de personalidades conflitantes dentro de mim. tentava ao máximo ir junto com meus pais ou com amigos que insistiram para eu voltar, não queria ficar sozinho mas não queria conhecer gente nova, tinha medo de gente. por fora não levei muito tempo para começar a entrar no contexto mas por dentro, onde é mais difícil para outros enxergarem e as expressões são mais sucintas, eu ainda estava bastante aterrorizado de estar fora de casa.

todos os dias tinha que me convencer a sair. até que comecei a acumular boas lembranças de todas as vezes que venci e saí, “semana passada foi legal! e a outra também! e a outra também! está cada vez melhor, não tem motivo pra ficar em casa hoje. vamos!”, e fui começando a me naturalizar com isso. nesse meio-tempo parti o coração de uma menina que me incentivava muito porque na minha cabeça não existia a possibilidade de alguém estar afim de mim, e ela estava guardando uma infinitude de sentimentos que desenvolveu ao ouvir de mim tantas dificuldades emocionais; isso é um perigo até hoje, veja: sou uma música, sentimento é um assunto corriqueiro pra mim e não um sinal de que estou pedindo para você cuidar da minha vida, evito falar deles para mulheres porque não quero instigar nelas esse engano e não porque os guardo para “a pessoa especial” (esse parágrafo não significa absolutamente nada porque também quer dizer que, quando falo disso, posso estar querendo instigar os sentimentos da outra pessoa. ou seja: não dá pra saber. o mundo é um grande “não dá pra saber”. e, se você acha que não, me considerar um grande “não dá pra saber” é suficiente).

também comecei a gostar de outra menina que tinha certeza absoluta que me ignorava. não vou dizer que não sofria por ela mas estava tão distante de saber como me comportar com uma menina que estava afim naquela época, afogado na árdua tarefa de aprender como me comportar com seres humanos num geral, que nem me importei. depois de anos descobri que uma outra menina, que tinha autoridade sobre ela, falava mal de mim para ela porque estava afim de mim. não fiquei nem chateado, primeiro porque desencantei totalmente dessa menina e percebi que teríamos um péssimo relacionamento, segundo porque isso deixou meu ego lá no alto porque essa menina-autoridade era bem mais gatinha. descobrir isso deveria ter tocado um sino importantíssimo na minha mente mas não, não tocou: fica pro final.

não sei se vou já entrar nesse assunto, mas as expectativas negativas de mim mesmo me blindaram e causaram o que talvez foi a coisa mais problemática da minha vida: essa total incapacidade de perceber que meninas estavam interessadas em mim, estavam me observando, estavam falando de mim. não, não foi só porque atrasou meu processo de conseguir uma namorada em dois ou três anos, foi porque causou uma confusão sem igual. não é sobre mulher, é sobre expectativa. é sobre mexer com a ansiedade dos outros.


algo interessante sobre seu problema emocional é que ele ressoa com os problemas emocionais dos outros. problemas emocionais são, como tudo na vida, um pêndulo. o seu problema emocional de hoje é sua força emocional amanhã, ou talvez seja o contrário, a sua força emocional ontem se tornou seu problema emocional hoje. perceba uma coisa sobre mim em toda a minha história, especialmente nessa parte em que dediquei a contar como sou um verdadeiro psicopata em potencial: a minha ansiedade não era pra ser problema, era pra ser uma vantagem, era pra ser um poder e muitas vezes é.

sei encorajar as pessoas como poucos porque minhas palavras não são vãs. quando falo para alguém ir lá na frente e tocar seu instrumento musical para a multidão descrevo detalhadamente a sensação e falo que essa pessoa é capaz, não vai ser fácil mas vai ser bom, vai valer a pena. quando você dá palavras vazias de incentivo a pessoa ouve e pensa “uhum, ok. é”, mas quando aquilo sai com convicção do fundo do seu coração os ouvidos da pessoa captam algo diferente, eles captam a vibração empática das suas cordas vocais e essa vibração ressoa com o coração dela. a minha música ao encorajar alguém é diferente. sei o que é tremer para pegar um copo d’água, sei o que é tremer para abrir a boca e falar com os próprios pais, sei o que é tremer para levantar da cama, sei o que é tremer ao ver a luz do sol após passar vinte-e-quatro horas trancado olhando pras paredes deixando vozes de todos os tipos circularem pela minha mente. eu sei o que você sente, você vai vencer. do ponto-de-vista de um manipulador eu manipulo as pessoas a se sentirem bem, fortes e encorajadas, mas esse ponto-de-vista é uma fraude até pra mim, do meu ponto-de-vista eu revelo às pessoas que elas são muito melhores do que acreditam ser, que elas são verdadeiras obras preciosas de Deus, o que inclui o fato delas serem lindas, corajosas, úteis e acima de tudo amáveis e isso é uma verdade que acredito do fundo do meu coração. quando uma moça descobre que é linda através de mim eu me sinto meio desconfortável mas quando ela começa a manifestar que está convencida, que não depende nem mesmo das minhas palavras de afirmação para acreditar nisso, aí sim sinto que fiz um ótimo trabalho. não que eu costume fazer isso, eu costumava, mas as estatísticas de meninas entendendo tudo errado e se apaixonando por mim se tornaram alarmantes e me fizeram parar.

agora só elogio mulher em culto de idosos.

o nome verdadeiro da minha ansiedade é “planejamento”. é juízo, mesmo. é saber o que quer porque já desenhou as possibilidades realistas, sabe que pode encarar a possível tragédia porque os possíveis (e até prováveis) benefícios valem a pena. desde pequeno sei ação e conseqüência, nunca vivi nesse mundo estranho onde você precisa satisfazer seus desejos sem pensar no que isso pode gerar amanhã e graças a Deus que não vivi. é cem por cento vantagem viver no meu mundo. o problema está na adulteração desse dom, está em começar a misturar sentimentos ruins e surreais aos seus planos e ficar paralisado, ou decidir provocar o mal, ou decidir abraçar as opções mais doces porém inexistentes para não encarar a realidade que é bem melhor mas às vezes amarga a princípio. a fantasia desenfreada é o hedonismo do ansioso, não precisei sequer sair bebendo e transando na rua, bastou um surto meio esquizofrênico e eu me afastei de Deus na adolescência.

um ansioso fujão se afasta de Deus por muito pouco. quantas meninas ansiosas não se afastaram de Deus por causa de um namoradinho? quantos meninos ansiosos não se afastaram de Deus por causa de punheta? são motivos muito ridículos para se afastar de Deus. antes fosse perder os pais, falir uma empresa, um abuso sexual, mas é comum que essas pessoas que passam por problemas sérios se aproximem mais de Deus, praticamente só vi pessoas mesquinhas rejeitando Deus e sou o primeiro a me assumir mesquinho nessa. (estou falando do meu contexto, não sei o contexto de igrejas piticas, ou testemunhas de jeová, mórmon, sei lá. não entendo dessas coisas)

enfim, você viu tudo o que descrevi acima. como querer acreditar que isso é uma maldição e não uma bênção? como acreditar que conseguir enxergar o futuro, que ter poder para alterar o curso de algumas coisas, que construir só de abrir a boca ou manuseando uma caneta, é algo ruim e não bom? a resposta é: não aceitando suas próprias responsabilidades no mundo. é egoísmo. é justificável porque é um peso enorme, é uma responsabilidade enorme, não é fácil saber o significado por trás das suas ações e palavras na linha do tempo ao mesmo tempo em que você é parte dessa linha do tempo. é uma sensação estranha. tenho surtos de contato com a eternidade e é a melhor coisa que existe, então volto para o mundo temporal onde as coisas ainda não aconteceram, tudo parece errado e assustador, eu quero morrer porém logo retomo os sentidos e noto que o que precisa ser feito precisa ser feito. não, não é fácil, mas é quem sou. é quem preciso ser. preciso estar pronto para encontrar pessoas sem esperança no coração, pegar uma caneta e escrever no caderno a ponte entre a história dela e a história de Deus e eu escrevo isso com a autoridade do nome de Jesus, e preciso ser um personagem dessa história e não escapar dela, e às vezes não escapar dela é impossível. principalmente quando é uma menina e é bem gatinha. (beijos, ouvinte! não, você não deveria estar ouvindo isso)

pior de tudo: preciso escrever a minha própria história. o mundo é um playground cheio das mais malucas possibilidades mas grande parte delas só interessa à minha carne, não estou aqui para me divertir, tenho um propósito e ele não muda. preciso pegar a caneta e escrever os planos para os dias de amanhã, centrado, consultando Deus e analisando se estão correspondendo com os planos dele porque, se não estiverem, até vão acontecer do jeito que quero porque tudo acontece do jeito que quero se eu escrever direitinho, mas no futuro vou me arrepender.

 


a minha ansiedade, então, ainda era uma maldição.

por não enxergar as expectativas que as pessoas tinham de mim eu cometi erros de comportamento social que um chimpanzé não cometeria. me sentia inábil para carregar cadeiras de um lugar a outro, então as pessoas olhavam para mim e viam uma pessoa saudável que eu não via, uma pessoa próspera que eu não via, e julgavam que eu era preguiçoso ou folgado ou até mesmo metido. acreditava que as pessoas enxergavam essa pessoa inábil que eu enxergava mas caramba, isso era ilógico, eu trabalhava o dia todo e fazia faculdade à noite e estava dando conta de tudo, como alguém poderia acreditar que eu era inábil? sentia vergonha, muita vergonha, mas muita vergonha mesmo, de falar que sentia ansiedade ao pegar uma cadeira e levar de um lugar até outro com tantas pessoas no mesmo lugar que eu. e se caísse da minha mão? e se não conseguisse enfileirar elas certinho e ficasse minutos e mais minutos tentando encaixar uma na outra? ninguém sabia o que significava pra mim errar com tantas pessoas vendo, eu andava calculando meus passos e o mover dos meus braços e talvez até o mover dos meus dedos para tentar me encaixar naquele lugar, não queria que ninguém se incomodasse com o fato de eu ser um completo alienígena, socialmente incapaz. fiz amizades e o pessoal gostava de conversar comigo, principalmente a sós, “o papo é cabeça”, dava pra conversar de dificuldades comigo porque ficaria entre nós e porque eu sempre tinha algo de bom pra falar ou sempre ouvia até o final sem fazer expressões ruins. oh céus, quem sou eu pra ter nojo do problema dos outros?

só que não enxergava que as pessoas gostavam de mim. e, sabe? isso é pior do que se imagina. isso não afetava só a mim, afetava aos outros também. se me sinto mal por ter conversado com alguém sobre um problema sério e, no outro dia, acredito que a pessoa vai ter vergonha de falar comigo (???) e falo meio tímido, a outra pessoa vai acreditar (e com motivos) que estou desprezando ela. não creio ter acontecido muitas vezes dessa forma, mas implicitamente sim. e não acontece assim numa pancada só, as coisas vão tomando forma sutil no coração dela, na primeira vez não há nada de errado, na segunda também não, mas na terceira incidência já vai ter algo. a pessoa se envolve na minha ansiedade e falar comigo pode se tornar um desafio.

ia para os lugares e gostava das piadinhas ruins comigo. mesmo socialmente inapto acho que pessoas que se ofendem com piadinhas aos vinte anos são muito otárias. a piadinha, o apelido bobo e outras coisas do tipo, são a maneira mais confortável que existe de criar conexão com alguém. só que eu me apegava desnecessariamente a essas piadas. como disse, algo muito sério pra mim se tornou a piada de que eu iria dormir toda vez que saísse, e eu não conseguia evitar aqueles momentos de me desligar do mundo ao redor para descansar, então abracei isso. a característica do dorminhoco não é lá tão boa, é engraçada mas no fundo as pessoas vão invocando para ver se você para e, não só eu não poderia parar naquela época, como jamais entenderia isso. também tenho a característica do comilão, todo mundo sabe que num lugar com comida eu vou comer bastante, mas não sabia que era desrespeitoso comer da maneira que eu comia. e ninguém me falava nada até começar a entender que algumas partes minhas eram extremamente infantis, imaturas; na verdade meus amigos bem mais velhos perceberam isso e, depois de um ano de convivência, passaram a me chamar num cantinho para avisar dessas coisas, os da minha idade só julgavam da maneira que bem entendiam e pronto.

venho de uma casa onde ninguém é limitado para comer, não há modos, não há nada. exceto, é claro, quando tem visita. o problema é que minha total falta de sintonia com o contexto me dava a impressão de que eu estava sozinho na minha casa nessas horas, não sabia agir de outra maneira, não sabia me inserir. minha casa tem uma mulher e vários homens, essa mulher é a rainha destemida que, quando quer cavalheirismo, grita “tomem vergonha na cara e me sirvam”, aliás ensina pra gente que cavalheirismo é pra quem conquista (eu, conhecendo tantas mulheres doentes como conheci, assino embaixo), e ninguém fica de regrinha pra fazer essas coisas. o meu mindset era o do homem bruto, sobretudo porque demonstrar a minha sensibilidade até exagerada exporia minha sexualidade pervertida e, honestamente, ninguém quer ver sexualidade pervertida, aliás ninguém que presta quer ver sexualidade de qualquer maneira que não seja entre quatro paredes. (disclaimer de 2024: sai nerd)

isso é um problema de expectativa, como sempre. expectativa dos outros. sinto raiva disso até hoje mas eles têm total razão. uma coisa é você esperar que um pedreiro se comporte como eu me comportava, outra totalmente diferente é uma pessoa formada numa faculdade de engenharia, com um emprego de alto nível para a cidade onde habita. eu já era melhor que a pessoa que ia para o trabalho de tactel, mas tinha sempre as três camisetas e a mesma calça barata e era ali que fazia toda a minha combinação de roupas. tenho um rosto muito saudável, expressões meigas, voz doce e uma infinidade de tons. ninguém esperava só isso de mim. era como se eu estivesse fazendo pouco caso daquelas pessoas, como se dedicasse todo o meu potencial social ao trabalho e à faculdade quando ainda fazia e o que sobrasse ficava pra igreja, ninguém imagina que no trabalho (e na faculdade também, quando fazia) as pessoas me consideram a pessoa mais maluca do lugar. não, as pessoas não me odeiam, a minha maluquice é de certa forma cativante.

quero a liberdade de ser a mesma pessoa em todos os lugares mas essa liberdade é uma ilusão. é um desrespeito às expectativas das outras pessoas. é querer que o mundo viva as minhas expectativas, é provocar em todo mundo aquilo que detesto que provoquem em mim. as pessoas, quando dizem que não querem que você seja duas caras, estão dizendo que não querem que você fuja dos seus valores e não que não querem que você leve em consideração os anseios delas. todo mundo precisa satisfazer um pouquinho de anseio de todo mundo. eu, infelizmente, sempre me sentirei com uma personalidade diferente em cada lugar devido à maneira que a minha mente é organizada: não dá, se preciso me adaptar preciso colocar uma música específica na minha cabeça para aquele lugar, percebo milimetricamente cada comportamento dessas pessoas e comparo com os comportamentos de outras que conheci nos meus diversos trabalhos, na minha faculdade, nas minhas escolas, aqui na pequena londres, em são paulo, no rio de janeiro, em santa catarina, no rio grande do sul, capitais e interiores; em tudo o que conheço do mundo pela internet, pela leitura e pela música, pelo filme e pelo desenho; e não sou um homem de quarenta anos que domina isso, cada coisa em seu lugar da mente, nem um jovem de vinte anos que simplesmente recebe isso bem de pouquinho e aceita sem perceber. sou o meio-termo que recebe isso exageradamente, aceita percebendo porque não consegue evitar e fica assustado com a enorme bagunça que se forma. para separar corretamente isso na minha cabeça preciso criar um espaço dedicado, com muita dificuldade, emoção por emoção, sentimento por sentimento, idéia por idéia, trejeito por trejeito, palavra por palavra, nota por nota, e aí sim botar para funcionar e sentir o que funciona ou não.

construo uma personalidade por contexto e não é por mal, por falsidade. é por sobrevivência. não é nada que os outros não façam, é só que me vejo fazendo de fora pra dentro ao invés de dentro pra fora e parece muito estranho, muito muito estranho.

mas é normal.


o ápice dessa temporada da minha vida foi quando comprei meu primeiro carro. pegue a referência: o filho dos céus estrelados, protagonista da noite na pequena londres, é meu filho; talvez narre o último capítulo dele porque acho que o matei. coisa de mitologia grega esse negócio de pai matar filho, totalmente normal. estava muito feliz de ter comprado o carro, mas não ia para lugar algum sozinho porque meu pai (!!!) não deixava, ele queria me pegar pra treinar e a gente ia dirigindo para o meu trabalho todo dia. tinha muita vergonha disso porque era um adulto, formado, trabalhando, o carro tinha sido comprado com meu dinheiro, e “meu pai não deixava eu ir para os lugares”. é claro que não colocava a situação como ela realmente era, o que é engraçado porque minha premissa era sempre colocar as situações como elas realmente eram, e criei margem para um verdadeiro mundo de fantasias sobre meu carro. ele virou uma lenda. as pessoas sempre me perguntavam dele e eu desconversava, mas pra mim era só mais uma piada que elas estavam fazendo.

depois de um tempo um amigo meu, desses mais velhos, me chamou num canto e, conversando comigo, me mostrou o quão preocupante isso deveria ser pra mim. as pessoas estavam se sentindo desprezadas, embora essa palavra seja um pouco pesada porque dá a impressão de sentimentos de enorme profundidade, mas na prática é só que elas pensavam “ele não dá muito valor pra gente, né. acho que nossa relação é superficial”. tinha um carro e achava mais oportuno ficar me aproveitando da carona dos outros, dirigia normalmente até o trabalho (não, não dirigia, mas foi essa a imagem que criei ao omitir tanta coisa) mas quando se tratava de sair com os amigos era sempre carona, carona, carona. cadê seu carro, moleque?

isso, graças a Deus, resolveu-se sem esforço algum assim que tomei coragem e comecei a pegar o carro sozinho. fiz isso uma vez pensando “vai, não é possível que eu esteja dirigindo tão mal assim depois de treinar praticamente um ano com meu pai do lado me acusando de ter entrado na frente de uma carreta a 70km/h enquanto eu estava a 89 (o certo era entrar só quando eu estivesse a 90)” e, depois disso, não dependi de ninguém pra mais nada. comecei a dar caronas, muitas caronas, várias e várias caronas, ofereço carona como água. passei dez anos da minha vida pegando ônibus, se não considero total perda de tempo é porque aprendi a estudar dentro daquele trambolho chacoalhando com um monte de gente, odeio ver gente perdendo tempo com ônibus. novas histórias terríveis foram causadas por conta disso.

não sei se tenho mais histórias com essa precisão pra contar sobre esse assunto, mas não preciso. é o melhor exemplo possível sobre tudo o que aconteceu nesse tempo de falta de habilidade social onde ainda estava aprendendo a conversar, estava numa rodinha muito fechada de amigos e aprendendo a lidar com eles e mais ninguém e já estava difícil o suficiente para mim. não enxergava uma igreja ampla cheia de pessoas, enxergava esses amigos e, através deles, conversava com as outras pessoas. devo ter cometido inúmeras gafes por conta disso mas era meu processo de ressocialização, não tinha capacidade de sentir o que estava acontecendo ao meu redor e justamente por isso não me culpo: sei que ninguém consegue entender o ritmo da ressocialização porque só quem se desassociou da sociedade entende o que é uma ressocialização, o que é ter passado anos trancado num quarto contando sobre a própria intimidade para as paredes e depois para Deus e apenas Deus, mas azar de quem não entende. também não tenho culpa de nada disso, talvez tenha no passado, mas não no ato: o quão cristão você é ao colocar as culpas motoras acima das culpas motrizes?

não sei se as pessoas conseguem enxergar bem o que uma pessoa como eu faz em evangelismos de rua. nunca usei droga de nenhum tipo, nunca dormi nas ruas embora já tenha vagado por elas em algumas madrugadas depressivas, nunca passei necessidade e sou todo menino meiguinho: me identifico com pessoas em situação de rua, vejo neles a mesma dificuldade de se expressar para as pessoas de fora que tenho. sinto prazer em adentrar a linguagem que eles criaram para se comunicar com o mundo e só eles entendem porque as pessoas deliberadamente decidiram ignorá-los, rejeitá-los, tratá-los como lixo, estejam apoiadas em desculpas humanas comuns como “eles fedem” ou “eles vão me assaltar”, estejam apoiadas nessas desculpas mais horrendas e às vezes até religiosas como “eles merecem estar aí” ou “eles são psicopatas, eles são a representação do mal (ninguém nunca disse exatamente esse segundo, estou sintetizando o que essas pessoas que criam desculpas fenomenológicas para justificar a existência e o desprezo aos mendigos querem dizer)”; os meus abraços mais calorosos estão com eles e com os idosos (outra história) porque sei o quão profunda é a necessidade de um abraço de uma pessoa daquela, sei que eles estão há muito tempo aguardando aquele abraço, há muito tempo aguardando alguém para conversar sobre como estão as coisas. “há muito tempo” pode significar “anos” ou até “décadas”.

valorizo muito quando alguém me pergunta como estão as coisas embora minhas defesas internas criem altas chances de me fazer responder “tudo bem” e ir embora. dependendo do grau de depressão do momento guardo lágrimas de alegria (que acabam se misturando com lágrimas de tristeza por não ter conseguido explicar que não, não está tudo bem) pra soltar depois; amo meus pais porque, seja em tom sério ou em tom de deboche, eles sempre me perguntam se estou bem quando chego em casa; e gosto de saber como está a vida de alguém na rua, não importa se ele vai me contar tudo, vai só falar que está tudo bem ou só falar que está tudo horrível e que ele me odeia porque sei que, por dentro, ele pode ter sentido e provavelmente sentiu “não acredito que alguém me viu e, não só isso, como me percebeu nessa miséria, e me perguntou se estou bem. não acredito que alguém me percebeu. não acredito que não estou só no mundo”. não, não sou o melhor evangelista de rua, talvez seja o pior de todos porque mal tenho saco para falar um salmo, não sou a pessoa cheia de palavras encorajadoras embora seja muito bom em confeccioná-las e saiba que quando mando um tiro ele é certeiro, mal abro a boca, mas quero ouvi-los, conhecer seus sentimentos e abraçá-los.

não queira me tirar do evangelismo de rua.


as pessoas na rua não são socializadas, assim como eu não me sentia socializado na igreja mas, por não estar sujo, sem dinheiro e com as roupas rasgadas, ninguém percebia. é interessante que ninguém tenha percebido porque isso criou mais possibilidades positivas que negativas pra mim, acho que se todos me olhassem com pena e quisessem me consolar o tempo todo eu teria ficado daquela forma pra sempre mas, pelo fato de que só eu me considerava tão destruído e incapaz, de que todas as pessoas enxergavam uma pessoa no mínimo interessante em mim, tive a oportunidade de conquistá-las mesmo sem perceber.

algo que faz muito sentido hoje mas, na época, só guardei e deixei num lugar pensando “isso vai ser claro pra mim um dia”, foi a vez que após um evento qualquer cheguei no meu pastor e falei “então, acho que não sei conversar com as pessoas” e o resumo da conversa foi “não faz sentido você não saber conversar com as pessoas, você tem todos os assuntos do mundo na ponta da língua”. pra mim conversar nunca foi questão de ter assunto, realmente sempre tenho assunto e, se não tiver, a pessoa que está na minha frente é o assunto, eu sou o assunto; não, o meu problema nunca foi ter assunto, o meu problema é que me sinto isolado, vejo as pessoas todas interligadas por pontes e assuntos diversos fluindo por essas pontes, mas quando olho pra mim enxergo várias coisas circulando dentro de mim e só dentro de mim porque essa ponte não existe. na minha cabeça daquela época eu não sabia criar ligação com as pessoas. só hoje vejo que não era bem assim, eu tinha sim ligação com várias pessoas.

tanto é que foi exatamente nessa época que tive problemas com uma menina que tinha em mente que estávamos quase namorando, então parei de falar com ela porque tinha certeza de que ela estava achando um saco conversar comigo. os efeitos foram tão devastadores que fui obrigado a perceber, pela primeira vez, que não estava excluído do campo de batalha do amor por ser muito feio, chato e desinteressante como imaginava. e quanto mais fui percebendo as coisas, mais assustado fui ficando e mais fui notando que na verdade estava no olho do furacão.

bem, essa história vai se completar com o fluir da música. voltando: tinha ligação com várias pessoas só que meu próprio sentimento de isolação me cegava pra isso. a ponte entre eu e as outras pessoas estava ali e na verdade era uma ótima ponte, mas era como se fosse invisível pra mim. nunca me senti ligado a ninguém. não, não importa que tenha ouvido todos os seus problemas emocionais, que saiba de toda a sua vida, que saiba de você coisas que ninguém sabe, nada disso é suficiente para que eu me sinta conectado a você. o significado das palavras como maneira de se conectar às pessoas se perdeu completamente pra mim por vários motivos, dentre eles: o espetáculo de manipulações que fizeram comigo e descrevi durante essa música toda pode me fazer acreditar que você tem interesses ocultos ao me contar seus problemas; a minha mente completamente corrompida amortece o impacto da sua experiência pessoal seja ela qual for, pessoas de quarenta anos me contam suas histórias de vida com traumas e coisas como “fui estuprada pelo meu pai” e tudo mais e me consideram um bom ouvinte; não tenho pudor nenhum e consigo contar qualquer coisa da minha vida em qualquer lugar, as pessoas que me amam é que precisam me avisar que falar certas coisas vai me prejudicar, só recentemente descobri que a mente das outras pessoas é sensível e algumas coisas que falo arrombam elas como um tiro de bazuca; eu ter me tornado um confessionário humano onde pessoas de todos os tipos depositaram seus sentimentos em forma de palavras e, não é que não as valorize mais, mas me tornei um tanto imune a seus efeitos.

a vez que foi a exceção à regra foi fruto de um trabalho de meses até minhas barreiras começarem a cair mas, quando elas subiram novamente, foi trágico.

em suma, sou insensível às palavras. veja o tamanho desse texto, meu ouvinte! isso está saindo como água de mim, não tem muito esforço da minha parte e, se está havendo algum, lembre-se de que estamos chegando às quarenta mil palavras.

essa moça que comentei nunca alterou um milímetro da nossa relação nas nossas conversas embora ela me contasse sentimentos ocultos através do seu cotidiano que, olhando hoje, com a ampliação de empatia que tive com as experiências da vida, foram muito importantes para ela. a única vez que senti algo foi quando, num evento qualquer, ela apareceu só pra me ver (não sabia dessa parte até então) e me deu um abraço bem apertado e prolongado que nunca tinha recebido de ninguém antes. ali senti que não era só para passar tempo, ali a minha mente não teve tempo de fazer absolutamente nada com o que ela estava me falando. ali a garota de vinte estava conversando com o garoto de vinte, de coração pra coração, ali não existia um adulto de quarenta.

foi não muito tempo depois desse abraço que parei de conversar com ela, massacrado pelas vozes na minha cabeça. fiquei muito assustado com isso. ela, por um ano, ficou entre correr de mim e me olhar com muito ódio. acho que foi a primeira vez que me vi partindo um coração, em todas as outras vezes não tinha percebido ou jamais relacionaria uma coisa com a outra. recentemente a tirei da órbita do ódio, falei com ela uma única vez depois de um ano e desde então ela voltou a tentar se conectar comigo, como se nessa conversa a ficha tivesse caído: “não, ele não fez por maldade, ele está muito ferido. como não percebi que ele está e sempre esteve muito ferido?”. as histórias que ainda estão para acontecer aqui devem ter ajudado muito ela a pensar sobre mim de uma nova maneira. já eu, bem, não sei se tenho forças pra isso, já não tenho forças para as coisas num geral. ela está se desgastando à toa, e é muito triste ter percebido que ela está de fato se desgastando.

perdão, senhorita. a maldade sou eu.

 


então houve esse episódio, que devo ter mencionado em algum lugar, de quando me declarei pra alguém por ansiedade pela primeira vez. não foi uma declaração trágica, não foi uma carta de amor, apenas um “acho que estou gostando de você” todo desconjuntado e cheio de pressões. quase vomitado. o contexto para isso era que já tinha se tornado rotineiro conversar com essa pessoa e eu não queria parar, já era impossível pra mim dizer se alguém estava gostando de mim ou não porque, conhecendo o desastre passado, não tinha mais a opção de concluir que não-estava-pronto-acabou que fora tão fácil sustentar até então. tinha que tentar entender os sinais mas não sabia quais sinais eram esses, estava encarando toda a situação como um verdadeiro alienígena e essa declaração foi o resultado da minha cabeça ter fechado um bloco insuportável de conclusões.

foi uma descarga de ansiedade. nada mais que isso. um Bati Na Mesa E Disse “Acabou” romântico.

não entendi, na época, que tudo isso só aconteceu pelo excesso de envolvimento com situações desse tipo. pelo excesso de fantasias na minha mente acerca desse assunto. tudo num nível muito subterrâneo da minha consciência que ainda não conhecia: ouvi sentimentos de meninas de todos os tipos sem perceber que isso era perigoso, sem perceber que estava processando palavras comuns para a minha mente, mas não para o meu coração que não processa palavras e sim canta palavras. com a abertura dessa minha porta do coração para a situação “existem meninas que estão gostando de você e, se você se afastar, você vai partir o coração delas” me tornei muito instável conversando com meninas (antes tinha minha instabilidade mas era por me sentir insuportável, essa é uma instabilidade que está em mim desde a infância extremamente auto-crítica, eu nem ligo mais), sempre havia um fundinho da minha mente acumulando restos de fantasia com os possíveis sinais, “é, chegou até aqui vai ter que ir até o final, hein”. usaram isso depois para me fisgar, mas foi uma história bonita e multi-personagens que não cabe aqui, ou cabe? quem sabe.

cabum. explosão de ansiedade.

tudo isso se resolveu já na hora, com ela me explicando que só me via como amigo e eu falando várias palavras que honestamente nem lembro quais foram porque estava muito ocupado dentro da minha cabeça pensando “ok, o que está acontecendo?”. entendi, então, uma coisa muito engraçada sobre mim que já falei antes mas atemporalmente, só agora falarei temporalmente: a minha percepção ansiosa e multifacetada da realidade cria realidades paralelas que preciso expressar, acumular coisas na minha mente a congestiona tanto que perco o referencial do que é real ou não, sobrecarregar um único personagem dentro de mim com tudo o que tenho o deixa maluco, surtado.

quando tive meu filho heartbreaker fiquei muito feliz, extremamente feliz, escrevendo uma história totalmente fantasiosa sobre uma realidade paralela onde várias meninas não tinham me achado insuportável e sim gostado de mim. me diverti bastante, fiz bastante piadas com isso. também acabei criando esse personagem com auto-estima dentro de mim, investigando a história e descobrindo que aquilo era mais real do que imaginava. talvez, meu ouvinte, uma dessas meninas que comentei aqui seja uma personagem de lá; talvez, meu ouvinte, todas sejam; talvez, meu ouvinte, você seja tão esperto que tenha ligado os pontos e até saiba quais correspondem com quais. não, não vou confirmar nem desmentir, divirta-se.

o fato é que a minha mente é tão complexa que preciso encarar diferentes versões de mim para entender o que está acontecendo. absorvo tantas coisas subjetivas de situações objetivas que me perco nelas. todas essas versões são reais, nenhuma cem por cento real e, fosse eu uma pessoa simples, aceitaria a versão do momento sem pestanejar. tentando ser uma pessoa simples na igreja aceitei a versão do momento sem pestanejar e foi muito bom para aprender a ser mentalmente consistente, lembrando que fui uma pessoa esquizofrênica com múltiplas personalidades no passado, só que essa simplicidade foi se corroendo com o tempo.

nós vivemos relacionamentos com nós mesmos e eles são muito parecidos com nossos outros relacionamentos, nosso “auto-relacionamento” está diretamente ligado ao nosso relacionamento com Deus porque é uma aventura interna na qual Deus precisa participar, é talvez o melhor exercício de primeiro mandamento (“amai a Deus acima de todas as coisas”) e em primeiro mandamento sou muito bom ao contrário desse desastre completo que sou com o segundo. tenho certeza que só consigo lidar com a minha própria vida porque amo Deus acima de todas as coisas.

não é nem mérito meu, a depressão tirou a graça de tudo o que eu fazia. fui salvo ao descobrir que “fazer por amor, amar o que faz” não é uma ilusão, existe mesmo, enche por dentro mesmo, revela um propósito maior mesmo. quanto mais coisas você faz por amor mais você respeita Deus, tudo o que é feito com amor serve aos outros. gosto de evangelizar porém acho um engano excluir aquela pessoa que Deus não quer usar evangelizando mas, sei lá, vendendo britadeira com amor, tocando a vida das pessoas enchendo-as de alegria com sua satisfação ao vender britadeiras. termino uma música e, vendo que meus sentimentos e pensamentos e tudo mais tomaram aquela forma tão linda que já não tem mais nada a ver comigo e tudo a ver com Deus, vendo que, se poderia ser melhor, poderia só porque não soube passar para a realidade da melhor maneira (me faltou habilidade técnica de algum tipo) e não porque “meus sentimentos e pensamentos e tudo mais são ruins”, sinto vontade de subir pelas paredes. tenho certeza que, quisesse Deus me usar apenas fazendo músicas, deveria ser considerado um servo dele através da música e isso bastaria nessa vida.

o meu relacionamento comigo mesmo, então, estava desgastado. já não tinha mais entusiasmo em muita coisa, as músicas do meu coração estavam num ritmo e a minha vida estava em outro. meu filho heartbreaker tinha uma vida incrível e a testei me divertindo tanto na pequena londres quanto em outras cidades do brasil. queria isso pra mim, isso foi crescendo dentro de mim e, depois desse episódio da declaração, todo o meu universo interior saiu de controle, essas outras versões de mim e dos meus desejos ganharam força e se libertaram da minha prisão de segurança máxima interior. ainda não foi aí que eu, heart-shaped star, voltei a cantar, mas foi aí que eu, heart-shaped star, comecei a ser necessário.

atingi um novo nível de intimidade comigo mesmo. comecei a montar a anatomia da minha alma para entender de onde vinham tantos problemas, desejos e informações, e era tudo muito diferente do que eu imaginava. é a terceira vez que passamos por esse período na história e essa é a abordagem mais importante, porque é a mais completa e a que mais faz sentido (pra mim, é claro. não pra você. acho que, a esse ponto, você já não está entendendo mais nada do que estou cantando): foi nesse processo de desenho da minha alma que corrigi minha sexualidade; que determinei a distância entre eu e a lua, disse “é lá que tenho que chegar” e estou nessa viagem até hoje, e que bom que estou nessa viagem porque ficar na terra era como o próprio abismo. aquela versão de mim estava tocando a música errada, gostando da menina errada, estagnada na vida errada, tendo uma auto-imagem totalmente errada e ela não tinha capacidade de mudar isso. ela já tinha cumprido seu papel de se tornar uma pessoa sólida, com um espírito firme, servo e gentil mesmo que com um horizonte tão limitado. josé teve que passar anos numa prisão injustamente e ali se tornou o melhor servo. passei anos preso dentro de mim mesmo convivendo com pessoas na igreja, tive meus momentos de pensar em desistir e me trancar no quarto de novo mas, se tive recaídas, foram questão de duas por ano. Deus gostou de me ver insistindo em conviver com pessoas, mesmo me sentindo tão solitário ao saber que ninguém conseguia enxergar que aquilo estava me consumindo por dentro.

até hoje me pergunto se alguém percebeu que aquilo estava me consumindo por dentro. acho irrelevante mentalmente mas não posso dizer que não tenho nenhuma carência fundamentada nisso.

 


essa foi a temporada mais especial da minha vida porque tudo saiu de controle. fora, talvez, todas as outras temporadas da minha vida. tudo na minha vida é especial.

a começar, descobri que não era apenas mais uma brincadeira da minha cabeça: tornei-me uma pessoa muito conhecida em alguns lugares obscuros longe da pequena londres por tantos motivos que não consigo dar conta de descrever tudo. a minha imagem estava muito suja por motivos que considerava injustos, mas não tinha nem noção da proporção que isso tinha tomado e minha ansiedade destravou uma depressão mórbida focada nas pessoas em si. essas pessoas reafirmaram com muita força na minha mente que o ser humano não presta, é mau o tempo todo e nhenhenhe nhenhenhe nhenhenhe. lembro que fiquei interessado numa menina nesse contexto e não consegui ir muito longe pensando que ela conversava com pessoas que me odiavam e espalhavam mentiras sobre mim, mas já era do cotidiano dessas pessoas espalhar mentiras sobre mim.

sobre esse contexto não tenho muito a dizer. ele é robótico e sou uma estrela. ou quem sabe tenha? (pode pular essa parte se quiser. ela é toda intelectual, abstrata e chata, mas quem sabe pode ser útil)

deve estar nebuloso porque não expliquei absolutamente nada do que aconteceu, só que fui difamado. vou tentar explicar de uma maneira que não soe muito sem graça e que eu não sinta muita vergonha, porque sinto muita vergonha de ter me estressado tanto com tanta besteira: me envolvi com uma pancada de assuntos intelectuais que nunca foram do meu interesse até então e atraí e fui atraído por pessoas com interesses, direta e indiretamente, políticos; acontece que eu sabia tudo, menos política. confesso que tudo isso me atraía pelas ocasionais conexões com os assuntos que, de fato, me interessavam: a música e todas as suas conseqüências e a física e todas as suas conseqüências. sempre abordei todas as questões que me traziam com uma visão mais ampla, não por ser mais inteligente mas por ter conhecimentos de várias áreas e não só da política, da sociologia e da filosofia convencional dessas pessoas; meu cientista racionalista saiu do armário turbinado com todo o conhecimento de um garoto que nasceu e cresceu numa igreja, já que estava de volta à igreja e não precisava rejeitar mais nada, travestido de cristão conservador, e essas pessoas gostaram dele a princípio porque era uma ferramenta perfeita para o movimento conservador que estava se formando. claro que era, ele desmontava todas as absurdidades do “outro lado” em busca dessa razão que até então estava do lado deles.

as pessoas não sabem muito bem lidar comigo. as pessoas, se soubessem o perigo que represento, não me usariam nunca mais. é uma bomba nuclear que, felizmente e graças a essas pessoas, não me prejudica nem mental nem emocionalmente em mais nada.

eles fizeram do meu cientista racionalista uma verdadeira máquina de combate sem pensar que, um dia, essa máquina de combate se voltaria contra eles. eu, heart-shaped star, estava rindo prevendo essa situação acontecer (como sempre aconteceu) ao mesmo tempo em que temeroso porque não sabia como aconteceria. o que será que aprontariam pra cima desse personagem? quais pontos eles reforçariam na minha mente sobre o quão ridículas são as idéias da mente humana? como despertariam minha depressão dessa vez?

acontece que não foi apenas burrice contextual minha, eu não estava apenas “sendo manipulado”. não, foi bem mais profundo que isso. as pessoas estavam sendo influenciadas pelo meu laboratório insano de idéias. não estava apenas me rebelando progressivamente, estava atrapalhando todo um pacote fechado de idéias que as pessoas simplesmente queriam comprar e vender, isso não era e nunca tinha sido sobre “assuntos intelectuais” e sim sobre política. só posso ser duas coisas na política: um verdadeiro mestre capaz de se tornar presidente por conta da habilidade de manipular as pessoas, ou um completo incapaz por ser derrotado pela própria consciência e não conseguir entrar em jogo político e psicológico algum; do que sei sou o segundo, caso alcance a presidência prometo alterar essa parte da música.

(não vou alterar. quebrar promessas é a primeira obrigação de um presidente. está na constituição de 88)

política não é sobre sondar o próprio coração para descobrir as músicas que estão tocando dentro de si, política é sobre influenciar pessoas para ganhar votos e alcançar o poder. não importa o meio. não existe nada concreto na política, absolutamente nada. o tempo não importa: caso coloque uma pedra na história da humanidade para meu neto, daqui a cem anos, ter poder sobre um país, eu ganhei no jogo político. o espaço não importa: se espalhei minha genealogia pelo mundo e meu filho se tornar poderoso na arábia saudita eu ganhei no jogo político. a idéia não importa: tendo poder em minhas mãos defino o certo e o errado e as pessoas acreditarão nisso; não serão todas as pessoas do mundo mas serão pessoas o suficiente, afinal, cheguei ao poder porque já influenciei maioria das pessoas a pensarem como eu. e o melhor de tudo? as pessoas, em especial as da internet, sentem-se independentes mentalmente e isso as torna peças muito disponíveis para jogo de xadrez porque elas se enganam de todas as formas possíveis para não aceitar que são manipuláveis. é um prato cheio, dá brilho nos olhos pensar o que eu poderia fazê-las acreditar por mim. é impossível para quase todas as pessoas que conheci aceitar que maioria das coisas não foram pensadas por conta própria, foram porque vieram de algum lugar e grudaram na mente dela e ela ficou lá, reproduzindo feito um bobo alegre e acreditando “pensei sozinho. esse pensamento é meu. favor não copiar”. não, tudo veio de algum lugar, a sua mente não é independente, a sua mente não passa de um processador, mesmo aquilo que está dentro de você “que ninguém pensou” não passa de combinações de informações recebidas pelos outros com informações que você recebeu através dos seus sentidos. você só pôde concluir algo porque o assunto chegou antes, só pôde decidir porque alguém colocou as condições na sua mente, mesmo que esse alguém tenha sido o próprio Deus; que privilégio quando é o próprio Deus! mas é Deus, não você.

saia de casa, saia da internet. só observar o céu, as árvores, os animais, as pessoas em movimento, sendo quem realmente são e fingindo ser quem elas não são, vai fazer sua mente formar essas opiniões mais-ou-menos independentes que você quer. só botar seus sentidos para funcionar vai gerar pensamentos novos. informação é impressão pronta para sua mente processar o que outra pessoa pensou.

essa desgraça chamada “cérebro” me enlouqueceu por anos e, se não colocá-lo no seu lugar, ele vai me enlouquecer novamente por ser de longe a parte mais potente do meu corpo. não precisei estudar muito para perceber essas coisas, precisei me tornar muito auto-perceptivo com seus truques sujos porque, caso deixe pra lá, me pego tendo surtos esquizofrênicos, múltiplas personalidades, despertando paixão desnecessária em mulheres e tentando suicídio. não importa que eu não me destaque em mais nada, não tenha conseguido um mestrado aos vinte e muito menos um prêmio nobel: uma vez superdotado, sempre superdotado.

então é isso. não adianta tentar mudar a opinião de uma pessoa na política, você está tentando dizer a uma pessoa que ela tem uma visão errada de mundo mas pra começo de conversa essa visão nem dela é, ela pegou emprestado porque era muito difícil e/ou desnecessário para ela explicar as coisas com sua própria visão. se você começa a confrontar esse pacote fechado de idéias que ela comprou com situações da vida dela já é o suficiente para ela ficar perdida, revoltada, ou no caso desses pacotes mais bem-feitos que estão saindo ultimamente como esses infinitos modelos de “restauração cultural” ela tem cartas na manga para transformar algo tão bonito como a realidade em símbolos úteis para suas ambições. mais ou menos como o elliot faz, embora o elliot faça por amor, e é pelo fato do elliot ser meu melhor amigo e viver tentando me desmontar que percebi o mesmo mecanismo nesse pacote de idéias e tratei de me afastar o mais rápido possível assim que percebi. pior ainda é você tentar confrontar esse pacote de idéias com situações da sua vida, aí é melhor se preparar para ser chamado de mentiroso e louco ou até membro de seita satânica.

a política é deprimente. ela suga as nossas forças e esperanças. aliás, primeiro ela suga nossa atenção: nós precisamos nos informar, precisamos saber o que está acontecendo com o mundo, precisamos acompanhar ao menos aqueles sites mais imperdíveis que estão na mídia ou que se dizem anti-mídia. isso consome um tempo que eu, honestamente, não tenho desde que saí daquele trabalho onde subi o sistema do zero (lembram do segundo capítulo? parece tão distante, né?). isso é coisa de retardado mental, primeiro porque ninguém disse que a mídia está nos informando, segundo porque ninguém disse que a intenção da mídia é nos informar, terceiro porque o fato que está acontecendo na rua da sua casa é mil vezes mais relevante que o próximo episódio da política nacional já que a sua rua você pode ver com seus próprios olhos, a sua rua tem poder sobre você por inteiro e não só sobre sua mente, e às vezes você tem algum poder sobre os acontecimentos dela. descobri a utilidade da mídia quando comecei a achar jornais legais, e isso inclui o new york times que os conservadores falam que está falindo desde 2010, que têm aquela área dedicada a deixar pessoas contarem histórias; amo ler histórias no new york times, não é à toa que eles recomendam tantos livros bons de fantasia, e também sou viciado em mídia israelense desde que descobri que judeus são os melhores contadores de histórias do mundo. quem acredita nas teorias de que judeus querem conquistar o mundo tinha mais é que colaborar pra isso, o mundo seria muito mais emocionante se fosse dominado por judeus. e olha que sou cristão então judeus também precisam ser minha refeição. de qualquer forma acho a maior besteira isso de “pessoas dominando o mundo”, é claro que acredito que pessoas dominam o mundo, mas não me preocupo em saber quem são essas pessoas porque uma coisa é certa: só estaria bom se fosse eu dominando o mundo mas, se fosse eu, todas as outras pessoas chorariam muito. melhor não se importar com isso. está no poder quem Deus quis, mesmo que às vezes Deus queira um completo desgraçado.

fora isso não há nada de bom a se tirar dos jornais. e não há nada de bom a se tirar da política, exceto se estiver numa roda de amigos debatendo os rumos como se fosse uma novela mas isso porque política é feita por pessoas e no final das contas pessoas são interessantes. a história por trás de qualquer político será interessante, escrever roteiros mirabolantes fingindo que está descrevendo o jogo político é muito gostoso em especial quando você pensa que absolutamente todo mundo está mentindo então você pode manipular as palavras e transformá-las na história que quiser. só que acreditar que isso está determinando os rumos da sua vida de alguma forma que na verdade não está é impotente e desolador. isso só determina os rumos da vida de quem se deixa ser determinado, não é fácil ouvir isso, não é fácil sair desse raio de influência, mas é necessário ouvir e é necessário sair desse raio de influência para ser uma pessoa com menos desgraçamento mental.

e sabe o que trato como política? tudo. tudo o que sai na mídia e te leva a ter uma opinião é política. é política porque essa opinião, por mais descompromissada que seja, está dentro de um desses pacotes que comentei e virá com um discurso que te levará a concordar com algumas outras idéias desse pacote, às vezes nem por meio das opiniões em si mas por meio da introjeção de palavras que são inerentes à linguagem de comunicação das pessoas que consomem esse pacote. às vezes você se pega discordando da opinião das pessoas mas seu vocabulário já foi limitado e já está te levando a discordar concordando. não quero saber que a mãe do bandido de taguatinga está revoltada com o linchamento dele: a mãe tem motivo para estar revoltada, o bandido tem motivo para ser bandido, o povo tem motivo para linchá-lo, a polícia tem motivo para prendê-lo, o jornalista tem motivo para entrevistar essas pessoas, o redator tem motivo para escrever a matéria como escreveu e a mídia tem motivo para divulgá-la como divulgou, se formo uma opinião sobre isso sou um completo idiota sobretudo porque não moro em taguatinga, não sei o que aconteceu e como aconteceu, tenho apenas imagens que algumas dessas pessoas montaram para mim com seus próprios vícios ou quem sabe intenções ocultas então estou adotando posturas semi-fictícias sobre uma situação igualmente semi-fictícia e, no final das contas, essa postura só serve para alimentar a semi-ficção de algum maníaco que quer influência para conquistar um, se não o, poder. quando chegar em taguatinga provavelmente não serei nem a mãe de um bandido, nem um bandido, nem alguém linchando um bandido, nem a polícia, nem um jornalista, nem um redator e nem uma mídia. dane-se o bandido de taguatinga.

não estou sugerindo que tornemo-nos ascetas, mesmo porque todo asceta que conheci é bem imbecil, só que é bom se perceber um pouquinho melhor antes de querer perceber o mundo. tenho uma opinião, tenho certeza que foi formada por influência de muitas pessoas, tenho certeza que tudo o que falo pode ser útil para quem souber usar, mas durmo em paz sem me estressar com isso e não preciso me preocupar com a consistência da minha opinião porque quando saio de casa e convivo com as pessoas ela faz todo o sentido.

é essa a maneira que vejo as coisas. essa foi a maneira que sempre vi. as pessoas acreditaram que eu via de outra forma porque se apossaram do meu personagem e tentaram conduzi-lo mas não levou muito tempo para ele sair de controle, começar a exagerar tudo de propósito para ver o caos acontecer (e foi muito engraçado porque, a princípio, as pessoas se submeteram a ele. elas diziam “você está exagerando”, ele brigava dizendo “vocês são uns frouxos” e trazendo um discurso muito bom, e então as pessoas pensavam “é, é verdade, você está certo”), começar a criar hipóteses absurdas, a se contradizer de propósito, a tomar algumas posições contrárias e por fim se tornar o contrário do que era. as pessoas fizeram de tudo para explicar isso mas elas eram muito mental e intelectualmente incapazes, pegaram uns pdfs que eu sabia de onde tinham saído e montaram uma teoria muito tonta sobre mim e, quando percebi que essa teoria pegou, variei do achar engraçado ao ficar chateado em como as pessoas possuem um caráter horrível.

só agora, mais de um ano depois, comecei a perceber que não era bem questão dessas pessoas serem vilãs da fantasiosa história onde eu era um herói. era burrice mesmo, carência intelectual gravíssima. falta de afirmação do pai. meu pai sempre disse que eu era inteligente, e sempre disse que todo mundo era inteligente, nunca caí em discurso de psicopata (como eu, olha só!) dizendo “vocês estão tão burricos… vem cá que papai vai tornar vocês mais inteligentes que a média”. nem venham com a conversa do super-dotado, nem lembrava que era super-dotado nessa época, isso ainda era uma informação que eu escondia de mim mesmo.

 


 

acho que exagerei falando disso, né? achei que não falaria nada. é sempre assim.

então tá, recapitulando. estava em depressão com o mundo por conta disso, não sabia lidar com uma onda de difamação como essa, não tinha percebido que nada do que está longe da pequena londres existe. esse episódio me fez perceber isso porque, do contrário, não suportaria continuar vivendo. tive que me afastar de tudo e, quando me afastei, percebi que nada disso fazia diferença pra mim. que a política não fazia, que o intelectualismo não fazia, que essas pessoas falando besteiras de mim não faziam. hoje uso um personagem genuinamente esquizofrênico para lidar com essas pessoas: quando me acusam de loucura reajo sendo o louco que elas esperam e, quando todo mundo vai embora, começo a rir.

também estava entrando em sintonia com meus próprios desejos, aproveitando a restauração da minha sexualidade, aprendendo a lidar com o fato de que agora percebia nitidamente que me interessava por mulheres. não, não tem a ver com “deixar de ser gay”, é que aquela imagem da mulher dentro de mim ter se tornado amável fez com que meu corpo começasse a derrubar as barreiras e embarcar numa jornada de perder o medo de desejá-la. as moças já não precisariam mais me mandar currículo para eu avaliar se tinha interesse na vida delas. eu, como um homem normal, olhava para as mais gatinhas e meu corpo reagia instantaneamente.

parágrafo razoavelmente indecente abaixo
isso foi um problema enorme porque eu estava aquém das outras pessoas, uma situação igualmente horrível à de estar além e com o bônus de que não estava nada acostumado a isso. as pessoas tinham desejos adultos e eu os de um recém-nascido no mundo dos desejos, embora minha mente mantivesse uma mulher de uns quarenta anos mais ou menos, mais apropriada para a idade dela. fiquei bem assustado quando, numa reunião em uma empresa qualquer, uma moça começou a fazer poses estranhas pra mim, mudar toda vez que eu a fotografava com meus olhos e, quando menos percebi, ela estava me mostrando seus seios. numa sala de reunião. com outra pessoa ali, explicando as coisas, como se nada tivesse acontecendo, como se isso fosse normal. fiquei bem assustado mesmo, uns dois dias perturbado sem querer olhar na cara dela e na de ninguém, pensando em como era possível tanta coisa acontecer só com olhos e corpos já que não trocamos uma palavrinha sequer.
fim do parágrafo razoavelmente indecente

esse mundo era totalmente novo, mas tinha um sério problema: contaminações com o mundo antigo das mulheres velhas e abusivas. essa moça tinha a minha idade, mas estava num contexto onde ela não poderia fazer isso, julguei-a uma total vagabunda embora não soubesse que o problema estava, em partes, comigo. não, a culpa não é minha, a culpa é dela, e no final das contas isso não faz diferença nenhuma, mas instiguei sem perceber.

com um monstrinho que não falo faz tempo mas é o centro disso tudo.

ex
pec
ta
ti
vas.

lembra, dois capítulos atrás, que falei sobre olhar para as pessoas no ônibus? que falei que observava tudo, que falei que olhava com profundidade nos olhos de todas as pessoas? nunca poderia imaginar que essas coisas eram tudo o que precisava para deixar grande parte das meninas caidinhas por mim, quando olho para uma mulher com a minha maneira descompromissada de sempre ela se sente o centro do universo, o que para mim é uma simples varredura de ambiente para quem é atingido é uma bomba. observo coisas demais ao mesmo tempo, as pessoas sentem isso, elas sentem um olhar absorvendo tudo delas e… isso desperta muita coisa em quem está vulnerável. essa mulher que fez isso estava completamente vulnerável.

guardei raiva dela. me senti abusado como se tivesse sido a mesma coisa das mulheres mais velhas, mas não foi. repensando a situação hoje consigo perceber que aquilo, esquecendo os fatos perigosíssimos que estou omitindo, foi normal. eu… tinha essa imagem de mulher cheia de desejos dentro de mim, mas por algum motivo acreditava que esses desejos eram coisas do além, não tive coragem de acreditar que essa mulher era cheia de desejos porque mulheres são cheias de desejos e que, se ficasse atiçando demais, o corpo delas viraria um forno e elas fariam essas coisas. é ridículo de engraçado passar por uma situação dessas mas juro que aconteceu, tem testemunhas. contei isso pra uma amiga e ela deve ter passado uma semana rindo de mim.

só que não é uma situação ridícula de engraçada porque, como disse, guardei raiva dela. pela primeira vez, então, testei manipular a ansiedade dos outros. se você quer saber quando foi a primeira vez que me senti uma pessoa má, um verdadeiro mau caráter, um pecador de primeira linha, foi aí: numa festa qualquer a induzi a fazer várias coisas que estavam dentro da minha imaginação, apenas dentro da imaginação, só com os olhos; não, nananinanão, não vou contar como faz. acho que toda mulher sabe, quem não sabe são os homens e acho que homens não precisam saber mesmo. tem um motivo bom para apenas mulheres saberem disso, se aberrações me ensinaram e quebraram toda essa ordem universal é melhor que isso morra em mim. depois disso, sentados na mesa, a convenci de que era gay e fiz um discurso todo sério contra a homofobia. por que fiz isso? porque queria passar o seguinte recado: “nunca mais se aproxime de mim”.

essa foi uma das coisas mais erradas que já fiz na minha vida. nem mesmo surtiu o resultado esperado. achei que tinha sido mau o suficiente, assustador o suficiente, mas havia algo de errado com ela. ou não é que era errado, é que eu ainda estava me adaptando a um novo mundo onde homens são homens e mulheres são mulheres, porque até então vivia num mundo fantasioso onde todos eram homens embora soubesse que cientificamente falando blablablablablablablabla. ela… vinha atrás de mim, abria um sorriso quando me via, fazia piadas, ficava feliz quando eu ria e triste quando eu não ria, sempre concordava comigo, me oferecia tudo o que tinha e era especificamente comigo ao menos naquele lugar. me senti como se tivesse uma escrava romântica e, com o tempo e as festas acontecendo, fui notando que era exatamente isso. fui aprendendo a parar de me importar porque vi que não era questão de agir ou não, tentar afastá-la ou não: ela queria estabelecer esse tipo de conexão comigo porque foi isso que chamou a sua atenção no meu mundo de expectativas, ela queria ser meu fantoche, isso não mudaria independente do que eu fizesse e nós jamais poderíamos levar adiante então a deixei lidando com essa parte dela e fui cuidar da minha vida.

não sei se ela ainda acha que sou gay, acredito que levou a sério pela maneira como passou uns três minutos tentando me falar que não tinha preconceito. vá, foi divertido. nunca mais conversamos e já não freqüento mais aquele lugar, mas ela me passou seu número. aceitei, guardei, mas nunca chamei no whatsapp, nunca liguei e nem pretendo principalmente pelo motivo que omiti e quero que sua imaginação descubra. se descobrir quero que saiba que não, eu não sabia. só fui descobrir aí.

por sempre ter me visto como um desequilibrado acreditei que homens eram os mentalmente desequilibrados, não as mulheres, mas não só as mulheres é que são as pessoas que precisam ter sua imaginação protegida como sou um dos homens mais equilibrados que já conheci. tenho essa imaginação toda violentada e nunca matei ninguém.

no início da juventude eu não só conseguia ouvir como ressoava de fato meu coração com death metal. possessed, death, sadus, carcass, sarcófago, dying fetus, necrophagist, atheist, morbid angel, aborted, nile, essas coisas. não, eu não era esses taradinhos que ouvem “porque a técnica é animal”. eu gostava, me conectava emocionalmente com aquilo e hoje, quando ouço, sinto um amor restaurador por quem ainda está nesse lugar porque nunca vou esquecer a trilha entre a alma humana e o vale da morte. as pessoas riem muito do discurso do “metal do diabo” sem entender o que está por trás disso, embora concorde que seja impossível entender porque colocar dessa forma num mundo como o de hoje é a coisa mais incompreensível e imbecil que você pode fazer: essas bandas cultuam a morte, a violência, a maldade, a miséria. geralmente até as letras dizem isso só que não importa o que as letras dizem, elas são o sinal mais superficial ou às vezes até antagônico se o músico for debochado como eu da verdadeira profundidade da música. essas bandas são um verdadeiro passeio pela alma de um homicida, a sua vida e a vida dos outros perde valor quando confrontadas com esse tipo de música porque todas elas reduzem o ser humano a uma pilha de ossos vagando pela terra como se ela já fosse o inferno e agindo com violência para sobreviver. uma pessoa normal se sente desconfortável ouvindo death metal, isso automaticamente já toca um sino na mente do adolescente rebelde dizendo “é isso que preciso conseguir ouvir” e foi o que fiz mas, afinal, se consegui ouvir, gostar e criar conexão com o death metal ao invés de desistir e partir pra outra, não estava eu pré-disposto a isso?

hoje em dia ainda consigo ouvir, mas percebo as agressões sonoras na minha alma, percebo os espinhos tentando perfurá-la e… deixo, abraço esse porco-espinho gigante, fico ali sangrando até acabar. esse porco-espinho gigante é só um cãozinho ferido como o meu, ele grita em agonia. sabe? o death metal é uma das visões mais corretas do ser humano, nós somos mesmo apenas pilhas de ossos com carne em volta que nascem, crescem, procriam e morrem. todas as nossas ações materiais giram em torno disso. você não pode se desesperar ao ouvir isso porque é verdade: o death metal é a maneira mais honesta de enxergar a existência quando se é materialista, ser de qualquer vertente materialista e acreditar que existe algo além disso não passa de uma intensa procura por desculpas para suportar a própria vida. esse foi o verdadeiro efeito do pecado de adão e eva nas nossas vidas, foi assim que o pecado nos deixou, é assustador e talvez você não queira aceitar mesmo sendo cristão mas você é isso aí e até a bíblia está o tempo todo nos avisando que somos apenas isso aí. fui descobrir que esses cristãos de internet são só um bando de farsantes quando comecei a perceber que seus discursos convergiam em “arte sacra para suportar a própria vida”, são cristãos na imagem com um coração de death metal.

a diferença nossa para essa pilha de ossos está na existência do nosso espírito, da nossa atemporalidade, algo que o death metal pela sua própria natureza de morte sufoca. quem nos dá vida é o espírito. vida não é algo que foi feito para começar e acabar, nós não somos totalmente temporais. nós somos essa coisa estranha que age dentro do tempo mas, através do nosso espírito, conduzimos esses próprios elementos temporais do nosso corpo a criar contatos com o que é eterno. nossas ações são feitas no e afetam o tempo mas nem sempre vêm do tempo, a saudade é um sentimento temporal construído com sensações do presente e memórias do passado. a ansiedade é um sentimento temporal construído com outras sensações do presente e imagens do futuro, que muitas vezes são formadas por memórias do passado. nós só podemos ter imagens do futuro porque certas coisas nunca mudam, você nunca vai plantar batata e colher alface, sempre vai colher batata.

posso e consigo fazer malabarismos lingüísticos (bruxaria) para dizer que aconteceu diferente mas toda vez que adultero a realidade e aprisiono pessoas no meu universo imaginativo dessa maneira não estou desmontando essa verdade, só mentindo. estou dizendo que posso e consigo porque quero, meu ouvinte, que saiba que estou me colocando nessa posição de influência ao invés de acusar os outros, que você precisa tomar cuidado comigo tanto quanto com os outros, porque qualquer um que descreva o que estou descrevendo sem mencionar que todos que têm a capacidade de descrever têm a capacidade de fazer está descrevendo com a intenção de te colocar no universo imaginativo dele. é difícil acreditar nisso mas estou apenas cantando: está divertido me ouvir? que bom. não está? clique no botão “next”.

voltando à atemporalidade: nós, então, agimos porque temos um corpo preso ao tempo, mas pensamos e sentimos porque temos um espírito atemporal e uma alma que, embora temporal, tem seu próprio tempo independente do mundo exterior. a vida humana engloba tudo isso e, se o espírito é atemporal, a vida é atemporal. se você é uma pessoa totalmente temporal, e isso só é possível com asfixia espiritual diária, você já está morto, só falta o tempo selar isso. por que estou falando disso? quem gosta dessas coisas é o elliot. geralmente resolvo esse dilema falando de amor. só quis dizer que estou vivo porque não existo apenas como matéria, existo como espírito, sou consciente e sensível a isso, e se você acha besteira tudo o que estou falando é melhor que abrace a visão de mundo do death metal porque ela é a única não-farsesca para quem você é. prazer sem espírito não passa de mais uma maneira de criar feridas para nós mesmos e para os outros, estamos no mundo para morrer.

sendo sensível ao death metal tendo a não condenar ninguém mentalmente desequilibrado. todo moralista aponta o dedo para ele como se fosse a pessoa mais santa do mundo mas esse mesmo moralista esquece que vai viver no mínimo cinqüenta anos, passar por no mínimo uma situação que vai balançar toda sua fé, agredir e desconstruir todos os seus valores e, nessa hora, ele muito provavelmente vai se igualar ao “mentalmente desequilibrado” e fazer muito pior. para quem não entendeu o livro de jó da bíblia, um atalho é perceber que “o teste de Deus” era descobrir se jó era tão certinho por amor ou por ser um protótipo de fariseu. grande parte das pessoas que estão no mundo não traem suas esposas e maridos não por elevada consciência moral, mas por falta de oportunidade. meu pai mudou a minha vida quando me obrigou a descrever uma razão fundamentada no amor para acreditar na castidade e me disse que, se eu viesse com um motivo mesquinho desse tipo, eu tinha até meia-noite para ligar pra uma amiga, marcar um encontro, pegar o carro e transar com ela; infelizmente descobrimos nesse dia que não era uma razão fundamentada no amor, mas também não era um motivo mesquinho, era só dor.

 


gostaria de relembrar que estamos numa ficção. simplesmente gosto de brincar com coisas que aconteceram, que não aconteceram e que poderiam ter acontecido e muitas vezes só faço essas coisas para me aproveitar disso. acho importante para essa parte do texto.

foi nessa temporada da vida que descobri que uma amiga de anos, de quem já gostei, era uma pessoa horrível. ela tinha uma cara de santa, um jeitinho tímido e meigo, tinha quase a mesma idade que eu, nunca tivera envolvimento profundo com alguém e vivia falando sobre sua ansiedade. deixe-me reiterar uma coisinha do capítulo passado: não acredito que uma pessoa que não tem envolvimento profundo com ninguém aos vinte-e-três é normal. não acredito que uma pessoa dessas é santa porque sou assim e não sou santo, vinte-e-três anos é muita coisa, você é um ouvinte que provavelmente se relacionou com alguém: consegue se imaginar não tendo se relacionado com ninguém? mesmo que tenham sido relacionamentos desastrosos que você quer apagar da memória, não estou dizendo sobre a outra pessoa, estou dizendo sobre saber o que é ter uma intimidade compartilhada.

sabe o que me salva de uma desgraça completa? sou sincero comigo mesmo, não me escondo. as pessoas não sabem muito bem quem sou por falhas de comunicação minhas, não por necessidade de colocar uma máscara para os outros. a minha vida é um jogo de desfazer confusões que crio por não saber me expressar muito bem. por um tempo acreditei que me mascarava para os outros mas, numa ministração sobre isso, houve um apelo para pessoas que queriam deixar de fingir que estavam inteiras por fora mas quebradas por dentro e maioria das pessoas foi, quase fui mas ouvi Deus falando “não quero você lá. você me entregou seu coração por inteiro, não me omite suas falhas, não esconde de mim quem você é. eu e você sabemos que você está quebrado, estamos no seu processo de reconstrução há anos. se ainda não descobriu o meio de comunicar isso aos outros isso faz parte dos seus problemas externos, não internos”; e é verdade, não sei expressar que não sou santo mas tento, não sei expressar que estou com problemas mas tento, não sei expressar que gosto das pessoas mas tento, ninguém pode acreditar mas sei no meu íntimo que tento e Deus é um Deus de íntimo, a única coisa que ele sente é alegria ao me ver tentando e vontade de me incentivar quando falho.

essa menina obviamente não estava passando pelo mesmo. às vezes choco as pessoas chorando intensamente em público ao ouvir coisas que mexem comigo, poderia segurar mas gosto de expressar isso porque prefiro abdicar do meu super-controle, prefiro aquela espontaneidade esforçada que comentei mais cedo. ela estava sempre sorrindo, fazia as mesmas brincadeiras rasteiras que eu, tinha uma história de vida aparentemente impecável (eu poderia dizer que tive, não? quem poderia saber dos meus problemas se eu não contasse?), era meio infantil, tímida, tão inocente… devo dizer que, a princípio, estava tão imerso nos meus próprios problemas que não percebi nada disso e também não sei o quão interessado em saber estava. conheci-a logo após uma tragédia que deixou meu coração todo rasgado e largado no chão, ela era uma moça bastante bonita então minha ansiedade foi infalível para começar uma força-tarefa de criação de provas de que ela me odiava.

existe um problema gravíssimo nisso, que sei que todo mundo sabe, só estou descrevendo como sempre: acreditar que uma menina te odeia cria um clima entre vocês e, antes de vocês estarem juntos, as únicas possibilidades são “tem clima” e “não tem clima”. não, você não está apaixonado por alguém antes de dar um beijo bem gostoso na boca, antes disso pode estar acontecendo muita coisa interessante na sua cabeça mas está na sua cabeça. se há clima não importa qual seja o impulso: você vai prestar bastante atenção nela, vai se interessar em descobrir para quem ela está fazendo as coisas que faz, em suma, acabou a sua indiferença com relação a ela. não entendia nada disso, em algum momento comecei a acreditar que isso tudo acontecia porque estava gostando dela e aí começou a bagunça, sobretudo porque amigas dela me incentivavam a me aproximar. ao que dizem as fontes externas ela estava interessada em um amigo bem próximo de mim nessa época, não tinha como saber e nada disso era muito grave pra mim porque eu tinha tantos problemas nessa área que isso era só mais um.

criei esse clima e o desfiz mais de uma vez. uma dessas criações foi enquanto escavava o material necessário para gerar meu filho, aquele dos céus estrelados, e fiquei bastante maluco elaborando mil e um planos de declaração de amor. meus pais nunca deixaram eu executar nenhum deles. não, eles não me proibiram, eles sentaram comigo e em longas conversas me perguntaram se eu era maluco e estava afim de traumatizar a menina. olhando hoje em dia fico feliz de não ter executado nenhum deles porque sei que todos dariam certo, mas desengatilhariam um processo que um mocinho ansioso como eu era na época não seria capaz de dar continuidade.

tudo isso foi interrompido quando começou essa história da moça que ficou um ano sem olhar na minha cara, depois veio a moça da declaração ansiosa. o pior de todos os meus problemas com contexto, de longe, era o seguinte: eu comentava com amigos sobre a beleza das meninas, com meu vocabulário não necessariamente sujo mas sugestivo, descrevia tudo com uma riqueza de detalhes de quem estava apaixonado e a conclusão natural de qualquer um era essa; por outro lado eu também despertava interesse neles porque fazia eles repararem coisas que, de outra forma, não reparariam. sou o maior paquerador indireto que conheço, simplesmente sei o que reparar em você e meu tiro vai no coração. se quer fazer um garoto se interessar por você, em último caso, sempre sobra aproximar ele de mim e fazer eu comentar de você pra ele. passei por ambos os problemas: meninas em quem eu não tinha interesse nenhum perguntaram para amigos meus sobre mim e ouviram que tinham chance pelo simples fato de eu ter comentado que elas eram bonitas, e então aconteceu essa história que estou narrando.

esse amigo finalmente começou a se interessar por ela mas ela estava interessada por mim, tentando se aproximar de mim, só que eu aparentemente sempre estava interessado em outra pessoa. quando tudo isso acabou comentei dessa amiga mais uma vez para esse amigo meu, com quem me aconselhava bastante, e ele disse “calma aí”. isso se agravou muito quando entrei na missão confidencial heart-shaped star #2 onde estava dedicando toda minha atenção a uma moça que estava fora da pequena londres, onde eu e essa moça conversamos e nos expusemos tanto um ao outro que nossas carências começaram a se apegar e a montar um relacionamento em cima disso. nesse período ela tentou se aproximar de mim de todas as formas possíveis, chegava perto de mim para ver o que eu estava lendo, escrevendo, investigando tudo o que postava e curtia nas redes sociais. ela também foi convivendo comigo em novos contextos, descobrindo novas coisas sobre mim que nos anos anteriores não teria como descobrir tanto pelo contexto não permitir quanto pelo fato de que eu estava num processo de desabrochar numa nova pessoa: eu, heart-shaped star, estava livre, cheio de energias, cantando minhas músicas como um verdadeiro rockstar, demonstrando novos lados da minha personalidade extravagante.

e aparentemente comprometido com alguém.

isso feriu ela e sei que feriu, fui muito grosseiro e mal-educado com ela e ela era totalmente incapaz de demonstrar qualquer coisa. não percebi que estava fazendo nada disso e não tinha ninguém para me avisar, em um evento especificamente alguém notou e ficou espantado com a minha grosseria e eu, por reação natural, fiz alguma piada horrível. aquela situação cresceu muito no meu coração, virou um verdadeiro monstro.

mas não era porque não estava interessado nela naquele momento que deixei de reparar seus sinais. a personalidade dela começou a se tornar explícita para mim, e só para mim, porque éramos extremamente compatíveis nos nossos piores defeitos: a nossa super-ansiedade e, sim, menininha santinha, o nosso altíssimo grau de perversão sexual. ela se comunicava com o meu corpo com um código ultra-secreto que apenas as mais desgraçadas abusadoras psicológicas usaram comigo, não só pela ação em si mas pela qualidade da ação, e tinha evidente interesse por homens mais velhos. o interesse por mim foi uma verdadeira anomalia na vida dela que será rejeitado até a morte e aceitarei com prazer nunca usar nomes nessa história para não expor ninguém. não que algo aqui seja real, nada aqui é real. com uma ajudinha do meu amigo investigador, um robôzinho que se denomina a maior rede de informações do planeta, descobri algumas de suas histórias se rastejando por seus professores. não que ser gritantemente mais nova em sua rodinha de amizades cheia de mães solteiras não entregasse muita coisa também.

algo que sempre notei nela, também, era o prazer que sentia em contar histórias onde mexia com a ansiedade dos garotos que se interessavam e até se declaravam para ela. em algum momento da nossa amizade ela passou a demonstrar esse prazer para as amigas e até pra mim, que não comentava nada, apenas pensava “ok, normal, mulher é assim, tudo meio má mesmo”. curiosamente ela ficou muito espantada no episódio onde, enquanto ainda interessada por mim, descobriu que escrevi uma carta para outra menina por uma falha de caráter minha onde acreditei que seria apenas “incentivador” escrever uma carta fofinha para alguém num evento para solteiros e me perguntou se eu tinha prazer em partir corações e então, no esclarecimento, desastrosamente revelei a ela que estava de fato muito envolvido com essa outra moça de fora da pequena londres. é, isso foi uma bomba, sei que foi uma bomba porque vi ela expressando reação e nunca antes tinha visto essa menina expressar alguma reação pra nada. heart: broken. foi muito grave porque foi uma reação muito agressiva para ela, a maneira como ela encarou a situação foi agressiva demais para uma menina hiper-contida como ela (“você brinca com o coração das meninas?!” seguido de broncas veladas, “olha lá hein… sei, entendi… ah tá”), foi mais agressiva que a da moça de fora que me deu uma baita bronca e me explicou por que eu nunca mais deveria fazer aquilo mas foi de uma maneira completamente maternal, não me julgando uma pessoa má. lembro de ter me sentido muito amado nesse dia.

a esse ponto também sabia que ela era uma pessoa extremamente ansiosa porque sabia que o simples fato de um homem dizer “oi” pra ela sinalizava alguma coisa estranha. sei disso porque ela me disse uma vez que meninas eram todas muito ansiosas, que era só um homem mandar um “oi” que elas já ficavam tremendo e não posso dizer que isso está certo ou errado mas é extremamente auto-consciente para uma garota de sua idade. garotas de sua idade estão criando polêmicas na internet sobre ser coisa de homem paranóico não acreditar em amizade entre homem e mulher, isso só se torna uma questão debatível para pais e mães de família e não vou revelar a minha opinião sobre isso porque ela está implícita no capítulo 2. ajudava muito que seu irmão era um verdadeiro monstro ansioso, que iniciava e terminava relacionamentos como se fossem partidas de futebol, e o meu quadro entre as meninas da igreja já era o de uma pessoa ansiosa embora ninguém soubesse de fato se mau caráter ou não.

ela me revelou milhares de coisas me revelando uma única regra geral do seu universo, as mais importantes dessas milhares eram: ela tinha uma ansiedade monstruosa, ela não me via como amigo, ela sabia várias coisas sobre mim que ninguém mais sabia, ela era a menina menos ingênua do meu círculo de amigas e ela, santíssima, não estava pegando carona no meu carro à toa. no começo do ano ela me perguntou se eu poderia oferecer carona sempre porque íamos ao mesmo lugar no mínimo três vezes por semana, recusei porque realmente não dava e porque senti algo de errado nisso. estava muito certo. não precisava ser compreensivo com ela, meu eu de quarenta anos era muito mais apropriado para lidar com o caráter dela que meu eu de vinte.

ah, o mais importante mesmo era: ela sabia com mais profundidade do que eu imaginava sobre a ansiedade de todos os garotos que ela brincou. o que significava que havia uma chance bem alta dela saber que tinha brincado com a minha ansiedade nos anos anteriores, o que significava que ela estava tentando brincar com a minha ansiedade agora sabendo exatamente o que estava fazendo.

ela é uma pessoa má.

socialmente boa, essencialmente má.


ela nunca soube disso e, se soubesse, não teria feito comigo o que fez, mas montei um quadro bem preocupante sobre ela enquanto ainda na missão #2. uni tudo isso que adquiri com o tempo e concluí que essa minha “amiga” era uma caixa-preta, uma bomba. fui deixando esfriar, deixando as coisas acontecerem devagar, até que de repente a missão acabou com uma crise de ciúmes totalmente justificável da moça com essa menina pela maneira que coloquei as palavras.

isso não teria surtido efeito nenhum em mim não fosse o tamanho da crise. ela me assustou demais. formou-se em algum lugar muito bizarro da minha cabeça algo como “a moça estava escondendo de mim que essa minha amiga era meu grande amor”, isso impulsionou minha mente ansiosa a criar um clima com ela mais uma vez e, assim que me recuperei de tudo e ganhei forças, decidi que esse clima seria o último. ou sairíamos disso namorando ou sairíamos disso sem nunca mais nos falar. estava muito transformado, a ansiedade extrínseca que fazia eu me sentir diminuído perto das meninas não existia mais então eu era capaz de paquerar com uma parte considerável do meu arsenal, agora a ansiedade só existia na forma de universo interior de expectativas.

mas esse universo estava mais violento que nunca.

eu era capaz de criar absolutamente qualquer hipótese sobre qualquer situação e fazer aquilo ganhar sentido. era uma verdadeira arma de guerra contra a desistência, mas que acabou suprimindo a própria racionalidade. ela sabia como jogar com isso, e percebi que ela sabia, mas meu jogo serve para me tirar das enrascadas e não para me colocar cada vez mais nelas então a minha posição nesse verdadeiro xadrez emocional foi a de ser derrotado. decidi não usar as minhas peças mas usar as dela e ver até onde ela me conduziria, criei um personagem apaixonado loucamente por ela usando tudo o que poderia usar da nossa história de amizade e o “soltei na pista”. olhando agora foi insano, mas foi a melhor coisa que já fiz: essa é a melhor história fictícia que já contei! só que o dano causado em mim foi enorme e, até assimilar tudo, sofri muito. a história está acontecendo, vocês vão ver.

já era uma pessoa querida na família dela, nessa época comecei a me aproximar mais ainda. nós também estávamos com uma relação boa, embora ela estivesse há um tempo resistindo a algum sentimento por mim porque ela ficava visivelmente alterada sempre que eu estava por perto, ela estava chegando ao ponto de alterar a personalidade quando eu estava perto e não sabia muito bem acreditar nos meus olhos, mesmo com pessoas confirmando pra mim, mas já estava decidido a fazer minha parte. ah sim, nós retomamos o nosso jogo secreto de perversos que tinha cortado em algum momento.

quando ela viu que eu estava começando a dar abertura ela passou a me desprezar. em forma de joguinho expositivo, mesmo. num dia eu mandava mensagem sobre algo, ela levava horas para responder (ela deixava pra todos um discurso de que não gostava muito de ficar vendo whatsapp… só cai nisso quem não sabe como ela responde rápido quando está “por baixo”) e chegava no outro dia comentando empolgadíssima para os nossos amigos que estava me dando um gelo. eu… ri disso. não sabia se achava doentio ou fofo, até então ainda era fofo, mas sabia o perigo que aquilo representava.

em um final de semana desses a chamei para sair e ela recusou, então preparei uma belíssima armadilha, talvez a melhor armadilha que já elaborei, e disparei uns dias depois numa semana onde ela praticamente implorou com gestos e indiretas que queria minha presença por ali.

um detalhe: nesse mesmo final de semana saí com esse meu amigo e, quando ele entrou no assunto de relacionamentos, mesmo com tudo isso acontecendo, disse que finalmente tinha sossegado. foi estratégico, já estava me incomodando com a maneira como ele lidava com esse assunto e como isso era antagônico à maneira que minha casa, composta por líderes de casais, lidava. para mim tudo estava começando a soar muito estranho.

voltando, disparei essa armadilha e ela caiu. era boa demais para alguém não cair. só que não achava o momento certo para levar aquilo até o fim então dei a oportunidade dela escapar e ela escapou, me bloqueou do whatsapp e fim. nem pensei muita coisa desse fato em si, já comecei a traçar o próximo plano.

infelizmente não pude traçar por muito tempo. estava passando por no mínimo uns três episódios simultâneos de ansiedade. estava para ser demitido do trabalho, estava com muitos problemas em casa e nessa semana fui ameaçado de processo por uma situação que me arrasou por dentro e causou uma erosão na minha fé. a minha depressão gritou comigo, precisei chorar por no mínimo uns três dias seguidos para lidar com tudo isso e… no último dia ela viu, acreditou que eu estava tão destruído por causa do bloqueio dela e me desbloqueou.

não me lembro se aconteceu muita coisa logo em seguida, acho que não. acho que foi uma semana tranqüila nesse assunto porque realmente precisava cuidar de todos os outros. é, deixe-me checar o calendário totalmente fictício: foi isso. fui demitido na outra semana e precisei lidar com outros assuntos. o que aconteceu aí foi que percebi que esse meu amigo estava se aproximando dela e, por conta dela ignorar todas as suas tentativas de chamar atenção e continuar se comunicando comigo através daqueles jogos perversos, fiquei sem levar muito a sério embora tenha perguntado para alguém a respeito e recebido uma resposta incompreensível que só poderia ser interpretada como “você está maluco”, não como “você está certo mas não quero te falar a verdade”. pensei em todas as hipóteses possíveis. pensei na possibilidade de estar a manipulando para fazer aquelas coisas mas, honestamente? ela começou a fazer isso antes de mim, e era sempre ela a pessoa que começava, eu sempre acompanhava.

na minha cabeça também passava constantemente o fato de pessoas terem espalhado para ela que eu era um verdadeiro galinha, que tinha dado em cima de todas as meninas da igreja. a amiga mais próxima dela dos últimos seis meses tinha falado isso de mim uma vez comigo por perto, mesmo que tenha sido ela a pessoa que tentou flertar comigo algumas vezes até desistir e pegar raiva, eu simplesmente não tinha interesse nenhum e o flerte era tão descarado que até eu percebia, acho que mesmo que tivesse interesse eu não saberia lidar. essa amiga também me desprezava muito enquanto estava ao lado dela mas, assim que se distanciavam, voltava a ser simpática de um jeito meio rasteiro. isso me perturbava muito, por um certo tempo acreditei que essa menina era a vilã da história, que tinha aparecido para separar ela de mim para entregá-la ao outro rapaz e dar um jeito de ficar comigo. só que era tudo muito inconseqüente pro meu lado: me manchar dessa forma sendo que eu tinha tantos problemas com isso, tinha sido difamado muitos meses atrás e acabado de sair de uma ameaça de processo por pura sacanagem desse tipo. o que já tinha perdido de vista era que era muito mais provável que isso tivesse partido da própria jogadora que dessa outra menina. essa outra menina era só um amontoado de carências, uma vez brinquei a ansiedade dela por uma noite e no outro dia ela já estava orando desesperada para não perder o controle de si e oferecer as pernas pra mim. já estava muito profissional nisso a essa altura, ela tremia o corpo todo quando eu fazia um sinal e respirava no ritmo que eu determinava.

ah sim, me tornei uma pessoa horrível durante esse jogo, completamente corrompida. é a conseqüência de acreditar que está sendo manipulado por todos: você acaba manipulando todos e nem todos merecem. acho que essa história vai marcar eu e essa menina para sempre porque todas as pessoas que entraram nela viraram peças do nosso jogo de xadrez, nós fizemos um estrago enorme e irreversível.


numa dessas semanas seguintes me declarei para ela e recebi uma conversa de “só te vejo como amigo” que não tinha consistência nenhuma, conduzi a conversa para extrair tudo o que ela poderia me falar a respeito e ela não conseguiu responder nenhuma das minhas perguntas correspondendo à realidade. eu, no entanto, já estava ficando meio cansado disso tudo. a minha cabeça já não pensava em outra coisa, era o dia todo pensando qual estava sendo o próximo passo dela e qual seria o meu próximo, já tinha voltado a trabalhar e isso já estava atrapalhando meu rendimento no trabalho; e o pior é que não havia maldade em mim nessa questão em si, queria desatar os nós atados, queria entender o que estava acontecendo, qual era o fundamento desse jogo dela, tinha achado um bocado de feridas emocionais dela vindo de mim e queria pedir perdão por todas elas mas estava cada vez mais difícil conversar qualquer coisa normal. num desses dias onde precisava muito pedir perdão a ela, ainda na semana de declaração, ela não conseguiu olhar na minha cara por muito tempo e foi até o banheiro, fui atrás e fiquei esperando. esperando. esperando. com um aspecto totalmente depressivo mórbido, sentado numa escada em posição fetal.

esperei por muito tempo até que um amigo meu, bem mais velho, casado com uma amiga dela, me chamou num canto para conversar comigo e depois trouxe essa amiga junto. a mesma conversa de sempre. “não é fácil mesmo, às vezes a amizade confunde e blablabla” e eu ouvindo, bem convincente, até que perguntei se era mesmo tão fácil saber o que ela estava sentindo, se ela não poderia ser uma pessoa com sentimentos muito ocultos. a resposta foi que “não”. nesse momento todo o crédito que tinha na conversa foi embora porque, a essa altura, já tinha identificado segredos dela que ninguém mais sabia, já sabia segredos da família dela que ninguém sabia, e pra mim alguém que sequer soubesse do nível de nebulosidade emocional dessa menina estava tendo com ela um relacionamento superficial.

resolvido isso e compreendido que não poderia fazer mais nada naquele dia, troquei de personagem, instantaneamente refiz meu sorriso e fui conversar com outros amigos meus para sair e comer um burg.

no meio da outra semana consegui pedir perdão a ela sobre o que queria e ela disse que nem lembrava, achei engraçado mas não me importei, minha missão tinha sido cumprida. só que minha ansiedade já estava chegando ao seu limite, ela já estava um verdadeiro monstro. já tinha milhares de hipóteses, alimentadas por outros amigos meus, sobre esse amigo ter passado a perna em mim, ter falado coisas ruins para várias meninas no passado que chegavam nele e perguntavam sobre mim e isso explicar por que a situação minha era tão mais confusa do que deveria ser. não sei o que disso tudo que pensei foi real ou não e honestamente não quero saber, eu e esse meu amigo já nos resolvemos, se ele fez algo de errado no meio disso tudo não me importo e também não quero ouvir porque sou ferido o suficiente para não acreditar em ninguém nessas situações. é uma bagunça irresolvível, é melhor apenas que vá embora.

no final da semana, depois de acontecer o mesmo de sempre entre eu e ela, e depois de ela e esse meu amigo agirem como quase-namorados logo em seguida, minha ansiedade saiu de controle e explodiu. em público, ainda. foi muito feio, uma verdadeira história exagerada onde eu o expus, a expus e me expus, principalmente me expus por conta da agressividade absurda, era como se fosse um verdadeiro louco apaixonado e ferido. era só ansiedade. aliviei minha ansiedade criando um monstro de ansiedade em todas as pessoas que estavam envolvidas, empurrei ela para os braços dele, deixei todas as pessoas confusas sobre tudo o que estava acontecendo, surpreendi pessoas que me achavam a pessoa mais calma do mundo.

mas, se você perguntasse a mim o que estava sentindo, responderia que era alívio. essa é a situação que melhor sintetiza todo esse livro de quarenta mil palavras, essa situação é o epicentro da ansiedade: isso era tudo coisa da minha cabeça. nada além de coisa da minha cabeça. tentei avisar de tantas formas que estava com esses conflitos na mente me corroendo, mas tantas formas! só que não sabia os meios, não sabia a quem recorrer, estava no meio de um jogo de xadrez com pessoas e tudo o que contasse para alguém seria considerado uma verdadeira insanidade, talvez pela minha linguagem fantasiosa, talvez porque era mesmo insanidade o que eu e aquela menina estávamos fazendo. com isso fora de mim tive condições mentais de reavaliar tudo e perceber que era tudo desnecessário, que era só mais um clima e eu não gostava dela coisíssima nenhuma, ela estava brincando com meu ego e eu com o coração dela como dois verdadeiros doentes de alma.

nós não tínhamos condições de iniciar um relacionamento saudável. nós causamos uma verdadeira erosão num grupo de amigos por pura ansiedade, o ideal era nos afastarmos o máximo que desse, já que nos vemos toda semana por conta das obrigações e não teria como se afastar totalmente, e essa foi a minha decisão.

 


então, alguns dias depois, a donzela roubou meu caderno.

meu caderno cheio de histórias, cheio de confissões para Deus e esboços de confissões para pessoas. meu caderno, onde reuni material para formar meu personagem apaixonado por ela.

foi aí que cansei de vez de tudo isso e decidi me entregar ao mau-caratismo completo, decidi que não importava mais que ela tivesse tantos motivos para ser traumatizada com pessoas como eu, eu arrebentaria o coração dela. ela não queria que eu fosse até o fim? iria até o fim. até que ela assumisse namoro com aquele rapaz ou decidisse acabar com isso e viesse falar comigo, e eu diria “não” a ela nessa conversa sem nenhum ressentimento, continuaria fazendo o meu pior.

na outra semana simulei a ansiedade dela durante a apresentação de um trabalho e, logo em seguida, cantei ela na frente de uma amiga. no outro dia ela não foi capaz de olhar na minha cara, eu só ria. dois dias depois tive uma crise de ansiedade horrível no meio de vários amigos porque já não suportava mais toda aquela situação, estava chateado demais e desconfiado demais, só queria o meu quarto. um dia depois ela trouxe o rapaz, de quem eu ainda estava guardando muita mágoa, para um lugar onde ele não precisaria estar, para “protegê-la de mim”. pena que, sempre que ele não estivesse olhando, ela continuasse a jogar com as nossas perversões sexuais. a essa altura só pensava “pobre rapaz”, ainda sorrindo porque ainda acreditava que ele era um desgraçado, não conseguia ver que ele era só mais uma pobre peça no tabuleiro dela.

no final dessa semana deixei uma carta na caixa postal dela. no começo da semana, algumas horas antes deles assumirem o relacionamento, algumas horas antes dela viajar para outro estado, deixei outra. o conteúdo dessas cartas? “eu sei quem você é. eu conheço a pessoa por trás da máscara”.

e então ri pela última vez porque, a partir daí, não precisaria me importar com ela nunca mais.

sou socialmente mau, essencialmente bom. um demônio no mundo, um anjo entre quatro paredes.
ela socialmente boa, essencialmente má. um anjo no mundo, um demônio entre quatro paredes.

ela me destruiu socialmente. eu a destruí essencialmente.

quando voltou de viagem ela não percebeu que não havia mais jogo. ela obviamente não falou um “A” pra mim mas, quando teve a oportunidade, tentou jogar novamente com o meu corpo. eu aceitei. com nosso código de perversões sexuais comuniquei “eu te odeio” e a matei.

 


a minha alma foi violentada mais uma vez, depois de tanto tempo de trégua.

me senti desconfiado de todas as pessoas de novo. um amigo distante, não necessariamente mais velho mas mais maduro, tentou conversar comigo de um ponto-de-vista nada amigável porque todo mundo é capaz de sentir que não explodi por mal mas incapaz de conceber como poderia não ter explodido por mal. senti, pelo tom da conversa, que era mais um jogo de xadrez. ele veio, me contou a história de um ponto-de-vista privilegiado explicando o que estava por trás de tudo desde que todos nós nos conhecemos para dizer “viu só, você precisa pedir perdão, seu amigo é o mais inocente da história toda”. concordo desde que explodi que precisava pedir perdão pelo simples fato de ter explodido, não queria ter explodido, só não consegui mais segurar o que já estava segurando por meses. teria pedido perdão mesmo que essa conversa não tivesse acontecido.

só que, nessa conversa, me vi com a mesma alma rachada de antes de voltar para a igreja. voltei a me sentir abusado psicologicamente por qualquer conversa e, nessa, quis testar essa versão da história. inverti a ordem dos acontecimentos recentes para tirar todos os meus privilégios e fiz ele contar um segredo sobre seu próprio relacionamento, então entendi que ele estava construindo certos fatos na hora baseados na sua própria experiência de vida, não havia espaço pra minha versão. queria empatia, as pessoas queriam resolver problemas. depois, bastante agoniado com o que estava fazendo, tentei contar a uma amiga um pouco mais velha pensando que poderia haver uma solução para aliviar minha dor. ela só se assustou e me recomendou resolver logo.

sozinho de novo.

entendi algo muito interessante baseado em tudo isso que aconteceu nesses capítulos todos, embora mais especificamente no segundo capítulo. aprendi que o xadrez mental que meu amigo estava tentando fazer comigo não era errado, não era problemático, deveria aceitá-lo por amor porque ele estava fazendo por amor. não é necessariamente dizer “cada um tem sua verdade” mas, por mais solitário que isso me deixe, não há espaço para minha verdade no meio de um bando de jovens. jovens são superficiais e isso não é por maldade, é por limitação, mesmo eu só fiz tantas besteiras porque sou emocionalmente superficial e minha mente de quarenta anos não me faz uma pessoa de quarenta anos. essas verdades profundas criadas pela minha imaginação fértil, minha agilidade de processamento de informações e meu conhecimento multi-contextual não cabem na mente de um jovem.

esse conflito que eu e essa moça criamos precisava ser resolvido publicamente e a resolução pública envolvia uma solução simples e juvenil. a solução simples e juvenil, em casos assim, é uma história simples onde a pessoa que se expôs (eu) fez besteira e os outros dois estão certos, mas todo mundo precisa entender que a pessoa que fez besteira (eu) fez por estar ferido e não por maldade então vamos tirá-lo desse meio e colocá-lo em outro, deixá-lo iniciar uma nova história e tudo magicamente se resolve. e sabe? se resolve mesmo. naturalmente duvido que esse relacionamento vá durar muito tempo porque, esquecendo a verdade chinfrim do contexto e pegando a real, a concreta, a que Deus conhece, ele começou errado, ele é irregular, mas quem disse que Deus não pode reverter tudo isso? jovens são completos imbecis irracionais mas amam pedir milagres, Deus ama realizar milagres de jovens, existem pessoas cuidando desse relacionamento para reverter todas as situações. e, se der errado, não estou mais na vida dessas pessoas, não preciso me importar. a carta que deixei na caixa postal perturbou a menina, mas quem disse que alguém além de mim sabe disso? e quem disse que alguém além de mim vai saber? confrontado com esse fato ela pode dizer “ah, vi que era sua letra e joguei fora, nem li”.

todo mundo ama dizer “as pessoas não suportam a verdade” para se exaltar mas isso é, na verdade, uma frase de humildade. um exercício de humildade. o mundo das pessoas que amam não está na lei do mais forte, está na lei do mais fraco. se você está em um relacionamento você não pode cobrar da outra pessoa que ela chegue ao seu nível, você é quem precisa descer ao nível dela e construir uma ponte entre esse nível e o seu. se as pessoas não suportam a verdade que você conhece, com toda sua magnitude, guarde ela para você por amor às pessoas. um dos meus atos favoritos sempre foi “chocar” as pessoas com a verdade, dizer “você está errado”, confundir a cabeça delas, mas aonde isso me levou? isso só colaborou para me isolar das pessoas, para me tirar do contexto delas, para fazer eu me sentir injustiçado e, por fim, para fazer com que me sentisse uma pessoa mais digna por ser mais do que as pessoas da minha idade.

fiquei triste comigo mesmo por ter manipulado as peças do meu amigo por aflição da minha própria alma, mas foi bom, tenho certeza que foi. tenho certeza que precisava consertar a minha história menos do que os outros, quem cuidava do nosso grupo precisava resolver o problema com todo mundo feliz e o novo casal precisava resolver o problema dos danos externos no seu início. eu… estou acostumado a ver essas coisas acontecerem comigo, vou me apegar a outros amigos que já tenho e conhecer novos, continuo bem gatinho, continuo cantando. é mais uma situação que faz eu me sentir solitário, carregando fardos que apenas meu caderno conhece, mas se meu caderno é tão recheado é porque sempre foi assim, nada mudou, é só matemática.

 


foi no meio do ano passado que as notas dessa estrela começaram a mudar. quando comecei a perceber que carregava em mim o peso de verdades que eram só minhas, que só eu apreendi e que não tinha ninguém pra contar. quando percebi que Deus estava me dando músicas que as pessoas não compreenderiam, que seriam palavras que as pessoas tentariam decifrar e resolver e não senti-las comigo.

comecei a perceber que “the runner” tinha chegado ao seu fim.

a “the runner” era uma música sobre sair de um mundo e entrar em outro. quando a tirei de dentro de mim, aos dezoito anos, oficializei o êxodo do mundo externo em direção ao meu mundo interior. foi aos dezoito que entrei em depressão, tive minhas tentativas de suicídio, minha possessão e minhas múltiplas personalidades. não foi fácil correr, não foi fácil sair de um lugar que era um verdadeiro teatro de aparências e portanto tudo parecia tão certo e entrar nesse meu mundo interior sombrio, que ninguém conhecia e talvez nunca fosse conhecer, cheio de incertezas. estava totalmente corrompido, meus pensamentos completamente insanos e doentios e eu lutando contra aquilo sozinho, nunca soube lutar de outra forma, eu era um garotinho com uma vela e uma espada lutando contra os enormes lobos da noite. por anos fui esse garotinho. por anos meus amigos observaram minhas crises de ansiedade nas madrugadas e se sentiram impotentes, desconectados da insanidade que criei sozinho para entender tudo o que aconteceu.

não quis que a “the runner” chegasse ao fim. passei todos esses anos trancado enquanto um garoto tímido em processo de ressocialização criava terreno para mim no mundo. aprendi a cantar tão bem nesse tempo fechado no coração desse garoto! tinha certeza que poderia reconstruir aquela última versão feita quatro anos atrás com instrumentos melhores, notas melhores, solos melhores, só que minhas notas estavam mesmo mudadas e cada dia essa música nova prevalecia mais sobre a antiga. e se fizesse as duas músicas? e se deixasse essa nova forma para um novo céu estrelado, por que essa sétima estrela cadente não poderia ser uma melhor versão possível da antiga? coloquei no caderno a antiga, está lá escrito: “the runner”.

acontece que meu mundo interior está pronto para ser confrontado com o mundo exterior do qual tive que sair para suportar a vida. é o fim desse processo. é o fim da minha derrota para a ansiedade, para o mundo do meu imaginário corrompido onde as pessoas estão todas de olho nos meus passos, me julgando, me ridicularizando, me diminuindo e pisando em mim. não preciso mais correr.

esse garotinho lindo está parando de correr.

disse no meio dessa história que os dois abraços mais gostosos, para mim, são os abraços dos moradores de rua e dos idosos. não falei nada sobre idosos aqui, fiquei o tempo todo pensando em qual momento os idosos entrariam nessa história porque eles são uma peça fundamental da vitória contra a ansiedade. como eles são a vitória decidi que seria a última história, decidi que encerraria tudo isso vencendo.

 

a primeira vez que fui servir num culto de idosos foi um dia depois de partir meu coração em alguma dessas histórias que não a última. fazia parte da minha escala, estava apenas cumprindo obrigação, mas estava mal. muito mal. todos os outros jovens escalados faltaram naquele dia, só eu estava lá, não sabia o que deveria fazer então sentei ao lado de um senhor que não ouvia muito bem, andava de bengala e aprendi muito sobre todos os tipos de bengala e as melhores marcas conversando com ele e algum amigo que apareceu por ali. eu… senti algo especial por aquele ambiente, não sabia descrever o que era.

então começou a palavra. aliás, não era nem uma palavra, o pastor simplesmente falou para a gente orar. ajoelhei e comecei a chorar. descarreguei meses de memórias em formas de lágrimas ali mesmo, meu coração tão aflito que em alguns momentos senti como se ele estivesse parando, não sei quantos minutos isso durou e tudo ocorreu bem porque consegui parar assim que o tempo de oração acabou. não precisei fazer absolutamente nada naquele culto, ninguém precisava de mim como servo, então simplesmente assisti e conversei com os idosos. alguns eu conhecia, descobri que um dos líderes era um senhorzinho que trabalhava como zelador na minha universidade e, embora nós conversássemos às vezes por lá, não sabia que ele era da mesma igreja que eu e muito menos imaginei que ele era líder de idosos.

no final do culto uma senhora me chamou e disse que outra senhora, que estava ao lado dela e provavelmente era alguma parente, talvez sua mãe, precisava me dar um abraço. precisava me dar um abraço. ela não conseguia falar, por isso essa outra senhora teve que me avisar. recebi o abraço e não tive nem forças para chorar mais, só fiquei muito feliz, só me senti amado de uma maneira que nunca tinha me sentido antes, fui embora pra casa muito transformado por algo muito simples.

decidi que abraçaria as pessoas daquela forma pelo resto da minha vida. decidi me tornar um especialista em abraços. decidi, também, que serviria no culto de idosos enquanto tivesse forças.

por enquanto posso dizer que foi uma das melhores decisões da minha vida.

o culto de idosos é o maior remédio para a ansiedade que existe, nele descobri um lado da minha personalidade que precisava ter descoberto há muito tempo para ter saúde mental equilibrada. descobri um lado da minha personalidade que não tem motivos para ser ansioso. os idosos não precisam mais se importar com nenhuma das raízes da ansiedade pelo simples fato de que eles não podem: alguns deles não ouvem direito, outros não enxergam direito, outros não andam direito ou nem andam, outros não seguram as coisas direito; muitos não sabem ler e não precisam, se vão aprender ou se estão aprendendo é exclusivamente porque querem, não é obrigação, eles podem aprender no ritmo deles, podem até morrer no meio do processo. nada ali é obrigatório. minha avó há anos está aposentada e não precisa sair de casa, ela está acamada há um ano, ela faz tudo o que quer desde que o corpo dela permita: pode passar o dia todo assistindo televisão, cozinhando, lavando roupa, lavando louça e o que mais surgir na mente de uma viúva de setenta anos que sempre morou numa cidade que nunca teve mais que vinte mil habitantes.

a minha avó não tem ansiedade porque esse futuro corrido que está dia e noite devorando os pensamentos da juventude já chegou e já foi embora. não me entendam mal, não é que idosos não tenham mais futuro, é que idosos têm uma concepção realista de futuro: eles vivem cada dia em seu próprio dia porque perceberam que cada dia é um dia, hoje é hoje, amanhã é amanhã, não adianta atropelar as coisas. a minha avó não precisa mais cuidar do futuro da minha mãe, acabou, a minha mãe tem a sua própria vida. a minha avó não está preocupada com encontrar namoradinho porque ela já viveu tudo o que precisava com um homem e, se amanhã ela mudar de opinião e decidir que quer outro, ela só… vai, encontra outro e acabou. a minha avó não está preocupada com a compra do mês que vem, ou talvez até tenha estado em algum momento, mas percebeu que sua mente não comporta mais essa preocupação então em algum momento deixou de se importar para focar na compra de hoje. isso sem contar as tarefas que ela pôde delegar às pessoas que a servem como minha mãe, meu primo, minhas tias, etc.

no louvor do culto de idosos o cantor, que também é idoso, muitas vezes se perde nos tempos, não se sente na obrigação de cantar precisamente no tom e sim em cantar no seu melhor tom. e sai agradável, muito agradável. não é que ele seja desafinado, é que não é um louvor técnico e nem poderia ser então suas falhas soam naturais, acontecem num instante e de repente você já esqueceu como se nem tivesse reparado. num culto de jovens onde tudo parece ter uma pressão enorme qualquer coisa te incomoda, todos os outros avançam feito um foguete para abafar a falha de seu companheiro e voltar ao ritmo que estava antes, enquanto nesse as coisas saem da rota e voltam descompromissadamente. os idosos são imperfeitos, assumidamente imperfeitos, e sabem que a culpa não é deles: que importa o tempo da música estar perfeito se alguns deles não conseguem bater palma no ritmo certo? que importa a voz estar totalmente afinada se alguns deles nem conseguem cantar? derrubei todo o meu arsenal de observação de defeitos alheios que vem junto com a ansiedade. não foi difícil, foi libertador.

não, “libertador” é uma palavra que não dá conta de explicar como me senti. ela é a melhor palavra mas, ainda assim, é muito pobre para explicar como me senti.

uma coisa que não contei de mim mas que, a essa altura, você já deve saber mesmo que implicitamente por nunca ter pensado nisso, é que tudo o que faço de melhor eu aprendi sozinho. veja que a minha vida é um amontoado de coisas que se faz sozinho. trabalho com sistemas e sou muito bom desenvolvedor individual, porém péssimo com trabalho em equipe onde todos dependem de todos a todo tempo e minha última demissão esteve relacionada a isso; as minhas músicas aprendi a fazer sozinho, fechado no meu quarto; também aprendi a tocar teclado com minhas próprias músicas. tentei me deixar ser orientado pelo meu tio que é um músico inspirador, aposentado da banda oficial da pequena londres mas não tive paciência, acho que ele entendeu porque tem uma personalidade semelhante à minha. talvez seja mal de músico; aprendi a ler e escrever sozinho, desenvolvi meu hábito de leitura com livros que ninguém sabe muito bem de onde tirei o interesse, sem perguntar nada a ninguém; em escola, faculdade, igreja, nunca fui de me reunir com as pessoas para estudar e aprender alguma matéria, sempre foi para ensinar ou para perguntar o que cairia na prova. sou o ápice do auto-didatismo. por ser melhor que os outros? por ser superdotado? não, é claro que não, é óbvio que não.

é porque só quando os outros estão distantes sinto-me livre para errar.

quando estou só a pressão da minha auto-crítica se anula no espaço. sei que sei o que sei, e sei que não sei o que não sei. não tem ninguém vendo que errei para me julgar então sinto a dor e a frustração do erro e logo em seguida tento outra vez, ninguém vai frustrar as expectativas que tinha de mim, ninguém vai se decepcionar comigo. ninguém odeia que os outros criem expectativas de si pelo simples fato de criarem expectativas, odeia porque com as expectativas vêm as frustrações, e as expectativas em cima de mim são gigantescas e portanto as frustrações também são gigantescas e muitas vezes vêm como verdadeiras marretadas no meu coração. e não, não me sinto incapaz, pelo contrário: na minha opinião todo mundo é capaz de qualquer coisa desde que aprenda a fazer, se acredito em “vocação” não é na forma de magias de predestinação mas de pré-disposições mesmo.

quando as pessoas estão ao meu redor, no entanto, minha auto-crítica se projeta em todas essas pessoas e não consigo fazer mais nada que não tenho certeza que vou fazer direito. é automático, é mais forte que eu. odeio quando me acusam de egocêntrico de uma maneira pejorativa por fazer isso, isso é uma prisão, não algo que faço por prazer. que tal me ajudar?

enquanto dirigia com meu pai ao lado eu era incapaz de pensar em dirigir sozinho, jamais conseguiria enxergar que estava dirigindo bem, nunca arriscaria estacionar meu carro em qualquer lugar. levou dez minutos dirigindo sozinho para me sentir capaz de fazer tudo o que queria fazer com um carro. dez minutos versus um ano. dez. minutos. versus. um. ano.

a minha personalidade desabrocha quando estou, ou me sinto, só. nos grupos da pequena londres estou variando entre o infantil e o contido porque sinto que pessoas que me vêem todos os dias estão me analisando a todo instante como eu, infelizmente, faço com elas (mas juro que sou generoso e não falo nada! do contrário elas não me suportariam). fora da pequena londres sou um jovem rockstar divertido. entre quatro paredes com uma pessoa posso ser o melhor conselheiro que já passou pela vida dela. pessoas que aparentemente me odeiam, que mantém uma espécie de papel social de me odiar ou me ignorar em público que particularmente amo incentivar, compartilham comigo suas dores e pedem direção quando só os melhores amigos em comum estão vendo.

tenho vários outros exemplos sobre como estar só muitas vezes é a solução para meus problemas, mas voltemos à história. no culto de idosos não sinto pressão porque é um ambiente impermeável para a crítica. não é que todo mundo seja simpático com todo mundo, é que não existe essa máscara de vida perfeita que nós, jovens e adultos, temos o vigor de colocar todos os dias para sair na rua. nem toda maquiagem do mundo mascara os evidentes desgastes de um idoso. no culto de idosos arrumo as cadeiras sem ninguém pedir e quando alguém fala “opa, essas aí você não deveria ter tirado do lugar, coloca de volta” calmamente as coloco de volta e pronto, acabou.

no culto de idosos um dos voluntários estava desmontando as mesas e tive coragem de pedir para ele me ensinar a desmontar as mesinhas especiais da igreja, isso parecia trivial demais para um jovem não saber, como se as pessoas nascessem sabendo desmontar mesinhas especiais da igreja, só eu nasci com a deficiência de não saber. odeio que as pessoas não levem em consideração que tenho problemas de coordenação motora e sou péssimo em coisas tão triviais que todos fazem mas, para falar a verdade, sempre descontei esse ódio sem querer e sem perceber cobrando dos outros uma capacidade de raciocínio lógico e ligação dos fatos monstruosa para qualquer pessoa normal, “odeio gente burra”. e sabe o que o senhor voluntário fez, na frente de todo mundo? simplesmente me ensinou. como um pai faz com seu filho pequeno: sem rir dele, sem fazer brincadeiras de ego juvenil, apenas dizendo “faz isso” e “muito bom”.

acho que não tenho problemas em falar isso porque eu e meu pai somos resolvidos agora mas na minha infância meu pai, uma pessoa que já teve todos os trabalhos braçais que você pode imaginar (bóia-fria, cortador de cana, engraxate, pedreiro, o escambau), ficava muito bravo com minha incapacidade de executar trabalhos braçais com qualidade por conta dessa incapacidade de sincronizar meus pensamentos acelerados com minhas ações normais. parecia ter dificuldades em segurar uma colher para comer e minha mãe, como qualquer mãe, tentava superar essa dificuldade para mim. meu pai ficava revoltado, “ele precisa aprender a ser homem”. bom, eu diria até isso foi inevitável e foi a melhor maneira de acontecer, mas a essência dessa situação é uma marca que ficou em mim. como disse, hoje eu e meu pai somos resolvidos, meu pai sabe o que não faço por frescura e o que não faço por deficiência, nunca vi meu pai me recomendando não encarar um problema de frente e sim contorná-lo mas quando se trata de habilidades mecânicas ele o faz; eu, hoje, discordo dele, tenho certeza que sou capaz de alcançar uma sintonia de corpo com alma lutando, optei por treinar kung fu num dojô tradicional porque sei que eles levam isso em consideração, mas foi muito especial para mim ver ele reconhecendo que isso é só uma limitação e não uma falha de caráter. “masculinidade” foi um assunto que gerou muitas brigas em casa na adolescência, inclusive brigas físicas. nós dois, de formas totalmente opostas, somos muito “machos”.

no culto de idosos sinto uma liberdade que não sinto em nenhum outro lugar. o culto de idosos é um playground físico onde executo tudo o que quero sem me sentir pressionado por ninguém. aceito elogios das senhoras sem me sentir constrangido, apenas avermelhando o rosto; também elogio as pessoas sabendo que não estou despertando os sentimentos de ninguém, gosto de elogiar as pessoas, gosto de avisar que o sorriso delas está radiante, que elas se vestiram bem, que elas são bem-vindas, descobrir que para não causar uma verdadeira confusão no universo feminino tenho que dedicar todo o meu desejo de descrição verbal para apenas duas mulheres (minha esposa e minha mãe) foi muito frustrante para mim, é também muito chato saber que elogiar visuais masculinos tenha que vir junto de um pouco de sarcasmo para não causar confusão mas ao menos as palavras de afirmação tenho liberdade de expressar. submissão ao contexto, né? será muito legal ter filhos, elogiá-los e afirmá-los, mas será péssimo quando eles deixarem de acreditar em mim para acreditar em pessoas que ele demorará muito para descobrir que não são mais legais que eu, já que sempre serei o garoto mais legal do mundo.

em dois meses servindo topei me vestir de palhaço para receber famílias na igreja, incluindo a da moça que feri, e foi nesse dia que quebramos o hiato de um ano sem nos falar. também topei servir num bazar sendo que nunca me imaginei em um bazar, “não sei nada de roupa, não sei vender, o que vou fazer lá?”, ajudei a vender e argumentei feito um expert em roupas e acessórios, principalmente femininos (sou meio bicha mas isso o senhor ouvinte já deve ter percebido no segundo capítulo. um bom namorado precisa ser meio bicha e opinar no vestuário da menina até porque, por mais radical que ela seja, ela sempre vai se sentir mais confiante com a aprovação e insegura caso seja reprovada pela pessoa para quem ela, saiba disso ou não, se vestiu), levei mala carregada até carro de cliente.

também já cometi uns erros constrangedores que fariam eu me sentir a pior pessoa do mundo no meio de vários jovens como eu mas lá, por algum motivo, só foquei no problema e em resolvê-lo. primeiro que sim, tive dificuldades de desmontar a mesinha especial da igreja, fiz tudo feito um moleque criado em apartamento mas era muito óbvio que ninguém estava ligando. segundo que tenho dificuldades em segurar as coisas como muitos daqueles idosos têm então uma vez, enchendo copos de suco enfileirados, acabei derrubando alguns deles e fazendo uma bela lambança no chão; até acreditei que a expressão da senhora que me ajudou a limpar era meio brava mas não me afetou em muita coisa. ambos os casos são suficientes para descrever tudo.

me sinto capaz socialmente no culto de idosos. é tão contraditório que me dá raiva. eu sou o centro das atenções ali, sou o mascotinho dos voluntários e também dos próprios membros, “você é o menininho que veio cuidar da gente de novo, não é?”, só que não é pesado estar sendo observado por pessoas que não esperam nada de você. o culto de idosos é um lugar onde o fantástico mundo de expectativas criado sobre mim e o fantástico mundo de ansiedade que crio para me defender desse mundo não existe, um lugar fantástico por ser encantadoramente real.

embora tenha dito que idosos não têm ansiedade, não estão preocupados com o futuro, isso é mentira. melhor dizendo, não é mentira, é que estava falando de um contexto específico da ansiedade que é esse das preocupações com o que você deve fazer e com o que as pessoas querem que você faça. os idosos têm sim muita ansiedade: a deles está relacionada com o que eles já não podem fazer.

muitos idosos são sós e começaram a perceber que estão morrendo. muitos dos cultos são sobre maneiras de vencer esses pensamentos de solidão porque eles não levam a nada, porque eles paralisam e sufocam suas emoções, te fazem fantasiar as coisas mais horrendas. certos idosos são assombrados diariamente pelo sentimento de que foram descartados, de que não possuem mais valor algum porque já não são mais capazes de fazer aquilo que fizeram com tanta qualidade um dia, porque são um estorvo que as outras pessoas precisam cuidar. não são tantos os idosos que têm peito para pensar e falar “cuidei de vocês a vida toda, agora vocês é que tem que cuidar de mim, seus imprestáveis”, muitos deles guardam esses sentimentos dentro do coração e se magoam diariamente ao confundir os pequenos descuidos das pessoas que amam com manifestações do seu desprezo. sei disso porque tenho uma avó que está nesse meio-termo entre ser topetuda e ser sofredora silenciosa, muito recentemente joguei todas as minhas responsabilidades na igreja fora (a igreja não é mais importante que a minha família, só Jesus é) por umas trinta horas, fui visitá-la na nossa querida cidade que na minha cabeça sempre terá dez mil habitantes e o abraço dela me contou tudo o que ela sentiu por eu ter ficado dez meses sem vê-la.

cuidar de idoso não é fácil. é fácil num culto onde todos estão sorrindo e louvando, não quando você percebe que eles desanimaram de tentar frear a língua e estão falando mal de você para cada vizinha que chega na casa deles para tomar um café, nem quando eles estão de mau humor e não sentem mais a pressão de terem bons modos então descarregam em você a sua melhor ofensa. lembro ainda hoje quando uns quinze anos atrás fui brincar com meu tio-avô num dia de mau humor e ele, já sem um bom funcionamento de suas faculdades mentais, me enforcou. é impossível que você, nessa árdua tarefa, não se desgaste, não reclame, seja um perfeito cuidador de idosos e é nessa falha que ele vai se apegar para justificar que está sendo um estorvo pra você.

consegue ver como esses comportamentos são iguaizinhos aos meus? eu, para falar a verdade, também não. há semelhança em alguns pontos, mas a depressão de um idoso é muito mais pura e genuína do que a minha, que não passa de um fruto negativo de um cinismo gentil e até acolhedor (“ninguém nesse mundo presta. por isso você não prestar não faz a menor diferença, eu gosto de você”). minha depressão é o sentimento de falha ao tentar alcançar a superfície social, a depressão de um idoso é o sentimento de perceber que está declinando socialmente, e a maior semelhança entre nós é que ambos estamos mentindo para nós mesmos. e essa minha depressão posso abrir e dizer que vejo milhares de jovens e adultos com ela, ou com fragmentos dela, é epidêmico: existem pessoas que odeiam depressivos, que morrem de medo da depressão, e não percebem que quando Deus me usou para fazê-las se sentirem amadas Deus me usou para entrar em contato com a sua depressão e ficar fazendo companhia para ela. sou bom com isso, sou especialista em carências de solidão. ambos acreditamos com muita facilidade que pessoas que obviamente nos amam e gostam de nós deixaram de gostar por tão pouco, já entreguei pedaços da minha alma para pessoas que até hoje tentam demonstrar para mim que são gratas e dou ênfase apenas ao fato de que é meio constrangedor termos nos afastado, mas e os idosos? o que dizer de pessoas que criaram outras pessoas com tanto carinho, com tanto amor, que sacrificaram décadas que jamais vão retornar por essas pessoas, e de repente se pegam sendo derrotadas por sentimentos que dizem que essas mesmas pessoas não os amam?

a depressão e a solidão de um idoso me constrangem, nós encaramos o mesmo monstro mas chegamos até ele por trilhas da alma totalmente diferentes. não deveria ter conhecido um monstro desses ainda na adolescência, jovens e adultos não deveriam estar encarando monstros desses sendo tão jovens, e o pior: nós estamos sendo derrotados porque isso é realmente mais forte do que nós, observem as taxas de suicídio. é claro que seríamos derrotados. esse é um monstro destinado a pessoas que estão próximas da morte: a morte não é uma caixa-preta para boa parte dos idosos mas com isso não quero dizer que eles são conformados, quero dizer que esses idosos bem-resolvidos já começaram a sentir que isso é só mais uma etapa e encaram com maior naturalidade. também não está relacionado a gostar de morte, ninguém gosta de morte, acho até que esses são os que mais falam “um dia eu vou morrer, mas Deus queira que esteja bem longe porque hoje sou mais uma praia”. eles são maduros, possuem uma história sólida de vida e é daí que vem a força para encarar a morte de frente. todas as filosofias que os intelectuais tentam absorver para lidarem com a morte não têm valor nenhum quando ela vem, assopra “bu” no seu ouvido e te faz lembrar que sua vida está só começando e que você não deveria morrer agora, pensamentos não são concretos, isso é concreto, isso é o que você não tem e um idoso tem: a realização espiritual de missão cumprida no mundo material.

nós, jovens, não sabemos lidar com isso e não deveríamos saber, um jovem normal precisa odiar pensar nisso ao ponto de sentir arrepio, essas conversas de que “a aceitação da morte faz parte da maturidade” são coisa de velho sepulcro caiado. pro inferno com camada de personalidade, isso pareceu legal até o momento em que quis colocar grades na minha canetinha de desenhar almas. a grande verdade sobre os depressivos mórbidos é que eles fingem que aprenderam a lidar com a morte e brincam com isso porque não estão lidando com a verdadeira morte, estão lidando com um personagem que criaram dentro de si para se proteger de lidar com ela já que pensaram nela cedo demais; a princípio cantaria essa música na primeira pessoa do plural, mas estou há quatro anos distante desse personagem ao invés de ficar brincando com ele, porque uma dessas brincadeiras foi longe demais e agora tenho que ficar suportando imagens de mim mesmo me jogando de arranha-céus quando estou neles e o fato de que não posso ser piloto de avião, algo que me assustou muito quando percebi. graças a Deus não quero ser piloto de avião. quando estou lidando com suicidas compulsivos confesso que fico na expectativa pelo momento em que vou poder dizer “então, agora você já está bom o suficiente para ouvir que o nome disso aí é falta de colo”, e quando estou lidando com pessoas que costumam se tornar reféns desses suicidas também fico na expectativa pelo momento onde revelo a elas que seus amigos são na verdade seus filhos e, por fim, para não me sentir muito superior a ninguém, quando estou eu mesmo conversando com uma menina tomo cuidado com essa conversa do colo porque ela é fatal e só sai com desencanto de mãe.

mais fatal que isso, pra mim, só jogar xadrez. mas menina que joga xadrez não presta. desculpa voltar a falar de gatinhas, sou uma estrela em forma de coração, não em formato de caixão.

o que nossa geração está encarando às vezes parece uma maldição, seria uma história muito interessante se fosse uma maldição, “maltratamos os idosos e agora estamos com problemas de idosos”. talvez seja. nada impede que seja. tenho preguiça de pesquisar a respeito, quem sabe numa próxima estrela cadente.

 


não gosto de falar de morte como o elliot fala, sobretudo porque o elliot dá a entender que gosta de morte, que debocha de morte, mas quer saber? não existe um personagem desse mundo que não saia em defesa do elliot. ele não descreve a asfixia espiritual como quem gosta de asfixia espiritual, ele se sujeita a descrever em primeira pessoa o que é estar possuído pela asfixia espiritual. o elliot é o teatro humano em sua forma perfeita, admiro-o tanto quanto rio dele por ter encontrado uma mulher tão maluca quanto ele.

eu, por outro lado, só gosto de cantar.

os idosos gostam de cantar. a minha avó ama cantar músicas dos anos sessenta quando a casa está um silêncio e o louvor dos idosos é o melhor louvor da igreja.

os idosos são cantores e contadores de histórias por excelência. um excelente contador de histórias é uma pessoa divertidíssima e um saco de pessoa, quase que simultaneamente. divertidíssima porque eles são os conversadeiros, eles são os que falam quando há silêncio constrangedor implorando para ser quebrado, são as pessoas que querem reunir todos para contar o que aconteceu e são as pessoas que sempre têm alguma história para contar. sempre. esse também é o motivo pelo qual eles são um saco de pessoa: eles quebram silêncios gostosos, tentam aproximar o que quer ficar distante e acompanhá-los por muito tempo pode cansar sua mente porque eles repetirão a mesma história várias vezes para pessoas diferentes. às vezes para a mesma pessoa.

sou um pouco assim, para falar a verdade. quantas palavras temos nessa estrela cadente, meu ouvinte? tudo isso de história, de conversa sendo jogada fora. só que o idoso é pior: o idoso não faz o esforço mental que eu faço para contar histórias, ele não conta a mesma história com palavras totalmente diferentes, com trechos diferentes que acabou esquecendo da outra vez; a economia provinda da experiência neuronal de um idoso faz com que ele compile essas histórias e apenas as consulte, já compiladas na memória, trazendo uma narrativa que será muito semelhante todas as vezes que ele contar; convivendo com idosos você perceberá que muitos deles contam tudo do mesmo jeito, às vezes até repetindo gestos.

mas, em essência, me identifiquei com eles nisso também. sempre gostei de ouvir as histórias da minha família, minha família é enorme e cheia de pessoas de todos os tipos, nós não temos sobrenome chique mas temos muita história pra contar. é claro que, no entanto, não havia nada como as histórias do meu avô materno (o paterno faleceu quando eu era muito novo. o que ficou para mim não foram suas histórias, foi seu pão caseiro) e agora não há nada como as histórias das minhas avós. quando puxo assunto com os idosos faço o possível para acionar o modo “contador de histórias” deles. quer falar sobre sua semana? conte uma história. quer falar sobre seu passado? conte uma história também. anoto tudo na minha mente, um dia elas aparecerão aqui, seja concretamente ou absorvidas pelas minhas próprias histórias como está acontecendo agora. eles amam contar, eu amo ouvir. é perfeito.

eu entendo o que eles sentem ao me contar histórias, ao contar histórias para outras pessoas. passei esses anos de solidão acumulando histórias complexas dentro de mim, feitas com a minha própria linguagem, incompatíveis com o mundo lá fora e sinto que os efeitos disso nunca passarão. quando as pessoas me dão atenção para contar algo da minha vida elas já precisam se preparar porque virá em formato de narrativa, tenho dificuldades para contar o que está acontecendo dentro de mim e a saída é pedir para eu contar uma história, o aspecto de Jesus que mais compreendo intimamente é ele ter se comunicado por parábolas e ainda encerrá-las todas com “quem tem ouvidos, ouça!”, ouça, porque ele não estava escrevendo parábolas, ele estava as contando. ele estava as cantando. minhas conversas são verdadeiros textos, garanto que você desenvolverá um hábito de leitura ao se tornar uma das seletíssimas pessoas com quem troco mensagens todos os dias, porém garanto que você não fará parte desse grupo por muito tempo porque logo virá minha ansiedade e dirá “para de encher o saco dessa pessoa, vai” e eu realmente pararei.

me sinto solitário sabendo que todas as pessoas ao meu redor convivem com uma versão superficial minha, não que eu seja tão diferente dos outros jovens nesse sentido, não sou mais profundo que as outras pessoas da minha idade, é só que tenho um conhecimento profundo sobre mim mesmo como conseqüência da vida extremamente solitária que tive. os idosos sim são obrigados a oferecer uma versão superficial deles se formos levar em conta apenas as palavras, não é qualquer um que entende que aqueles rostos enrugados são por si só uma representação visual de uma história profunda de vida. o mesmo pode se dizer para os cabelos brancos ou quaisquer outras marcas físicas de uma idade avançada. o simples semblante de um idoso já traz tudo o que é necessário para você entender que deve respeitá-lo.

queria que as pessoas entendessem que, se sou capaz de fazer essa infinidade de expressões e trocá-las com tamanha rapidez, se tenho tantos tons de voz diferentes e tanta facilidade para forjar emoções com eles, é porque precisei de tudo isso para me compreender e sobreviver aos meus próprios sentimentos num mundo isolado onde ninguém mais era capaz de me alcançar. é por perceber de onde vêm as habilidades e as deficiências das pessoas que sou um bom observador de intenções ocultas, pena que uma porta para os sinais sociais mais óbvios. hoje mesmo tomei uma bronca por não ter notado que estava atrapalhando uma aula ao passá-la lendo no celular. ufa! consegui não tornar isso uma história de dez mil palavras.

 


estar no culto de idosos foi o que deu consistência para essa estrela cadente. ela é uma estrela muito consistente, sabia? ao contrário da “the runner”, a the runner é uma verdadeira anomalia. não, não é que eu não goste dela, eu a amo, embora o ouvinte provavelmente não tenha motivos para senti-la muito bem porque é de um tempo onde minha comunicação com o universo exterior era bem precária. é que ela é essencialmente uma busca por identidade, uma busca por aprovação. ela está experimentando vários contextos e tentando descobrir qual é o seu, se sai bem em muitos deles mas logo interrompe por se sentir incapaz e começa outra aventura. isso que estamos falando de uma segunda versão onde a corrida é consistente, a corrida é a parte real da música, a corrida é viva. na primeira ela era apenas um simulacro, não tinha sequer uma largada, as notas estavam todas erradas, elas estavam desesperadas querendo sair de mim e não importava como saísse. ainda tenho essa versão aqui e gosto de tê-la comigo para lembrar como eu era no começo disso tudo.

a primeira música que cantei.
a primeira vez que eu, heart-shaped star, existi.

isso significa muito pra mim.

significa muito pra mim poder parar de correr das pessoas. poder parar de correr de mim mesmo. esse tempo todo vivi aprisionado por negligenciar o meu melhor, por medo do meu melhor, não queria que as pessoas exigissem de mim mais do que eu era capaz de suportar mas todas as pessoas sabem o que sou capaz de suportar, quem não sabe mais sou eu. meus pais dizem que estou há anos aproveitando dez por cento do que tenho em mãos, meus amigos mais íntimos riem de algumas fraquezas que conto porque sabem que são falsas, meu irmão uma vez comentou que é engraçado como sempre acredito que sou o pior em tudo, as meninas falam pra eu parar de fingir quando conto sentimentos que acredito serem muito sérios, pessoas não suportam quando venho com a conversa de que sou burro. eles têm razão, não eu. talvez eu seja um bom analista de sistemas, talvez seja uma boa música, talvez saiba mesmo muita coisa para uma pessoa da minha idade no meu contexto e tenha que começar a tirar proveito disso ao invés de só sofrer a parte ruim das conseqüências, talvez seja mesmo muito amável, talvez seja mesmo um bom amante. talvez, se me permitir ser mais seguro, se me permitir fazer tudo o que está dentro do meu universo interior como acontece no culto de idosos, o resultado seja um incêndio difícil ou até impossível de controlar mas seja meu verdadeiro “eu” acontecendo e não essa pequena vela que já está se apagando.

talvez? é exatamente isso. tenho muito medo de falar “vai dar certo” pra mim mesmo. para os outros é fácil, pra mim é sempre “pode ser que dê”. não! eu sei que vai dar. no fundo sei, se não não estaria nem tentando. maior parte das coisas costumo tentar por saber que consigo e desistir por esquecer que consigo ou por descobrir que não quero. nesses dias estou tendo que fazer algo que não sei se vai dar certo e percebi que nunca passei por isso antes, maior parte das vezes fui um jogador de xadrez perdendo por medo de mexer as peças. nos meus últimos jogos percebi que perdi porque precisava perder, também nunca tinha passado por isso antes, sempre perdi acreditando que a razão era ser ruim. foi satisfatório, no xadrez da resolução de conflitos do meu amigo, mexer as peças e encurralá-lo antes de falar “brincadeirinha! estou abaixando minhas defesas. faça seu xeque-mate”. foi satisfatório deixar uma bomba-relógio na casa da Miss Ansiedade dizendo que, sim, eu sabia de tudo e mais um pouco e só não ganhei porque não coloquei nenhuma peça minha no tabuleiro. sim, fez bem pro meu ego e meu ego é enorme, não tenho por que me esforçar para matá-lo mais do que as pessoas do meu contexto, a juventude é uma guerra de egos e não sou obrigado a perder todas as batalhas. quero que seja assim, tudo muito claro, ao invés de fazer pessoas que gosto sofrerem com a insegurança de não saberem se descobri suas tramóias ou não.

prefiro que as pessoas me chamem de egocêntrico por aquilo que conquistei com meu ego, não por aquilo que sofri com meu ego. Deus não odeia o ego, ele também o criou. o livre-arbítrio passa pelo ego, o homem precisa ter vontade própria de adorar a Deus, precisa se orgulhar de ser uma boa obra de Deus porque o próprio Deus disse que o homem era bom, muito bom. é claro, obviamente claro, que isso é perigoso. só que suprimir o ego é suprimir a própria masculinidade. o homem foi feito para correr riscos, foi feito para desejar algo e traçar planos que nunca serão cem por cento infalíveis para alcançar aquilo, e essa conversa é um saco, coisa de blog de macho meio metido a julian marias e não vou estendê-la. as mulheres sempre terão prazer em suprimir o ego masculino, a tendência é que isso vá se tornando terapêutico com o tempo, só não tente empurrar isso ao coração de um garoto que conheceu o perigo de um salto agulha aos cinco. seja gentil, generosa e paciente, ou só Deus sabe a altura do salto que vai andar sobre você e quão sonora e assombrosa será a gargalhada da bruxa que mora no coração desse garoto para protegê-lo.

eu, heart-shaped star, sempre fui impedido de sentir orgulho de quem eu era, sempre fui impedido de expressar tudo o que havia dentro de mim, sempre contei o tanto de “eu” que escrevia nas minhas frases. isso não é mais uma opressão externa, isso foi colocado dentro de mim. não sei viver de outra forma mas, agora que o faraó me botou aqui para governar o egito, vou aprender. pouco me importa a ansiedade monstruosa que vem com tanto poder. podem esperar o melhor, vocês nem mesmo estão na minha cabeça para saberem o que é o melhor.

o melhor vai chocar vocês.

 


ladies and gentleman, bem-vindos ao show de alguém que não é só um rockstar, é um heart-shaped star. para que suas estrelas nunca deixem de brilhar é melhor que parem de correr de vocês mesmos, garotinhos lindos.

Você leu um capítulo da série heartshaped star - estrela cadente

Você leu um capítulo da série estrela cadente vii

escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star