Série: heartshaped star - estrela cadente / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / heart-shaped star: estrela cadente x

iv-xvi. Evangelista

16 de dezembro de 2017

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados iv: acendendo as luzes da cidade

 

uma história paralela dessa época é a Evangelista. não me recordo se apareceu no segundo ano ou no terceiro, ela era uma crente muito fofa e simpática com quem eu detestava discutir religião por esse exato motivo. eu não queria lembrá-la de que ela era uma pessoa horrível, só queria ficar em paz, só queria que ela não falasse de Deus pra mim porque ela era só uma menina da igreja e eu era um garoto revoltado filho de líderes que já tinha lido a bíblia inteira e provado por A+B que Deus não existia, que uma grande parcela da humanidade era imbecil e várias outras idéias de um soberbo intelectual de quinze ou dezesseis anos. ela gostava de mim, talvez com alguma intenção romântica, talvez houvesse um ponto de ignição não muito difícil pra nós dois, mas isso não importa.

acho que a Evangelista foi o maior exemplo de amor que tive fora de casa nesses anos onde fui uma pessoa sombria. ela não era dura comigo ao me falar de Deus, ela era calma ao ponto de irritar os outros alunos, “ele já está brincando com você, e você aí perdendo tempo dando pérolas aos porcos!”. eles tinham razão, mas eu gostava de provocá-la não para desmontar sua fé, mas porque uma parte de mim passou a gostar de ouvi-la falando de Deus. ela não falava de Deus como alguém que queria me converter para somar números na igreja, para aumentar o dízimo, para mostrar aos outros que era uma boa evangelista e todas essas coisas que eu, por ter dez anos de igreja com a minha capacidade exacerbada de observação, já tinha visto. ela queria que eu fosse salvo, não num sentido superficial mas profundo dessa palavra.

ela se importava comigo. ela foi… cristã de verdade comigo. como eu gosto de ser evangelizando as pessoas ainda hoje, sete anos depois. ela foi a presença de Deus na minha vida naquela escola.

não me recordo dela como uma menina totalmente boazinha, santinha e se ela fosse isso eu não teria dado ouvidos porque era muito forte para mim não acreditar que alguém era bom. ela tinha falhas, às vezes fofocava de outras meninas, às vezes achava as coisas ridículo, mas isso não importava pra ela e depois de algum tempo parou de importar pra mim também. é engraçado falar essa frase aqui porque sou heart-shaped star, o super-romântico, e isso dificilmente deveria vir num contexto desse no meu caso, mas essa frase é importante: ela me amou de verdade.

quero que saibam uma coisa sobre mim: eu amo as pessoas. eu amo muito as pessoas. e a minha forma de amar não é uma energia que descarrego nelas, uma overdose de carinho, embora eu não tenha nada contra e acredite plenamente que esse amor intenso também é amor e um dia poderei conhecê-lo. eu amo as pessoas sendo intensamente sensível à sua história de vida, sensível aos seus pecados, sensível ao seu sofrimento: ninguém precisa ter medo de se abrir comigo, você pode se tornar uma história que escreverei mas jamais ficarei com nojo de você, com raiva de você; pegue a personagem mais cruel dessa história e a convide para abrir seu coração pra mim, eu seria incapaz de sentir algo que não fosse compaixão porque entendo tanto a dor de fazer coisas erradas por não saber que são erradas (mais da metade das minhas perversões eu absorvi tão naturalmente na infância que não sabia que causava um verdadeiro caos no ambiente ao praticar) quanto a dor de fazer coisas erradas sabendo que são erradas mas não tendo controle algum sobre isso (essa foi a dor que mais senti na minha vida. eu sou um imoral tendo sido preparado para ser um fariseu. não entendo como é mistério entre teólogos que é isso que significa o “espinho na carne” de paulo), essa compaixão é mais forte que as feridas no meu coração, a pessoa que mais me destruiu intencionalmente foi justificada dentro de mim e eu só não passo perto porque preciso protegê-lo. eu fui convocado por Deus para compreender a cruz dos outros, para não condená-los, o que é engraçado porque na adolescência eu pratiquei tiro-ao-alvo com os pecados de todo mundo. bem, é claro que a maldição se tornaria em bênção, isso não é mistério.

mas o que isso tudo tem a ver com a Evangelista? tem a ver que ela praticou comigo o meu tipo de amor. eu estava lá, esbravejando, cuspindo ódio do universo. ela sentaria ao meu lado e diria “você é um menino tão bom, sabia?” e me provava, lembrando que eu ajudava as pessoas a aprenderem a matéria embora não passasse cola porque não sabia passar, que eu era sensível, que eu era inteligente, e ainda me lembrava que eu tinha uma atitude muito cristã então era difícil entender como eu era ateu. de fato ela tinha razão. qualquer um com um pouco de profundidade conseguia perceber que, no meu coração, eu não estava descrente de Deus, eu estava magoado com Deus por ter me criado. ela não me via como um monstro, ela me via como um cãozinho ferido (quem leu o terceiro capítulo da sétima estrela entende a precisão disso). ela me via como Deus, de fato, me via.

não tivemos nenhum episódio muito intenso, talvez contem as vezes que ela insistiu para eu ir na escola num sábado de manhã fazer um curso de redação para vestibular e eu fui. só iam algumas meninas e eu. ela não perdeu uma aula nem eu (posso estar mentindo aqui). ela não negava em nenhum momento que gostava de me ver sábado de manhã com poucas pessoas, que eu era uma pessoa engraçada porque quanto menos pessoas estavam ao meu redor mais dócil eu era. menos pessoas significavam menos motivos para me defender, e estar próximo dela em especial fazia eu me sentir mais à vontade para manifestar meus atributos positivos porque ela realmente achava bonito, não idiota, como a Carinha de Anjo achava. ela também ficava muito mais bonita e fofa nos vestidinhos que usava nas manhãs de sábado, que não eram vestidinhos floridos, eram vestidinhos bem “de crente” mas muito legais porque tinham um tamanho normal, não eram aquela coisa apertada que dá à mulher a forma de um abajur.

ela era uma ótima menina, não daríamos certo juntos porque eu não daria certo com ninguém daquela escola. aquele lugar foi uma realidade paralela que vivi, tanto por eu ser uma pessoa completamente fora-de-mim entre os quatorze e os dezesseis quanto porque aquelas pessoas não tinham elo de ligação nenhum comigo, nós não tínhamos nada em comum, nossas preocupações eram diferentes, nossos anseios eram diferentes, tudo era diferente. gostar uns dos outros nós nos gostamos demais, todo esse ateísmo não foi capaz de criar uma barreira que os impediu de gostar de mim, poucas pessoas se irritavam tanto ao ponto de me odiarem por isso, e eu os achava divertidíssimos e participei de muita coisa que não tinha nada a ver comigo amando participar. eu tenho memórias muito boas do ensino médio, essas coisas terríveis só estão se destacando porque estou dando destaque a elas, porque elas precisam ser a ênfase da história para mostrar de onde saem as barreiras do meu coração. como foi que me tornei um destruidor de corações, filho dos céus estrelados.

eu posso falar de mais coisa ruim também, porque não falei o suficiente. eu falei dos quatorze, eu falei dos quinze, mas não falei dos dezesseis. a Carinha de Anjo me fez descobrir o que tinha de bom num disco do strokes, do maxïmo park, do kaiser chiefs, do we are scientists, do futureheads, do the enemy e outras milhares de bandas de indie rock pós-anos 2000 que conheci e fui perito mas principalmente do strokes e do maxïmo park porque até hoje eu amo essas discografias. eu misturei tudo na minha cabeça e no meu coração, todo esse abuso emocional se aliou às minhas crises existenciais e à minha natureza pecaminosa odiável e fez com que eu me desligasse de mim, com que eu me tornasse uma pessoa dedicada à observação e contemplação negativa das coisas. toda essa preparação de anos de dissociação finalmente surtiu o resultado final: eu me tornei uma pessoa de múltiplas personalidades, já era mais profundo que um ódio à minha identidade sexual, já não era mais ódio. era tudo. meus cadernos tinham letras diferentes, algumas escritas com força e outras cheias de suavidade e delicadeza, havia comunicação entre as pessoas que escreviam e eu não entendia mais nada e não tinha por que me importar com isso já que tudo aconteceu muito devagar, passo-a-passo, com naturalidade, me soava doentio de maneira debochada (the strokes — the way it is).

 

Você leu um capítulo da série heartshaped star - estrela cadente

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escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star