Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

v-vi. Miss Maldade vs. Olhos de Cristal

12 de maio de 2018

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v
anatomia da alma frágil: mapa geográfico da corrupção e perversão humana [ou: heartshaped star — heartshaped star]

a progressiva que fiz, então, começou a surtir efeito em mim. eu era totalmente inerte aos meus próprios sentimentos, mas ter aquela franja de rockstar mexeu um pouco com as minhas reações. eu tinha estilo agora. mexia a cabeça e a franja ia lá pra cima, depois descia de novo, eu podia esconder um de meus olhos, isso mudou algumas coisas na minha “dinâmica” de interação com as pessoas embora eu não tenha percebido acontecer.

foi nessa época que comecei a flertar com meninas no ônibus só trocando olhares. quase me apaixonei por uma da linha que ia para minha casa porque todos os dias nos olhávamos muito, do terminal de ônibus ao ponto da casa dela. sou uma pessoa de expressões exageradas, meus olhos vão de um canto a outro sem problemas sem eu nem mexer a cabeça. a minha auto-estima baixa, no entanto, fazia eu acreditar que era tudo coisa da minha cabeça, que as meninas não estavam olhando de volta, que elas não faziam movimentos para chamar minha atenção, que elas sorriam como uma reação natural até assustada ou para rir de mim. eu inventava qualquer coisa para justificar não estar sendo correspondido, então flertávamos e flertávamos e flertávamos e nada acontecia, e nem aconteceria porque na verdade eu não tinha interesse nenhum em namorar nenhuma daquelas meninas. aí, meu ouvinte, posso dizer que comecei a errar de verdade na história: essas meninas do ônibus, talvez, foram as primeiras meninas com quem brinquei com o coração. com quem flertei sem ter intenção alguma de passar daquilo, mas nunca contei a elas que não tinha intenção alguma de passar daquilo e, mesmo se fosse correspondido, não acreditava que flertes em ônibus dariam em alguma coisa. só hoje tenho maturidade e responsabilidade para entender que o mundo funciona de uma maneira onde, se quiser, chego num terminal de ônibus, passo um olhar fatal para uma moça fragilizada e em questão de vinte minutos somos dois desconhecidos no banheiro fazendo sexo. só hoje sei que o mundo pode funcionar assim se eu for canalha o suficiente, antigamente tenho certeza que com um pouquinho mais de esforço eu poderia acreditar em unicórnios.

anos atrás, lembre-se (não sei se do capítulo anterior da noite ou da sétima estrela), passei por um episódio horrendo de assédio no ônibus e deixei acontecer acreditando que a pessoa não estava percebendo que estava fazendo isso. estava habituado a um mundo onde era natural as pessoas me ferirem emocional e sexualmente então sempre aceitei que isso acontecesse comigo.

eu conheci a Miss Maldade mais ou menos nessa época. num evento para solteiros da igreja onde esbarrei nela e ficamos conversando por muito tempo. não passou pela minha cabeça que conversas em eventos de solteiros entre duas pessoas de sexos opostos eram para ser marcantes e para ela foi (pra mim também, né? estou a contando agora! só não sei se considero as minhas próprias memórias porque, na necessidade de contar uma boa história, sou capaz de lembrar de todos os detalhes da minha vida), ela foi a primeira pessoa a descobrir que eu escrevia romances e revelei isso porque ela me contou que gostava de filmes de romance, ela estava linda e femme fatale nesse evento (raios, ela é a Miss Maldade). conversei com ela e algumas outras meninas nesse evento, embora só lembre dela e de uma outra a quem não darei nome de personagem mas aparecerá em outra história novamente.

honestamente? a Miss Maldade ficou caidinha por mim já aí. não foi depois, não foi no evento especial do abraço, não foi nos rolês onde ela brotou do nada. foi aí. na nossa primeira vez. pior ainda: na mesma noite do fim do evento achei que deveria procurá-la no facebook e adicioná-la, uma menina que tinha visto anteriormente uma ou duas vezes, com quem conversei bastante… do nada. e ela aceitou muito, mas muito rapidamente. eu estava completamente calado no coração do antigo narrador, poderia gritar em seu coração que ninguém me ouviria. havia uma mulher de cabelos negros e longos, olhos castanhos e batom claro segurando um molho de chaves da prisão onde eu estava e ela não abriria essa porta por nada. ela dizia “shhhh… não é a hora, meu garotinho lindo” e sorria pra mim, me fazia cafuné até eu acalmar e eu, pobre de mim, sempre acalmava. não era justo, eu sabia que aquela mulher estava interessada em mim, eu sabia o que significavam as palavras, gestos e expressões dela. e eu… não podia falar nada.

outra coisa importante é que as pessoas que tinham a obrigação de me contar sobre quem ficava afim de mim nunca contavam (não, elas não tinham a obrigação de me contar que pessoas estavam afim de mim, tinham a obrigação de me contar sobre) e, se hoje sei que elas deveriam ter contado ou feito algo, na época eu não entendia que elas deveriam. não sei o que as pessoas disseram de mim para a Miss Maldade, não sei que tipo de expectativa alimentaram ou removeram dela, mas não foi saudável, foi confuso, nós passamos quatro meses conversando e desconversando até eu partir seu coração parando de falar com ela por ter certeza absoluta de que ela não me suportava mais. nem numa situação de inércia total de ambas as pessoas isso poderia ter acontecido, algo “externo” deu errado, houveram tentativas de comunicação com terceiros e terceiros fizeram alguma besteira aí. nem que essa besteira tenha sido não me dar uma bronca falando “olá, tem essa menina e ela está se derretendo por você, mas você parece muito confuso e inábil e sinceramente não há nada de bom que possa sair de um relacionamento entre vocês. você poderia, por favor, parar de nutrir os sentimentos dela?”, eu não sei se entenderia mas obedeceria, se obedeci a Deus num caso tão violento quanto o da Moça da Carta de Amor seria muito mais fácil obedecer uma autoridade no caso da Miss Maldade. aliás eu nunca, nunca, nunca, tinha ouvido falar disso, de “nutrir sentimentos”; não importava que eu tivesse vinte-e-dois anos, as coisas estavam dando muito errado e eu obviamente não estava percebendo, eu precisava ter sido chamado num canto e ter ouvido sobre como as coisas funcionam.

eu parti o seu coração e ela sentiu muito ódio de mim. ódio explícito, ódio claro, ódio declarado. ela fechava a cara quando me via, pisava duro no chão, por um tempo parou de freqüentar o mesmo lugar que eu, e na hora que percebi esse ódio finalmente entendi que algo de errado tinha acontecido. como disse no capítulo anterior, a minha intimidade é machucada, violada, eu não consigo sentir o amor das pessoas por mim mas a partir do momento em que o amor se torna ódio tudo passa a fazer sentido.

agora se coloque no lugar de uma pessoa vítima dessa situação: como ela poderia entender o meu lado? é impossível. me sinto horrível quando essas coisas acontecem porque explicar como é na minha cabeça e no meu coração é impossível a uma pessoa que se machucou por minha causa. ela já não quer entender, imagina se teria a disposição para entender e acreditar em algo tão profundo e complexo? pior ainda, eu não tinha esse diagnóstico que tenho hoje. hoje sei diversas coisas sobre mim mesmo, mas nessa época sequer sabia que tinha perdido a inocência ainda no jardim de infância, não sabia que todos esses problemas eram fruto de uma dor que começou aí.

até porque, oh céus, eu não sabia da existência desses problemas até então. foi com a Miss Maldade que entendi, pela primeira vez, que havia algo de errado comigo.

pior ainda: estamos falando de duas pessoas aqui, não só da Miss Maldade. temos então essa amiga minha, que conheci assim que voltei à igreja e que não fosse o fato de sempre freqüentarmos o mesmo grupo de amigos nós nunca teríamos nos falado. ela era quieta, eu era quieto. mas, assim que começamos a nos falar, nos demos muito bem. nunca me imaginei com ela porque ela era mais velha que eu, maior que eu e parecia uma mulher adulta, enquanto sempre me vi como uma criança de quinze ou dezesseis anos. parecia bem mais apropriado pra mim pessoas que tinham cara de quinze ou dezesseis anos e não uma mulher que, independente de como você olhasse pra ela, você sabia que estava nos seus vinte-e-quatro anos.

para ser sincero me expressei dessa forma para que o ouvinte note que há mais um elemento grave aí, a respeito da minha auto-imagem e de como minha auto-imagem afetava a minha maneira de enxergar os outros porque ela não era maior que eu, nós tínhamos a mesma altura. eu a enxergava maior que eu. ela era grande, não alta nem gorda, apenas “grande”, por algum motivo eu me sentia como se coubesse na palma da sua mão, eu não tinha senso de proporção quando estava perto dela.

essa foi uma das amizades femininas simples e sinceras que cultivei na igreja durante esse tempo. essa foi, talvez, a única amizade sincera que tive por uma mulher que eu sabia que poderia criar algum sentimento durante esse tempo. a minha amizade com a Miss Bondade foi difícil, um malabarismo com facas, os momentos juntos eram tranqüilos mas assim que eu era deixado sozinho com meus pensamentos e sentimentos tudo se complicava. eu odiava isso, também nunca consegui sequer arranhar a superfície desse assunto que eu precisava tocar porque muitas vezes me consumia e mais de uma vez elaborei planos mirabolantes e horrendos de aparecer na casa dela do nada e descarregar tudo. também não foi um sentimento contínuo e perseverante, logo após essas crises de querer descarregar tudo eu, para não surtar, desistia e simplesmente me fechava para ela, ficava frustrado e me focava em outras coisas e algumas delas não eram nada boas. eu me machuquei muito sozinho e ninguém me ajudava, meus pais em algum momento passaram a acreditar que ela estava brincando com os meus sentimentos e eu ficava com raiva só de ouvir essa hipótese porque não fazia sentido nenhum, noventa e nove por cento das pessoas não tinham como me ajudar mas a que tinha não sabia lidar comigo e gostava dela também então não pareceu tão grave me deixar sofrendo. não que eu odeie essa pessoa, ela me ajudou com muitas outras coisas boas que eu precisava até bem mais que isso, mas… bem, ainda chegaremos lá.

a Miss Maldade também foi uma amizade estranha porque ela mexia com a minha cabeça. não posso dizer que cheguei, em algum momento, a gostar dela, mas as coisas que ela fazia me deixavam inquieto, eu sempre estava me perguntando se o que ela fez significava algo ou não. sempre tinha uma dúvida em mim, um dileminha para eu ficar decifrando. ela me estressou bastante num sentido “bom” de estressar: não vejo nada de errado nisso desde que a intenção seja boa, ser bom em instigar a pessoa que deseja é uma habilidade, o problema é aliar isso a uma falta de caráter (você só quer usar a outra pessoa) ou passar pela infeliz situação de desejar uma pessoa sem caráter (a outra pessoa vai cair por carência e, quando “cair na real”, vai romper o compromisso). eu quase me encaixo nessa segunda situação, não fosse o fato de que nunca rompi um compromisso porque nunca criei o compromisso, as pessoas que se sentem defraudadas por mim falharam e podem gritar aos quatro cantos que não mas sabem que falharam em “me fisgar”.

já a Olhos de Cristal foi uma amizade maravilhosa, pura, natural. não me sentia na obrigação de conversar com ela, então só conversávamos por mensagem de vez em quando assim que acontecia algo interessante em que eu lembrava dela ou ela de mim e pronto, de resto era porque saíamos juntos, as coisas aconteciam por lá e ficavam por lá. eu era o homem mais novo do meu círculo de amigos, todas as minhas amigas exceto a Miss Bondade e ela eram cinco ou mais anos mais velhas que eu (na verdade eu não sabia que uma delas era bem mais velha que eu, descobri num assunto sem relação alguma com isso e foi meio frustrante pra mim. de uma maneira engraçada, não triste. nossa amizade era boa também, mas ela era bem gatinha e eu sempre pensei “por que não?”. finalmente respondi essa pergunta nesse dia), era assim que funcionava com todo mundo. foi um círculo muito saudável mas sem conflitos, sem dilemas, sem aventuras e eu estava emocionalmente triste, congelado e frustrado.

a primeira vez que ela “mexeu comigo” foi quando testei uma progressiva ainda mais exagerada e todo mundo tirou a noite para rir de mim, enquanto ela ficou o tempo todo defendendo que tinha achado legal. aquelas brincadeiras não estavam me afetando porque eu estava satisfeito com o cabelo, era a parte “diferente”, que chamava a atenção, sempre me achei horrível então tentar derrubar uma pessoa que estava no chão era uma tarefa muito difícil. mas a defesa chamou minha atenção. fiquei envergonhado, sem-graça, sem saber muito bem o que dizer. nunca tinha passado pela situação de alguém voluntariamente defender a minha estética e foi uma sensação bizarra. uma coisa é você fazer uma piada auto-depreciativa sobre ser feio (piada que, pra mim, era só uma maneira de dizer a verdade) e alguém falar “ah… não é bem assim”, outra é uma pessoa ir contra a maré pra dizer que você está legal sem você pedir por isso.

às vezes ela fez isso por pena ou para reparação de danos, mas tanto faz. também não estou dizendo que “criei sentimentos” por ela aí, a única coisa sentimental que aconteceu foi pensar como ela era uma pessoa muito mais sensível que a menina que eu gostava, como ela seria uma namorada melhor que a menina que eu gostava. foi um momento de reviver as cenas Carinha de Anjo vs. Evangelista, do meu ensino médio.

 

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star