Série: heartshaped star - estrela cadente / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / heart-shaped star: estrela cadente x

iv-xv. Carinha de Anjo

16 de dezembro de 2017

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados iv: acendendo as luzes da cidade

 

na escola eu tinha certeza absoluta de que era um completo incapaz, então decidi não perder tempo com as meninas. também não ficaria prestando atenção em professora porque me sentiria mal demais fantasiando amiga da minha mãe.

o ensino médio, dos meus quatorze aos meus dezesseis, é um bloco só. é a mesma menina nos três anos, embora várias personagens interessantes tenham passado pelo meio. o nome da personagem do meu ensino médio é Carinha de Anjo e ela é o epicentro da noite na pequena londres, ela define a minha identidade relacional e está por trás de todos os problemas da noite, embora não seja a vilã da noite porque a vilã da noite é uma personagem idêntica a ela. pelo nome você consegue imaginar, não consegue?

a minha turma do ensino médio foi muito semelhante nos três anos. não entraram assim tantas pessoas novas entre um ano e outro e não saíram muitas pessoas. no primeiro ano passei uma semana literalmente sem abrir a boca na escola porque já estava me tornando um projeto de sociopata, eu não queria me relacionar com as pessoas, eu… não consigo me lembrar como me sentia mas não era normal, eu simplesmente me achava incapaz de conversar com eles. se não me engano não fui a pessoa que puxou assunto, um menino muito simpático da sala veio me trazer para o grupo dele e sugerir que eu deveria fazer parte, não relutei muito embora houvessem forças dentro de mim dizendo que eu deveria ficar sozinho.

uma moça muito simpática desse grupo ficou afim de mim mas eu, como disse, não perderia tempo com isso. não queria saber de sala me empurrando pra menina porque a última vez que isso tinha acontecido tinha sido bastante frustrante, então dei um jeito de cortar esse assunto o mais rápido possível. por outro lado a minha sala tinha a Carinha de Anjo e, na época, ela parecia a coisinha mais linda do mundo, o que significa… exatamente isso, leitor! que mantive uma quantidade impressionante de distância dela e de todas as amigas dela. eu era daquele cantinho simpático e engraçado da sala, não me misturaria com essas patricinhas, nem com os garotos legais, nem com as funkeiras, nem com os drogados. criei essa parede que na verdade não existia porque só eu era o novato naquela sala, aquela escola tinha uma história antes de mim e todos aqueles alunos tinham feito parte dela, se conheciam, tinham relacionamentos uns com os outros. eles não eram gangues fechadas, apenas estavam mais próximos dos que moravam mais perto de suas casas ou dos que tinham mais afinidade.

no primeiro semestre, pra falar a verdade, tive uma paixonite por outra menina embora já achasse a Carinha de Anjo muito bonita. essa outra menina era uma baixinha brava e briguenta que se sentia bastante rejeitada na sala porque, por levar tudo muito a sério, as pessoas pegavam pesado na brincadeira com ela e ela acabava explodindo. ela também tinha condições financeiras ainda mais baixas que o resto do pessoal. ou melhor: não é que ela era mais pobre (talvez tivesse sido no passado), ela tinha uma consciência financeira incrível despertada e valorizava muito o dinheiro do seu pai então quando tocava nesse assunto as pessoas tinham uma visão meio exagerada dela. ela era de fato uma pessoa exagerada, meio intensa demais nas palavras. seria uma boa advogada. posso contar, ao menos, que hoje ela é uma pessoa muito mais inteligente que todos os outros da minha sala, que ela sabia o que queria para sua vida e algumas coisas ela já conseguiu, outras está no caminho para conseguir, mas ela não deixou nada para trás.

eu… fiquei atraído por ela por bastante tempo. primeiro semestre todo, como disse. infelizmente em algum momento minha mente me pregou uma peça bem legal e me fez ter um sonho extremamente doentio com ela que me deixou por no mínimo um mês sem conseguir olhar em sua cara sem lembrar de tudo aquilo. mantive uma amizade com ela durante os três anos, até hoje esbarro nela de vez em quando porque esse colégio fica perto de casa então esbarro em todas essas pessoas de vez em quando, e graças a Deus ela está quase entrando num casamento e eu sou apenas heart-shaped star.

o primeiro ano foi assim. eu conhecendo o pessoal, não fazendo muita besteira, ocasionalmente botando pra fora meu rockstar rebelde mas nada muito além disso. uma vez briguei com um colega repetente, peguei meio pesado nas palavras e ele me enforcou mas não foi nada demais. eu também estava me envolvendo com umas filosofias de gente tonta, uma vez fui discutir ayn rand com a minha mãe enquanto ela fazia almoço, minhas mãozinhas fechadas inquietas de dick vigarista me sentindo todo cheio de mim, imaginando sua reação após ter suas convicções todas desmontadas ao descobrir que todas as pessoas do mundo agem por egoísmo, e tudo o que ela fez foi falar “nossa, vai dormir moleque” e continuar cortando a cebola.

o segundo ano, então, foi o começo do desastre. dentro e fora da escola. nos meus quinze anos o meu fascínio pela morte começou a se manifestar fisicamente, eu passei a sentir um ódio tão grande por mim mesmo que comecei a me cortar sem ninguém ver, a me acertar socos na cara sem ninguém ver. descobri aquelas bandas de groove metal mais aceleradas e cheias de niilismo e elas grudaram em mim feito ímã em geladeira, eu me apaixonei pelo pantera, pelo machine head e pelo devildriver e os ouvia muito alto no meu mp3 player, tão alto que mesmo com o fone de ouvido a sala inteira ouvia junto comigo, e às vezes ficava tão possesso que começava a fazer uns headbangs em sala de aula mesmo. uma vez todo mundo prestou atenção em mim “performando” the art of shredding na sala de aula e ficou assustado ao mesmo tempo em que descrente que alguém poderia ser tão ridículo. eu aprendi a gostar de death metal, principalmente os melódicos como children of bodom, at the gates e soilwork, e estava perfurando a parede do black metal com uma broquinha, com uma ajudinha de duas bandas de black metal crente que tinha conhecido aos quatorze anos na minha desesperada tentativa farisaica de resistir ao ateísmo, o antestor e o crimson moonlight.

aos quinze desisti de vez dessa minha visão totalmente errada de cristianismo e abracei o ateísmo militante. a sede de desmontar a fé das pessoas. eu queria que as pessoas deixassem de ser hipócritas porque elas acreditavam em um Deus que as rejeitava, o mesmo Deus que me rejeitou, o mesmo Deus que criou algo tão repugnante quanto eu para simplesmente despejar no inferno. não que eu acreditasse nisso, eu era ateu, quem acreditava era eles. eu… não sabia no que acreditava. eu via essas pessoas fazendo mais coisas erradas que eu e, a princípio, era o cara nojento que as avisava que Deus não aprovava aquele tipo de comportamento; só depois de bastante tempo fui notando que isso me tornava insuportável de conviver e decidi ser mais sutil, criar uma barreira: sempre que alguém tentasse me evangelizar eu jogaria um pecado oculto (você nem lembrava que eu tenho essa habilidade de sentir a maldade das pessoas, né, leitor?) na cara dessa pessoa e diria “nooooooossa… você, de todas as pessoas, vindo me falar de Jesus? quem você pensa que é?”, quebraria a pessoa e riria dela engolindo em seco tudo o que tinha me falado. por que vocês acham que é tão fácil pra mim hoje encarar meus próprios pecados olho-no-olho? eu era possuído pelo próprio diabo ao ser evangelizado! e, ao contrário de maioria dos possessos, eu era muito consciente do que fazia e como fazia, o que queria atingir ou quais sentimentos queria despertar na pessoa. o meu espírito é muito, muito forte, a dilatação espiritual que tive ao unir minha capacidade mental a essa prostituição do espírito foi assustadora.

eu era tudo isso… e também uma pessoa muito fofa e sensível.

a Carinha de Anjo descobriu isso porque no segundo ano, por algum motivo, nos aproximamos na sala de aula. meu melhor amigo até então se mudou para outro período porque começou a trabalhar, sobrou meu outro melhor amigo que estava começando a se envolver com drogas. e… a turma de patricinhas, entre elas a Carinha de Anjo, estava próxima de mim na primeira organização do segundo ano. ela era como o seu nome de personagem diz, toda santinha tanto no rosto quanto nas expressões, em nenhum momento ela atacou minha sexualidade e olha que a minha sexualidade era um leque tão aberto naquela época que a pessoa tinha que ser uma verdadeira profissional do sexo para não atacá-la e não me assustar ou passar má impressão.

oh, contei o segredo. mas não quero falar disso nessa história porque tenho uma história melhor para falar do traço mais problemático da sexualidade pervertida. a história não encerrará a noite na pequena londres, mas fará parte do último capítulo e não desse, porque é a história mais importante da noite. é a história onde desmonto o cenário da noite.

a Carinha de Anjo tinha o seguinte problema: ela namorava. estou contando essa história sob esse ponto-de-vista de quem está no futuro então você pode estar criando péssimos pensamentos sobre mim. não que não deva, mas colocar meu caráter em específico em xeque é sempre um erro. é a única coisa minha que presta porque o dia que deixar de prestar a morte vem me buscar, e não adianta tentar derrubá-lo, ele não cai, eu já tentei derrubá-lo de todas as formas mas Deus não deixa.

o fato é que eu achava ela uma moça muito bonita e apaixonante mas eu, em todos os aspectos exceto o sexual, era um menino bonzinho. sim, é verdade, tenho um monstro superdotado dentro da minha cabeça que passei sete correntes diferentes pra segurar e me tornei uma menina, mas nunca deixei de ser bom ouvinte dos sentimentos dos outros, sempre fui capaz de dizer que as coisas vão melhorar em qualquer situação e capaz de repetir isso quantas vezes fosse necessário. essa era a única habilidade minha que tinha permanecido ali, intocada, pura, ingênua. então eu nunca pensaria em deixar esse monstro na minha cabeça alcançá-la, sabia em algum lugar dentro de mim que seria fácil nutrir sentimentos por ela se abrisse minhas portas do coração então era só não abrir, essa situação era ótima porque assim eu não ficaria afim dela e ainda a teria como amiga.

meu Deus, o que eu tinha na cabeça?

na nossa amizade ela passou a me contar as crises que tinha no namoro e eu só sabia aconselhar. meus pais eram experientes no aconselhamento de casais, eles ministram curso de casais e essa foi a época mais intensa deles no ministério porque eles estavam encarando umas turmas muito malucas e o curso acontecia na minha casa. vez ou outra pensava “se estivesse comigo tudo seria diferente” no meio desses aconselhamentos, é claro que pensava, mas nunca externalizei isso.

o que eu não sabia (e meu Deus, como poderia imaginar?) é que ela estava fazendo de propósito, me tornando um escravo emocional através disso. ela descarregava tudo em mim, no meio das aulas mesmo. eu dedicava meu tempo e minha imaginação a ela para propor as soluções e assim ela amarrava não só a minha imaginação como faziam as mulheres que queriam meus olhares como meu coração também, porque eu me envolvia emocionalmente com tudo aquilo. ela me contava uns absurdos e eu só podia sentir raiva do namorado, “como ele é capaz de fazer isso com uma menina tão boa?”, que mundo injusto! por que ela estava com ele e não comigo? eu tenho certeza que faria diferente, como ele cuidava tão mal dela? o meu coração é a minha parte mais frágil e pura, ele sempre será puro, a minha cabeça não consegue atingi-lo, enganá-lo é sempre uma tarefa para quem está do lado de fora então sempre que sinto algo diferente nele hoje em dia percebo que estou sendo vítima de alguém, mas na época ainda não tinha passado por isso. eu era a pessoa mais propícia do mundo a passar por isso. adolescente, revoltado, pervertido, me sentindo um completo lixo sem valor. estar cuidando de uma menina como aquela mexia muito comigo às vezes tão exageradamente que eu colocava meu valor ali. foi o maior abuso de carência da minha vida porque foi o único onde eu não sabia o que estava acontecendo. todos os outros casos após esse eu joguei uma personalidade alternativa de isca e deixei a pessoa brincando com ela até, no momento certo, puxar o anzol e falar “acabou a brincadeira”. eu nunca mais deixei uma menina alcançar meu coração de verdade depois da Carinha de Anjo.

sabe por que eu, heart-shaped star, um coração verdadeiro, precisei de tanto esforço para voltar a bater, meu leitor? porque, para nunca mais ser defraudado dessa forma, eu criei uma constelação de corações falsos e só entreguei esses corações às pessoas. nunca mais o verdadeiro. se a princípio eles eram notavelmente falsos eu os aperfeiçoei até se tornarem tão reais quanto o real, tão amáveis quanto o real, tão moldáveis quanto o real. nem eu seria capaz de descobrir a minha verdadeira personalidade enquanto estivesse perto de outras pessoas, só as falsas precisavam existir no mundo das outras pessoas, a minha verdadeira poderia ficar presa no meu quarto.

nunca mais meu coração seria defraudado. nunca mais. doía muito ter a única parte do meu corpo que ainda acreditava no Amor machucada. meu coração era extremamente frágil, ele tinha de se defender de um monstro como a minha sexualidade e isso era uma tarefa exaustiva, eu não precisava vê-lo apanhando de outras pessoas.

a Carinha de Anjo, então, terminou com o namorado no segundo semestre do segundo ano. a partir daí começaram os joguinhos. em certo tempo, ficar mais próxima de mim, conversar comigo, jogar um elogiozinho ou outro para eu beber um pouquinho de felicidade vindo dela, aproveitar o gostinho de ter um rapaz completamente caído por ela como o divertido garoto da kay starr. em outro tempo o desprezo, conversar com todo mundo menos eu, comentar de atributos bons das outras pessoas que eu não tinha, todas essas coisas que qualquer homem sabe ignorar mas qualquer garoto de quinze anos sente um aperto no peito inexplicável ao ver acontecendo. eu nem via isso me atingir, não sabia que essas coisas todas estavam vindo dela. também não me sentia atraído por essas coisas, a minha sexualidade é má, não burra, esses joguinhos de amor e ódio precisam ser sonoros para atingi-la, as palavras são mortas: me odeie com gritos, com desespero, com punhos fechados, com indiretas mortais! me ame com intensidade, com inquietude do corpo ao estar perto de mim, com um sorriso se abrindo ao me ver, com tons de voz variantes e até inconsistentes ao falar comigo, com flertes corporais que não vou nem conseguir distinguir se são ansiedade ou aquela maldade gostosa da juventude! do contrário a minha sexualidade vai olhar pra você e falar “ok”. a minha sexualidade falou “ok” pra Carinha de Anjo, ela sabia que era pura maldade emocional da menina, que o coração estava amarrado mas eu não tinha desejo nenhum.

a minha sexualidade ainda não sabia me salvar dessas coisas.

passou um ano dessa desgraça toda acontecendo com o meu coração, uma verdadeira surra emocional que nunca vou esquecer, até que a sala inteira fez aquele movimento para que eu me declarasse pra ela. eu estava inseguro, sabia que ela não dava a mínima pra mim mas o impulso do pessoal me deixou surtado, agonizando, pensando que eu deveria resolver isso de uma vez por todas. então, certo dia, a segui em uma parte do caminho até sua casa com uma turma de escola me assistindo, eu só queria que todo mundo fosse embora. em meio aos olhares que ela me mandou de “o que esse moleque tá fazendo atrás de mim ainda?” acabei desistindo e indo pra casa, e foi o mais longe que cheguei.

não que não tenha planejado insistir e até tentar mais uma vez, eu até planejei, mas minha mãe chegou em mim e falou “então, meu filho. eu sei que você está afim dessa menina, mas não tinha noção de que você estava realmente levando isso a sério. vou te lembrar uma coisinha: cada passo seu naquele colégio é monitorado por mim, e cada passo de quem interage com você também portanto eu sei quem é essa menina. ela faz [censurado], [censurado] e [censurado]. ela está brincando com você. e, se você insistir de novo em ficar com ela, eu serei infeliz pelo resto da minha vida”. eu nunca vi minha mãe falando isso antes, fiquei muito assustado e desisti. não entendi o que tinha acontecido, só hoje sei que todas essas palavras da minha mãe não significaram nada em si, a comunicação coração-com-coração significou. o que ela fez foi apelar para a soberania emocional de mãe: um filho de bom coração como eu é capaz de entregar o coração a qualquer mulher mas, até que isso aconteça, o meu coração pertence à minha mãe; ela estava simplesmente exercendo sua autoridade de mãe, arrancando todas as raízes falsas que a Carinha de Anjo tinha colocado ali e pegando-o de volta.

mãe é a coisa mais assustadora do mundo. mãe baixinha invocada é mais ainda.

 

Você leu um capítulo da série heartshaped star - estrela cadente

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escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star