Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados vi

vi. ato 6. o poder da influência (Loiríssima) (parte 2)

27 de março de 2023

ação!

Voltando ao ponto inicial disso tudo, eu estava nesse “auge”. Onde tinha influência sobre as pessoas, mas não sabia muito bem disso. Onde era visado, cotado. As coisas que eu falava tinham importância, as pessoas acreditavam, eu era uma “referência”.

Num geral sou horrível com isso, não sei lidar com algo tão pouco palpável, imensurável: o impacto das minhas palavras, das minhas ideias. Isso é ridículo. Ninguém nunca ligou pro que eu falei, não sei viver num mundo onde as pessoas ligam, isso é insanidade.

E aí rolou esse evento de evangelismo da igreja. O primeiro em que participei efetivamente, com cracházinho e tudo.

Nos primeiros dias você tinha que selecionar uma estratégia de evangelismo (música, teatro, não lembro o que mais) e eu era péssimo em todas, então fiquei com a música, também pensando que a Garota Japonesa era tecladista. Nessa me ferrei porque ela resolveu “inovar” e fazer teatro.

Fiz amizade com duas meninas e já demos um jeito de trocar WhatsApps, tentamos ficar na mesma equipe mas não lembro se deu certo.

Uma dessas meninas era a Loiríssima, uma das meninas mais loiras da igreja, com os dentes mais brancos da igreja, que usava quaisquer acessórios que a moda permitia e estava com todas as roupas que a moda permitia usar também.

Seria impossível tocar teclado no meio da rua então tentei arranhar o cajón, aquela caixinha que você fica batendo pra fazer percussão.

Estava me saindo razoavelmente bem nos primeiros dias, mas vieram os músicos técnicos me falar que estava esquisito, que eu não estava fazendo direito e deram um jeito de me tirar dali. Estavam querendo que eu seguisse uma técnica super precisa de som mas era um curso de evangelismo, era um cajón, foi uma verdadeira revolução pra mim descobrir que era necessário receber o espírito de Neil Peart para evangelizar.

Para ser honesto achei estranho, convenientemente estranho levando em conta que eu e certas pessoas influentes sempre tivemos atrito com esse assuntinho chamado “música”. Mas, pensando bem, a paranóia do atrito não é mais motivo de desconfiança do que o fato do músico técnico que mais me corrigiu ter ficado claramente interessado na Loiríssima.

Depois de alguns dias tivemos uma “aula prática de evangelismo” indo a um lugar que, até então, para mim, era novidade na Pequena Londres. Se chamava “Cotovelo”. Na verdade, as pessoas se dividiriam entre esse Cotovelo e o UP Bar.

O UP eu já conhecia porque minha colega de faculdade gostava muito de lá e ocasionalmente me chamava pra ir, mas nunca tinha ido até então, é um lugar agradabilíssimo e sempre chama ótimos DJs e bandas. Também tinha uma amiga DJ que tocava por lá às vezes.

Minha equipe ficou no Cotovelo e, claro, minha equipe incluía a Garota Japonesa e sua amiga, mas também incluía a Loiríssima e sua amiga.

Fiquei divididíssimo. Tinha interesse nas duas meninas. Tinha mais sentimentos pela Garota Japonesa porque conhecia há mais tempo e já tinha aquelas histórias que só faziam sentido pra mim, mas a Garota Japonesa não demonstrava nenhum interesse em mim, enquanto a Loiríssima demonstrava.

Não digo que a Loiríssima estava afim de mim, veja só, mas a Loiríssima era simpática, ela me respondia rápido no WhatsApp, ela se esforçava para conversar comigo, ela queria estar perto de mim.

A Garota Japonesa era apenas a Garota Japonesa, essa coisa esquisita que eu não conseguia decifrar, não conseguia entender se me queria por perto ou me queria a quilômetros de distância.

A princípio, fiquei com a Garota Japonesa, e descobri que ela era louca e sem noção.

Estávamos no Cotovelo prestes a ver uma batalha de rap, cheio de homens que poderiam estar bêbados e drogados, o que na época eu achava que representava um perigo absurdo – e representa, mas mais por serem homens do que por estarem bêbados e drogados –, e ela não acompanhava ninguém, se metia ali no meio e começava a torcer pelas pessoas.

As pessoas se xingando, se agredindo verbalmente com rimas horrorosas de gente branca, e ela lá, na linha de frente, achando o máximo, praticamente formulando suas próprias rimas para chegar lá e falar suas verdades. Hoje pagaria pra ver isso acontecendo, mas na época foi apavorante.

Tinha cara olhando esquisito pra bunda dela e eu me senti um pai, é hilário pensar nisso agora.

Uma hora a chamei num canto e dei uma bronca, como se fosse esse pai mesmo. Ela ficou revoltada comigo, como se eu estivesse “cortando o barato dela”. A amiga dela olhou pra mim e só riu, comentei “eu não fazia ideia que ela tinha tão pouco juízo” e a amiga dela só me respondeu “pois é”, rindo.

Ela ficou o resto do rolê fazendo bico pra mim, como uma criança birrenta e fiquei sem saber o que fazer. Eu estava apaixonado por... essa pessoa? Aliás, que raios de relação era essa? Não tinha essa intimidade para defendê-la, foi meio instintivo, mas ela também não tinha essa intimidade comigo para “ficar de bico”. Isso era coisa de, sei lá, irmã mais nova.

Por fim, não dei carona para elas porque elas moravam em outra cidade. Dei carona para a Loiríssima, em algum momento ficamos só nós no carro e eu, claro, oh pelo amor de Deus, ainda estamos falando de mim, não reparei que isso poderia significar alguma coisa.

Nós tivemos uma conversa normal o caminho todo, um pouco mais pessoal, mais tímida, íntima, do que em todas as outras. Foi uma conversa que me quebrou um pouco, também: consegui sentir que ela tinha um pouco de vergonha de ter uma “vida antes da igreja”, eu falava meio em tom de deboche que nunca bebi, nunca aprontei, blablabla, mas consegui ter a sensibilidade para perceber que isso a intimidou. Fiquei triste, porque já tinha vencido há um tempo essa noção ridícula da “vida antes da igreja”, embora não tivesse percebido que, no fundo, eu também tinha uma.

Percebi que ela queria ter falado algumas bobagens comigo mas, por conta desse rumo triste da conversa, ela acabou só conversando de projetos ministeriais, de Bíblia, oração e coisas do tipo. Uma pessoa influente por seu “poder espiritual”, no final das contas. Só podia ser santo. Ela precisava ser melhor do que uma pessoa suja e cheia de pecados para estar “comigo”.

Também me senti um pouco incompatível com ela, pra falar a verdade. Nada muito definitivo, mas deixei-a em sua boa casa localizada em um bairro nobre e, embora ainda não pensasse muito sobre questões de racismo, tive um mau pressentimento sobre as possibilidades de ser discriminado e não ter condições de dar a vida que ela estava acostumada a ter.

No fundo, me senti um pouco discriminado pela família da Bem-te-vi. Pelo seu sobrenome europeu, pelos olhares estranhos da mãe dela para mim no culto de idosos, pelo jeito de me tratar como bandidinho, algo que acontece com certa frequência quando se mora na Zona Norte. Sabe, a Loiríssima tinha algo que me lembrava a Bem-te-vi nesse sentido, além de morarem em bairros próximos.

Não estou dizendo que estava certo, que julguei corretamente. Foi o que se passou no meu coração. Nem mesmo quer dizer que desisti dela. No meio dessas tristezas da conversa, me senti mais conectado a ela tambem. Continuamos amigos, continuamos conversando de vez em quando, ela continuava interessante então nada estava descartado.

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados vi

escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star