Em outro evento aleatório de jovens da igreja, a Garota Japonesa estava com uma das roupas mais bonitas que eu já tinha visto. Era uma coisa meio e-girl gótica, e ela tinha umas fases onde se tornava essa e-girl gótica: maquiagem branca meio forte, batom forte também, roupas todas pretas e algum sapato preto de preferência tratorado.
Era um pouco difícil compreender o estilo dela, pra falar a verdade, ela parecia ter vários.
Ocasionalmente esbarrávamos no culto de idosos, após obter o contato dela no Facebook e acabar falando sobre estar lá ou não. Como disse, ela tinha outro estilo no ambiente de idosos, mas não era um estilo pra cada lugar: embora ela guardasse sua consistência com os idosos, no seminário ela tinha vários.
Ela era indiscutivelmente uma pessoa interessante e intrigante pra mim.
Eu tinha algumas ansiedades inevitáveis ao conversar com ela, era impossível eliminar isso completamente porque havia em mim um certo tipo de esperança de que poderíamos ficar juntos. Só não era doentio, não me fazia implodir a cabeça pensando nisso e nem me atrapalhava muito, então continuava conversando. Mesmo que em alguns momentos ela me cortasse friamente, tão friamente que tinha receio até em chamá-la de amiga.
E se eu não fosse nem mesmo isso? Poderia ser apenas um homem irritante que a chamava pra conversar e ela conversava por seus próprios motivos.
Sim, não tinha mais medo de lutar contra minha vergonha. Pedia coisas idiotas só pra falar com ela, perguntei sobre a profissão dela, sobre a abordagem dela, perguntei como ela tinha ficado tão boa no teclado, se dava aulas. Perguntei sobre tudo o que o ouvinte puder imaginar e, sempre que as ideias acabavam, esperava novas ideias chegarem para começar tudo de novo. E se ela cortasse, receberia o corte, essa facada no peito, tornaria isso motivo de riso e em outro dia começaria tudo de novo.
Falando assim, parece que fiquei em cima dela dia-e-noite, todos os dias, mas a verdade é que isso dizia mais sobre a natureza da nossa “relação” do que sobre frequência. Eu tinha meu trabalho, meus ministérios na igreja, meus amigos e amigas. Conversava com outras meninas também, tinha interesse em outras meninas, não era só ela.
O que mais me preocupava nela era sua amizade com a Bem-te-vi, o que puxava na minha cabeça aquelas paranóias que iam além da sexualidade e remetiam aos bullyings que eu sofria, inclusive dentro da própria igreja. E se as duas estivessem apenas combinando pra rir de mim? Ainda não conseguia me desligar desse tipo de tiração de sarro, mas eu tentava ficar bem.
Voltando ao assunto, teve esse evento onde ela foi de e-girl gótica – embora essa maneira de vestir ainda não tivesse esse nome – e eu fiquei encantado com aquilo. Não consegui parar de olhar pra ela o tempo todo e aí, no final, fui puxar assunto como qualquer idiota, tomei um corte idiota e fui pra casa.
Por fim, houve uma festa junina em algum dos ministérios da igreja do qual eu fazia parte, onde nos vestimos a caráter, servimos pipoca e “crentão” (quentão menos álcool, ainda pior que o quentão original) e outros doces às pessoas numa UPA, e a Garota Japonesa estava lá. Porque tinha que estar, mesmo, era obrigação dela como seminarista. Já eu... bem, era meu ministério, eram meus amigos, eu estava no meu lugar.
Servimos juntos porque, mesmo sendo um rapaz incômodo, eu era o rapaz incômodo que ela conhecia e não se sentiria estranha ao ser ensinada como faz.
Por fim, na roda de oração que encerrava o “expediente”, demos as mãos.
Foi um sentimento devastador. Um minuto compridíssimo que eu não queria que acabasse. Fiquei pedindo a Deus que quem estivesse orando enrolasse um pouco mais, só faltou inventar pedido pra estender esse tempo. Mas passou. Cada um foi pra sua casa, e a essa altura eu já tinha descoberto que ela não morava na Pequena Londres mas numa cidade vizinha, e a vida se seguiu.
Ou não, talvez não tenha se seguido como se nada tivesse acontecido: não me recordo se foi naquela noite ou em uma das noites seguintes, mas tranquei a porta do meu quarto e me joguei no chão, cheio dos meus dramas, e perguntei a Deus o que poderia fazer para ter aquela mulher.
Veja, não gosto de incentivar ninguém a ser guiado por vozes que podem ser sobrenaturais mas também podem ser fruto de muita exposição a doutrinas religiosas agressivas, não porque não tenha fé e sim porque acho que pessoas podem ouvir o que bem entenderem e saírem executando sem nenhuma prudência ou maturidade, mas o que ouvi não foi nada distante do alcance da realidade: só ouvi um “não desista”.
Não estava sozinho nessa, confiei esse assunto a exclusivamente um amigo que já estava até casando, depois de muito esforço para superar a última traição, e concluímos que uma voz que diz para alguém ansioso como eu ter paciência não era lá uma voz incoerente.
Oh, céus, criei sentimentos por aquela menina.
Não queria que isso tivesse acontecido, não queria conversas estranhas, sofrer por ansiedade, destruir amizade novamente. Tinha aprendido a lidar muito bem com isso quando tinha apenas interesse pela amiga mas, a partir do momento em que veio esse desejo romântico, as coisas se tornaram um pouco mais difíceis.
Não me deixei abater por inteiro, decidi me permitir sentir um pouco mais ao mesmo tempo em que não queria fantasiar absolutamente nada sobre o que ela estava pensando. Não queria saber se ela gostava de mim, se tinha fantasias românticas comigo. Tudo o que eu precisava saber era que eu tinha.
Tomei coragem e compus uma música, algo que prometi que nunca faria por alguém, e essa música se tornou uma fonte de energia pra mim: toda vez que os sentimentos ficavam complicados demais na minha cabeça, que eu começava a ter aquelas ideias perturbadoras que tinha antigamente, tocava a música para espantá-las e para me envolver nos meus próprios sentimentos românticos.
Ainda não sabia lidar com esses sentimentos caóticos e tão potentes, tão potencializados, mas narrando hoje percebo que o fato de eles ficarem mais intensos ao tocar a música não era nocivo porque o que eu sentia era real: e daí se eu imaginava que queria namorá-la? Queria casar com ela? Queria beijá-la? Queria transar com ela? Queria escrever cartinhas pra ela, queria brigar com ela sobre qual jeito é o melhor de lavar a louça, queria comer um lanche bem vagabundo num carrinho de lanche bem vagabundo com ela? Queria apresentá-la aos meus pais? Pegar um busão e ir até a praia com ela, mesmo que eu nem gostasse muito de praia? Por que isso seria nocivo? Por que isso seria ruim? Por que raios passei a vida toda atrelando esse fogo gentil dentro de mim a uma âncora de ansiedade, como se fosse ruim e humilhante sentir tudo isso, como se o pior que pudesse acontecer fosse não ser recíproco? Como se a vida romântica fosse uma mistura de sertanejo universitário com as mais tristes do Led Zeppelin?
Eu me permitia sentir tudo isso e me transformava, sem saber se em algo melhor ou se em algo pior. Não importava. Sei que era tudo muito assustador. Alguns dias eu conseguia tocar a música de uma maneira eufórica e alegre, como se explodisse uma bomba dentro de mim com todas as cores existentes e inexistentes. Em outros dias era como se estivesse passeando por aquelas florestas mais sombrias dentro de mim, apenas com árvores ressequidas e uma lua carcomida tentando oferecer qualquer migalha de luz para que eu soubesse ao menos em que direção estava indo.
Eu escrevia muito, também. Tentando capturar um pouco do que acontecia dentro de mim para, quem sabe, entender um pedaço desse pouco.
Para ser honesto, não foi a primeira vez que senti isso na minha vida, mas em nenhum momento me permiti sentir antes. Eu me apaixonei por muitas das meninas com quem tive alguma história, mas escondi essa... coisa colorida... dentro de mim, a enrolei em papéis cheios de pontos de interrogação, depois concretei, pintei de cinza, fiz vários rabiscos tortos, trêmulos, ansiosos. Umas pichações de protesto, outras pedindo a morte de alguém.
De fato, não é um sentimento fácil. Ele parece não ter fim. Aquele momento em que você se coloca dentro dele parece eterno, e quando acaba e você percebe que pode terminar vivendo-o sozinho é como se as cortinas do teatro mais lindo que já viu na vida se fechassem, viesse aquela voz do Pernalonga dizendo “Isso é tudo, pessoal!”, então você desliga a TV e vai fazer as obrigações da vida.
Entendo hoje, no entanto, que o sentimento é seu. Que você sente por outra pessoa, mas é seu. Que é da natureza desse sentimento ser entregue às outras pessoas porque ele não se sustenta sozinho, não se prova e não se entende sozinho, cada vez que você o dá a alguém ele cresce mais e faz mais sentido. Mas é seu. É uma parte de você.
Se a outra pessoa não aceitá-lo não importa, porque ele continua lá, pronto para se doar mais uma vez. Do seu jeito, e não do jeito de qualquer outra pessoa. Não importa que as pessoas digam que é pra ser vivido de uma maneira X, que as teorias digam que é Y, que os livros de romance digam que é Z, é você quem o molda para ser como é, ele tem seu nome, suas digitais, é seu. O amor que você quer dar às pessoas só você pode dar.
O mais engraçado é que o amor que você pode dar às outras pessoas você também pode dar a si mesmo. O meu amor perdia sentido se eu tentasse deliberadamente me afogar nele, mas não havia problema nenhum em beber um pouco caso precisasse. Quem sabe o seu seja parecido? E se não for? Não importa.