Série: noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados / noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v

v-xiii. a queda (Deus de companhia ii)

12 de maio de 2018

noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados v
anatomia da alma frágil: mapa geográfico da corrupção e perversão humana [ou: heartshaped star — heartshaped star]

então eu estava sozinho com as minhas vozes novamente. estava sozinho diante da revelação de que carregava pesos que não eram meus, vozes que não eram minhas, de que sentia a dor da alma de pessoas que sequer conhecia e que orava por essas almas para aliviar essa dor porque as adotava. esse foi um momento de descargas elétricas da minha alma, um momento onde me senti uma prostituta espiritual, e onde Deus mexeu intensamente com os parafusos da minha mente.

um dia depois dessa briga, e aí o senhor ouvinte pode lembrar da sétima estrela, fui cumprir horário num culto de idosos e, diante da abertura do culto, chorei desenfreadamente todos os meus sentimentos sobre toda a situação mas principalmente pela Foránea para fora de mim. não sou lá um rapaz orgulhoso que nega que teve sentimentos por alguém, embora faça brincadeiras horríveis pela minha perversão natural e isso talvez tenha bagunçado bastante a cabeça dela depois do que aconteceu (mas acho que não!), gostei de verdade dela mesmo que tenha sido em uma situação tão confusa. os idosos me acolheram diante dessa situação, me abraçaram muito forte, pediram para me abraçar (uma senhorinha muda pediu à sua filha que me avisasse que queria me abraçar) e isso me marcou e me fez prometer que esse seria o meu padrão de abraços a partir daquele dia.

o abraço, ouvinte, fazia parte de algo que eu e a Foránea tínhamos comentado em alguma de nossas conversas sobre toque físico masculino. meu pai é o tipo de homem que não gosta de tocar em ninguém, já devo ter dito em algum momento que ele é caipira ultra-masculino bruto e não sei se disse mas, mesmo considerando todas as conseqüências disso pra mim e pra minha casa, não dou a mínima pra isso porque meu pai é o melhor homem que ele poderia ser. mas não fui tocado de maneira natural por um homem e, por ter perdido a minha inocência tão cedo, tornei-me averso ao toque físico também. isso é um caos, é maldade pura comigo. se sou praticamente imune às palavras conforme expressei aqui e nas estrelas cadentes, sobra pra mim o toque físico como linguagem do amor, mine isso e você tem uma pessoa completamente privada de sentir amor. o abraço dos idosos foi o início de um processo de cura muito complicado porque não bastava isso, eu tinha uma fortaleza horrível na minha mente.

dois dias depois, ainda na igreja, estava numa reunião na salinha de oração da igreja. ainda estava chorando com muita facilidade então me encolhi no meu cantinho e comecei a chorar, e chorar, e então passei a prestar atenção numa mãe acariciando seu filho de uns seis anos. ela tocava ele em todas as suas partes que não a sexual, em suas pernas, em seus bracinhos, em sua barriga, em seu cabelo, em seu rosto.

eu senti pavor daquela cena. sou uma pessoa mentalmente abusada, me sentiria estuprado se aquilo acontecesse comigo. repelia contatos físicos instintivamente, sentia agonia de quando as pessoas encostavam as pernas nas minhas, os braços nos meus, era incomodado por qualquer um que tocasse em mim e se a pessoa continuasse vinha no meu coração uma vontade irracional de matá-la violentamente. ao mesmo tempo, percebendo que a criança estava bem, estava saudável, não estava assustada nem irritada, estava gostando, comecei a desejar aquilo. ela queria ser tocada pela sua mãe, ela estava retribuindo, era amor.

lembrei, então, de uma vez na minha crise depressiva pós-tentativa de suicídio onde minha mãe me pegou chorando em silêncio no meu quarto e decidiu sentar ao meu lado e só me fazer carinho. e foi bom, foi reconfortante, foi algo inesquecível, diria que foi o melhor momento de toda aquela crise. aí entendi que a minha mente estava condicionada a odiar algo que, no fundo, eu gostava muito, mas para provar da parte boa disso deveria vencer essa barreira mental e ela não era uma brincadeira, ela era uma criança estuprada que chorava e sentia ódio vinte-e-quatro horas por dia. Deus me apresentou a saída mas disse que levaria tempo, ele me tocou fisicamente (você é um ateu, ouvinte? desculpa estar te assustando, tente pensar que é um amigo imaginário superpoderoso. Deus, na minha vida, é mais real que eu mesmo) naquele dia e disse para eu me segurar porque sentiria uma aflição inexplicável até começar a me sentir bem e eu chorei muito, muito, tremi como se alguém estivesse me rasgando por dentro, segurei o chão com muita força com medo dele ir embora. chorei por mais de trinta minutos sem parar.

fui escolhido para trazer uma mensagem a dependentes químicos sobre paternidade em uma daquelas semanas e Deus me lembrou disso, me lembrou que estou na pequena londres, um lugar onde pais machões que não tocam seus filhos são a norma, e falou para comentar sobre o toque físico. vi homens enormes, pais de família, chorando com o que disse. eu, além de sentir que Deus estava cuidando do meu sofrimento, senti que não estava sozinho.

nesse final de semana, perturbado pelos sons da minha alma, expulsei de mim o campo de tesla.

mas essa história, ouvinte, precisa continuar. então estava eu, sozinho, acreditando que a Foránea tinha me ocultado o tempo todo que eu era apaixonado pela Miss Bondade. a minha mente restaurou, numa velocidade impressionante, a Miss Bondade ali, sobretudo porque ela parecia muito mal com toda a minha rejeição e a família dela estava sempre me tratando muito bem, como se me quisessem por perto. a mãe dela trabalhava com algo que eu precisava bastante e insistentemente me oferecia bons preços e um serviço muito bom, logo passei a freqüentar aquela casa ainda mais do que já freqüentava antes, e agora era um rapaz um pouco mais realista a respeito de mim mesmo e sabia que valia a pena cantá-la. tentei ser o menos suspeito possível, não queria causar a impressão “agora estou livre pra te dar atenção” mas, honestamente? era o que estava fazendo, com a melhor intenção possível mas ainda assim sendo um belo de um cafajeste.

os nossos corpos voltaram a flertar, isso foi automático. quase imediato. só que eu não tinha mais por que evitar e isso começou a sair de controle, a sair de controle, até que aconteceu a coisa que considero mais doente na história de toda a minha vida: uma vez, flertando no meio de um culto, eu a fiz molhar o banco. ninguém tinha notado nada até que uma amiga, não sei se inocente ou maldosamente (mulheres), apontou isso, e ela ficou num estado de extrema vergonha que a fez andar rápido e nem sair com o resto do pessoal. eu… não ria de mim, não entendi na hora. assimilei isso alguns dias depois, pensando nela e remontando algumas cenas, e fiquei meio apavorado. “meu Deus, essa menina gosta muito de mim, eu preciso fazer alguma coisa”. na minha cabeça havia uma certeza de que não deveria enrolar demais a menina porque estaria a ferindo com essa enrolação, colocada pelos outros e por essas experiências recentes, e fiquei agoniado, pensando que deveria agir o mais rápido possível.

levaram meses para eu entender que deveria me sentir um homem orgulhoso por ter feito isso segundo os padrões masculinos de “ser homem”, mas é uma história que nunca contei a ninguém e nem pretendo. está aqui porque você merece, ouvinte, estamos no centésimo minuto do quinto capítulo de uma história cujo capítulo anterior teve cento e trinta minutos. eu simplesmente não tenho nada de bom a tirar dessa história, ela é um conjunto traumático.

talvez nessa mesma semana tenha ocorrido um evento, na aula, onde todos nós contamos nosso “testemunho”, nossa história de vida. contei a história mais torta daquela turma, ela contou a história mais santa daquela turma. fiquei tão frustrado com o meu grau de pessoa horrível e a minha incompatibilidade com as perfeições daquela “anja” (e com todas as pessoas da minha sala, pra falar a verdade) que tive uma crise depressiva como a daquela história da moça casada ainda naquele dia. tive uma reunião com os homens na igreja e ela terminou bem tarde. voltei da igreja completamente desligado do universo e ligado ao meu universo de frustrações e de auto-desprezo ao ponto de não perceber que tinha furado um sinal vermelho, passado o limite de velocidade drasticamente, cantado pneu e sido perseguido por policiais. os policiais me pararam e brigaram feio comigo, me perguntaram se eu estava bêbado, drogado, se freqüentava mesmo igreja (eles me perguntaram de onde eu estava vindo) e não conseguia responder nada, estava em uma depressão extrema sendo maltratado pelo maior dos monstros da minha cabeça, até que a policial mulher me perguntou se a razão era “mulher”. aí dei um sorrisinho meio lutador. não sabia responder, talvez fosse, talvez pudesse culpar a Miss Bondade por toda essa crise porque ela tinha sido o gatilho, mas… acho que não.

com pena, os policiais me mandaram embora, me desejaram uma boa noite, falaram para eu me cuidar e falaram que tudo ficaria bem. não interpretei bem isso naquele dia embora hoje seja grato, estava depressivo e minha depressão é violenta, não adianta fazer nada por mim porque sempre sou capaz de deturpá-lo. fiquei acreditando que eu era tão deprimente e frágil que até a Justiça Humana ficava com dó da minha dor e não se cumpria pra me proteger. eu… faria o mesmo por uma pessoa como eu naquele estado e, se conhecesse essa pessoa, não a deixaria dormir sem ouvir um “eu te amo”. é o que faço com moradores de rua. e entendo meu coração naquele dia, nunca estive objetivamente tão mal comigo mesmo. durante a outra depressão eu sentia agonia espiritual, essa foi a primeira vez em que uni a minha história de agonia espiritual com o fato de ser uma pessoa violada e bagunçada. não importa que o gatilho tenha sido bobo, essa foi a dor mais séria da minha vida.

eu, então, decidi tomar uma atitude a respeito da Miss Bondade. decidi a cantar e chamar pra sair abertamente, embora não conseguisse encerrar nenhuma dessas chamadas. em uma dessas ela esperou que eu “terminasse o serviço” e, quando não tive coragem para isso porque fui a ver num dia onde estava toda a família junto dela, ela me bloqueou. no dia seguinte esse meu amigo, o que tinha me perguntado se eu realmente gostava dela, saiu para conversar comigo e no meio dos assuntos me perguntou se eu estava tranqüilo a respeito do assunto “relacionamentos”, se estava de olho em alguém, e finalmente estava astuto o suficiente para estranhar a pergunta e a não expor os meus sentimentos a ele.

fiquei irritado, ainda na história da Foránea, quando tudo acabou, quando ele veio me dar lição de moral sobre ficar calmo a respeito de relacionamentos como se eu estivesse brincando com a Foránea. ele não entendia a gravidade daquela situação, ele não entendia nada da minha pessoa interior. e disse exatamente isso a ele naquele dia, que não teria problemas em expôr a minha pessoa verdadeira a ele, mas ele teria de entender que ainda não me conhecia apesar de andar comigo por dois anos. eu me fechei assim que comecei a abrir, de todo o meu coração, a maior das minhas dificuldades, o maior dos meus vícios, e ele só me repreendeu. não deve ser difícil ao ouvinte entender qual era o vício naquela época. queria parar, queria sinceramente alguém que me ouvisse e me ajudasse a localizar as minhas dificuldades e parar, não alguém que tratasse aquilo como algo repugnante (mesmo que fosse), ainda mais numa época onde eu era tão imaturo e acreditasse ter um problema monstruoso que só eu tinha. tenho certeza que o problema não fui eu porque, se fosse, Deus não teria me permitido vencê-lo sozinho.

não estou, também, dizendo que ele foi um péssimo amigo. várias outras áreas da minha vida tiveram a força dele, ele me ajudou a sair de uma completa miséria social a um estado de sociabilidade aceitável, me ajudou a podar hábitos péssimos, ele foi ótimo. e, principalmente, ele foi meu amigo, eu amo a vida dele. mas ele nunca teve meu coração e, nessa hora, optei por proteger meu coração dele a respeito desse assunto que sempre deixei aberto. caso valha a exposição, meu pai sempre me disse que esse não era um assunto que eu deveria abrir a ele e nunca ouvi meu pai, sempre pensei “preciso dar um passo adiante e confiar nas pessoas, não posso ser assim”. dei ouvido a essa pontinha de desconfiança dessa vez.

esse foi, objetivamente, o período com a maior quantidade de acontecimentos ruins na minha vida. nessa semana briguei com familiares de um amigo meu na internet e recebi uma ameaça de processo e isso mexeu, negativamente, com a minha fé: pensei no absurdo que era aquelas pessoas serem pastores de uma igreja e em como odiava autoridade hipócrita e isso me fez subir o sangue, me perturbou profundamente, sem contar que havia uma ameaça de processo e sou de uma família nada rica para lidar com essas coisas. odeio pessoas que ameaçam outras de processo, essa é uma ameaça engenhosa e capitalista onde você intimida outra pessoa falando que tem mais capacidade financeira que ela (depois, quando amadureci e pude sentir mais de perto as fragilidades do pastoreio, entendi que eles não estavam tão errados quanto eu pensava. mas essa não é uma novela pra mim. o personagem para essa novela já foi escalado mas, sem terminar a noite na pequena londres e sua constelação, o dono-desse-mundo não o revelará). esse também era um mês de crise financeira em casa, onde nós estávamos obviamente mal de dinheiro, as dívidas estavam começando a chegar. esse também era um mês onde passei a ganhar menos que os outros, então tive de readaptar meus padrões econômicos a essa nova situação. esse também era um mês decisivo para o meu contrato com o lugar em que estava trabalhando ser renovado ou não, a pressão no ambiente estava absurda para o meu lado, havia toda uma força estressante para me fazer produzir mais do que o normal (o meu normal já estava ruim, eu estava emocionalmente destruído e incapaz de ser criativo), eu… já sabia que passaria por mais uma demissão.

enquanto chorava na igreja, num belo dia desses, a Miss Bondade me viu e ficou me observando o tempo todo. o tempo todo. ela ficou assustada e creu que isso tinha a ver com o fato de ter me bloqueado, já que naquele mesmo dia me desbloqueou, e senti ódio. senti ódio porque nas semanas anteriores ela estava contando vantagem de estar “me ignorando”, “pisando em mim”, pras pessoas abertamente e lidei com isso como uma brincadeira, senti ódio porque aquela menina “boazinha” já tinha me confessado as diversas vezes que brincou com a ansiedade de vários rapazes e já tinha me usado pra isso, senti ódio porque tudo o que ela conseguiu concluir sobre o abalo sísmico que estava a minha vida foi “pisei meio forte demais nele”. ela estava tentando fazer comigo, em tom de deboche, o que mais me apavorava em qualquer mulher. foi ridículo da minha parte, mas ainda não tinha descoberto que jovens brincavam com essas coisas, porque pra mim eram monstros enormes que significavam o suficiente para me destruir caso aparecessem e para eles era… brincadeira inconseqüente.

senti muito ódio, também, de uma amiga dela que uma vez tentou flertar comigo e recusei. tinha certeza que ela estava a influenciando negativamente contra mim. ouvinte, você pode acreditar que eu era imaturo por levar a sério demais essas coisas, mas você está errado. a minha imaturidade era em querer exigir maturidade mental de pessoas que não a tinham, a minha imaturidade era social, eu não podia querer que jovens de vinte tivessem quarenta anos mas queria porque acreditava que a minha seriedade mental era de vinte. sétima estrela cadente, está melhor explicado lá. sabe por que não é errado levar a sério essas coisas? porque elas são sérias, acredite ou não, e se você não leva a sério estará correndo risco de alguém perverso e mau te usar exatamente nisso. é horrível ter conhecimento do bem e do mal porque, antes dele, você não tinha que decidir nada, mas a partir do momento em que o conheceu precisa optar pelo bem ou pelo mal e optar por não optar significa optar pelo mal, conhecer algo te força a levar aquilo a sério ou a ser escravo daquilo percebendo que está sendo escravo e perceber a escravidão é que é o problema, antes de percebê-la tudo parecia bem.

assim como antes da depressão aos dezesseis tudo parecia ir bem, não parecia nada demais me sentir lixo existencial, não acreditar em Deus e derrubar a fé das pessoas. assim como antes de descobrir a minha sexualidade tudo parecia ir bem, não parecia nada demais não ter auto-estima, não conseguir me aproximar de mulheres boas e ser constantemente uma bonequinha de mulheres más e velhas. mas hoje, que estou livre das causas da minha depressão e estou livre das causas da minha aflição sexual, digo que sempre vivi um inferno espiritual, emocional e sexual, que só hoje estou vivendo como deveria e vendo como não precisava ter sofrido tanto, e sou grato a Deus por ter me destruído completamente e me reconstruído mesmo que isso tenha me exposto a tanta desgraça. sempre soube que valeria a pena.

resolvi a questão do processo. a situação da minha casa se agravou o suficiente para minha mãe contrair uma depressão. tive que parar definitivamente com o kung fu, algo que me deixava ansioso mas me fazia muito bem. eu fui demitido.

 

Você leu um capítulo da série noite na pequena londres ~ nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados

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escrito por nubobot42 narrado por heartshaped star