Bom dia, leitor!
Você sentiu raiva?
Você me odiou? Acha que vai me odiar muito mais?
O que acha de mim?
Quero dizer que, narrando os desastres da minha vida que partiram de mim, é muito fácil acreditar que sou uma pessoa terrível. Não, não vou pedir para que me veja de outra forma, porque não estou realmente interessado na maneira como o leitor me vê. Não é arrogante! É porque quero que tenha liberdade de sentir coisas ruins por mim, sem empecilhos, sem acreditar que está me magoando. Quero que se sinta bem, confortável, sem culpa. Quero que você seja, caso seja de fato, a Primeira Vítima, a Moça da Carta de Amor, a Miss Bondade, a Namorada, a Garota Mais Legal do Mundo ou a Miss Maldade, Eu, o rapaz cuja namorada terminou com ele por estar apaixonada por mim e eu disse “não” e ele veio me xingar depois, o rapaz que acreditava mesmo que eu mantia um harém nas minhas mãos e não só era muito tonto mesmo e sentia inveja de mim porque se sentia um fracasso com as mulheres, ou qualquer pessoa que está ou não nas noites da Pequena Londres.
Quero que você entenda o que aconteceu, que possa me reconhecer na próxima de uma maneira melhor, mais generosa mas também mais firme, decida se agüenta meus impulsos provenientes de uma imaginação violenta e, caso decida que sim, saiba me prender. Todos esses dilemas de paquera juvenil não são tão difíceis assim de compreender quando se deixa o amor vencer. A verdade é que em nenhum dos casos fui realmente o único errado.
Talvez você tenha entendido uma coisa sobre todas essas histórias e sobre mim: o light fuse and get away não é um impulso canalha, é um impulso descontrolado de proteção do coração. Em todas essas histórias não seria realmente justo me chamar de cafajeste, de canalha, mas de um covarde. Talvez nem isso.
O único caso de genuína covardia foi o da Miss Bondade, e mesmo nesse não foi uma covardia com relação a ela, mas com relação aos monstros do meu passado. É o que dizem, não é? A luz dissipa as trevas. Ela dissipou alguns demônios da minha mente, ardeu, foi horrível, mas deu tudo certo. Ela também aprendeu, comigo, que não sabia muita coisa e correu atrás. Como disse: eu não era “impuro demais pra ela”, essa foi a pior mentira que ocupou minha mente, depois de um tempo ela deliberadamente brincou comigo algumas vezes e por mais que tenha apenas rido pensei “a florzinha está desabrochando”. Hoje ela é uma mulher bem melhor e madura, e qualquer pessoa poderia ter feito isso por ela, qualquer coisa poderia ter entrado na vida dela para que isso acontecesse, mas essa pessoa foi eu. Isso ninguém vai mudar.
Estou cansado de falar mal de mim mesmo porque, se por um lado reconheço que sou culpado por tudo o que provoco pelo simples fato de existir, que existencialmente sou um pecador de primeira linha, existencialmente merecia estar no inferno como todas as outras pessoas, por outro lado todas as outras pessoas existencialmente merecem estar no inferno como eu, são culpadas por tudo o que provocaram inclusive em mim pelo simples fato de existirem e são existencialmente pecadoras de primeira linha. Vê? Deus não se importa com o que fazemos porque não podemos atrapalhar os planos dele, Deus se importa com o que fazemos porque ele se importa conosco. Ele se importa com todas as minhas “vítimas” porque as ama, mas se importa comigo porque me ama também, e gosta de nós. Deus só ama o que é bom, o que é ruim ele odeia, e ele odeia tudo o que fazemos de ruim, mas nos ama. Eu sou bom. E o light fuse and get away não é um impulso puramente ruim, a minha personalidade vibrante não é ruim, ela é uma criança sonhadora e insegura e merece afeto, carinho, proteção e um controle gentil, direcionador, muito mais do que desprezo e repressão.
O light fuse and get away é um ato de teste que, sem controle, complica a etapa inicial do relacionamento com pessoas boas por evidenciar a possibilidade de rejeição em cada palavra, frase, gesto ou olhar, mas também protege a personalidade melancólica completamente indiferente ao mundo real das pessoas de fato ruins. Não que a personalidade melancólica não saiba que existem pessoas ruins, pelo contrário, ela é quem melhor as conhece, mas sua completa indiferença faz com que ela não aja. Ela é quase um intelecto estático. O light fuse and get away é o motor eficiente contra as mulheres de Provérbios 7, é a imaginação que permite ao homem enxergar que estão querendo seqüestrar seu coração e oferecê-lo como ritual ao próprio Satanás, e alguns homens precisam dessa imaginação. Você é muito sortudo, ou muito incapaz, se nunca passou pelo caminho de alguma mulher que quis te destruir pelo puro prazer da bruxaria, da destruição da identidade masculina. E sorte é algo que raramente existe. Sinto muito por contar isso.
Te convenci a gostar de mim? Não era a intenção. Você, querido leitor, vai me odiar bem menos a partir de agora, no terceiro capítulo das aventuras na Pequena Londres. Mas tome cuidado para não começar a odiar mulheres: lembre-se que, até então, você só conhecia mulheres boas e elas continuam sendo boas.
Deixem-me revelar um segredo sobre a minha pessoa: é meio difícil vencer minha imaginação. Não estou me vangloriando, é um simples fato. Você estar me lendo é essa prova: apenas uma pessoa como eu poderia estender o tapete da minha realidade da forma como fiz até aqui, esses brucutus de mente enfaixada não podem sequer explicar qualquer coisa sem apelar aos números, aos dados, aos links, às entrevistas, ou qualquer outra fonte de dados brutos. Não sou sua fonte de dados, sou sua fonte de informações. Sou praticamente o arquétipo do ser imaginativo, que está sempre remontando os quebra-cabeças da realidade, chocando as contradições, desenhando e redesenhando os caminhos, e com isso espero que não tentem me encarar como um filósofo porque sou incapaz de tamanha honra (e tamanha coisa de gente velha!), sou um simples pivete que ama entrar em universos individuais e conhecê-los. Não estou interessado se isso vai ser útil para a sociedade, só quero me divertir. Sou um aspirante a cientista da natureza, a Dona do Jardim Fantástico diria.
Você sabe se sou, mesmo, a pessoa por trás dessas palavras? O quão reais são essas histórias? A personalidade do escritor se une à minha? Em quais pontos, quantos por cento? Ah não, você não sabe. E não precisa saber. O meu único conselho é que não aceite a conclusão mais confortável, a que melhor satisfaça seus anseios pessoais, mas aceite a conclusão que mais lhe confronte. Que mais tenha potencial de lhe fazer mudar de idéia sobre mim, sobre você mesmo, sobre os acontecimentos da sua vida, sobre suas convicções. Não porque quero que mude suas convicções mas porque, quando perceber que essas conclusões não são mais fortes que suas convicções, suas convicções se tornarão mais fortes. Do contrário, elas nem eram tão fortes assim.
O fato é que minha imaginação nasceu muito cedo. Cresci dentro de mim mesmo muito rápido, tão rápido que não tive tempo de crescer com outras pessoas. Dizer que sou autista seria um pecado contra o autismo, não sou tímido, sou eloqüente e tenho habilidade para falar em público, sou propositadamente só. As pessoas consomem demais minha imaginação, não consigo tratar ninguém com indiferença, estou constantemente redesenhando as pessoas em minha mente e isso faz com que eu esteja sempre fazendo um esforço mental fora do comum. Torna-se um desastre quando resolvo colocar meio mundo de gente ali dentro, entro em pane. É por isso que, mesmo tendo minha parcela de cafajeste, quando estou prestando atenção em uma garota estou prestando atenção só nela, e quando deixo de prestar atenção eu realmente deixo de prestar atenção.
“Que admirável mente!”, você diria. Acontece que tudo o que é admirável é corruptível. Mesmo que acredite em realidade absoluta, tenho certeza absoluta que não a vejo. Desde muito cedo me fechei no meu mundo e vivi só ele, em todas as áreas da minha vida, inclusive as áreas onde não se vive só.
Homens: notaram o que quis dizer com isso, não é? Sim. Não vou mencionar números porque não há motivos, mas me fechei para isso bem cedo.
É fato que minha imaginação entrou, desde criança, num caminho onde era constantemente atacada por perversões, onde traçava as piores realidades alternativas possíveis para explicar o que estava acontecendo. Quando aprendi sobre “violência doméstica”, lendo alguma coisa que um garoto no Jardim de Infância não deveria estar lendo, julguei que uns simples tapas no ombro de brincadeirinha se tratavam disso e denunciei, para a frustração dos meus pais que nunca mais conseguiram convencer as pessoas a quem denunciei de que era só brincadeira; sempre sobra aquele olhar engraçado, né? “Ah, relacionamento abusivo e ela não tem coragem de denunciar… Que pena… E se tivéssemos provas…”, desculpa estatísticas, atrapalhei vocês. E era só isso. Isso nunca comprometeu minha vida em sociedade, minha eloqüência (eu fazia sucesso com as meninas no Jardim de Infância, e até então sabia disso, olha só!), até o tempo ainda precoce onde comecei a entupir minha imaginação de perversões.
Foi de uma gravidade enorme o que aconteceu comigo, mas era inevitável. Não odeio Deus por ter permitido, pelo contrário, a prova de que continuo vivo no período onde estamos é prova do amor dele. Uma abertura na minha imaginação permitiu que eu aceitasse que a realidade me odeia, ninguém consegue sobreviver por muito tempo acreditando nisso da maneira que eu acreditava.
Sabe aquilo que todo mundo diz que não faz mal a ninguém, que é bom, que é gostoso, e tudo mais? Pegue a pornografia, por exemplo, ou músicas com simbologias satânicas. Tudo isso fazia um mal horrível a mim porque minha imaginação é larga, reinterpreto toda a realidade a partir de cada coisa que vejo, ouço e sinto e percebo que estou fazendo isso, e não está nem nunca esteve no meu controle. Então cada imagem, cada cena, que ainda não conheço e não sei como subjugar, vai moldando de maneira sucinta minha percepção das coisas. E quer saber, quer que eu seja honesto, mas bem honesto mesmo? Acredito que todas as pessoas são assim. Elas podem não perceber, elas podem não temer a sua imaginação como eu temo e portanto fico policiando como o dia de hoje foi diferente de ontem, como o comportamento das pessoas hoje foi diferente do comportamento de ontem, como o entendimento de tudo hoje foi diferente do de ontem, mas as coisas sempre vão mudando.
Tenho plena certeza de que não terei a mesma mente amanhã.
Se minha mente fosse uma pessoa eu seria outra pessoa amanhã, e é por ter acreditado durante minha breve aventura racionalista que o ser humano estava contido dentro do cérebro que vivi múltiplas personalidades, até descobrir a dialética e viver duas personalidades contraditórias e, por fim, me unir a mim mesmo e entender que sou o espírito que une todas essas mentes e personalidades. Você já conheceu alguém assim? Alguém que viveu múltiplas personalidades e deixou de viver assim acho que nunca conheci, mas pessoas que sofrem de múltiplas personalidades conheço várias, elas só não sabem disso. Tento lidar com todas essas pessoas de múltiplas personalidades com o carinho que cada uma delas merece, sem fazer elas perceberem que estão se contradizendo.
Não vou dedicar um parágrafo a como minha imaginação foi completamente deformada descobrindo algumas das mais terríveis perversidades que o ser humano pode fazer. Mas saiba que as descobri. Saiba que me aterrorizei com o que os outros são capazes, com o que sou capaz de ver, com o que a minha mente é capaz de agüentar. Saiba que me acostumei com os piores filmes de terror que alguém poderia assistir.
Isso moldou a minha imaginação sobre outras pessoas.
Por um bom tempo minhas conversas com as pessoas consistiam em eu entender da pior maneira tudo o que elas diziam. Pergunte aos meus pais e aos meus amigos: eles nunca conseguiam se comunicar corretamente comigo. Acreditei em toda aquela baboseira adolescente do cristianismo opressor e repressor e apliquei aos meus pais com o afinco e coragem que grande parte de vocês, que dizem odiar a religião até hoje, não tiveram. Era porque não era num nível “social”, para “fazer média”, era num nível pessoal. Meu pai me falava “bom dia” eu entendia “você é uma vergonha” através de um malabarismo mental espantoso, já quis sair na porrada com meu pai por causa de religião, já saí na porrada com meu pai por causa de religião.
Conforme minhas reinterpretações ficavam mais profundamente insanas e esforçadas minha mente começava a se cansar das pessoas, a ficar pesada quando elas estavam por perto. O completo egoísmo de viver fechado no meu mundo caído fazia eu pensar que todos estavam pensando algo ruim de mim, todos estavam rindo de algo que havia de errado, mesmo aqueles que obviamente nem sabiam que eu existia, e eu tentava descobrir o que era, o que poderia ser, e não ficava satisfeito nunca. Conforme mais estruturas iam ruindo dentro de mim meus amigos iam ficando preocupados, tentando ajudar, mas eu nunca entendia.
Desliguei-me completamente da realidade, tudo isso transformou minha personalidade melancólica em um verdadeiro monstro depressivo, um monstro que não poderia sequer ser niilista porque até o “nada” era desprezível. Encarava tudo com um cinismo impotente e paralisador, era difícil ser meu amigo porque colocar empenho em qualquer coisa para me ajudar era empenho morto, eu roubava a esperança das pessoas.
Essa melancolia foi uma herança preciosa do meu pai que deturpei ao contaminar a minha imaginação com a morte: meu pai é a pessoa mais melancólica e indiferente que já conheci, ele vai responder “que diferença faz?” para tudo o que você trouxer à mesa, mas estranhamente encara toda essa indiferença como um motivo para amar tudo o que faz, cada instante vivido, todas as pessoas com quem interage. “Não faz diferença nenhuma fazer o que quer hoje, amanhã você não vai querer mais mesmo. Não faz diferença nenhuma você fazer o certo ou o errado, ninguém sabe mesmo, ninguém está nem aí. Ninguém liga para o que você está fazendo. As pessoas vão todas embora, não vai sobrar ninguém. Tudo o que elas fizeram, o conhecimento que obtiveram, vai morrer. Ninguém vai saber o que fazer com isso. Isso é meio assustador, não é?”, é o que ele pensa, é o que ele ensina a mim desde criança, mas não é para quem não acredita em Deus. Ele jamais poderia imaginar que eu tentaria viver isso afastado de Deus. Quando meu pai fala tudo isso ele fala de tempo, e ele não é uma pessoa que se importa muito com tempo. Meu pai é uma pessoa aparentemente simples, mas é a pessoa de maior profundidade que já conheci, com uma história de vida de um verdadeiro herói. Não sei se estou exagerando, não quero saber, meu pai é meu herói e você pode saber que estarei perdido quando deixar de acreditar nisso.
O que ele quer dizer com todo esse cinismo é que não há obstáculo no mundo para obedecer a voz de Deus, só nós mesmos. Você não precisa se importar com o que os outros vão pensar, então pode fazer o que é certo. Você não precisa se importar com o seu amanhã, então pode fazer o que é certo hoje. Você não precisa se importar se vão entender o que você fez, então pode fazer o que é certo mesmo que ninguém entenda. Você não precisa se importar se vão usar o que você construiu, então pode construir o que é certo. A palavra mais correta para isso talvez nem seja “cinismo”, e também não é uma espécie de ascetismo, meu pai não vive isolado numa montanha. Ele, como todos nós, tenta todos os dias, falha todos os dias, tenta de novo, falha de novo. Já vi ele sentir vontade de desistir, mas querer desistir, jamais.
É essa herança paterna que move o impulso light fuse and get away, a personalidade vibrante, aquela que deseja viver debaixo do céu estrelado. Sempre que estou paralisado ela chuta as portas da minha mente injetando imaginações positivas, escolhe a música mais bonita e pergunta se quero dançar, me leva pra fora de casa para passear independente do horário e me mostrar paisagens bonitas, faz orações quando não tenho mais forças. A personalidade vibrante é uma personalidade encantadora, não é por menos que é tão paparicada pelas meninas. É isso o que ela faz com as meninas. Ela dá luz a todo o lugar por onde passa e o espírito das pessoas ama a luz. É difícil manifestá-la em público porque ela não se comunica em simples palavras, ela é um turbilhão de palavras, gestos e ações ocorrendo simultaneamente, e toda vez que tenta se manifestar ou ela acaba fracassando ou hipnotizando quem vê.
É nessa mediação entre a imaginação mais positiva e esperançosa e a imaginação mais destrutiva que eu me encontro. Eu, leitor. Está perdido no meio de personalidades e mentes, ficções e realidades, não é? Me perdoe, não estou acostumado à linguagem de quem tenta incluir tudo o que passou na matéria.
O problema de realizar a mediação entre duas personalidades não é que elas brigam, é que elas se amam. Não chega a ser um problema, na verdade. Elas podem se odiar se você se odiar, isso já aconteceu comigo, mas não interessa.
A personalidade vibrante não se sente repreendida pela melancólica, escravizada pela paciência da melancólica, ela quer iluminar a melancólica e fazê-la sorrir a cada instante. A melancólica também tem uma relação amorosa com a vibrante, protegendo-a de sua própria inocência, deixando-a se envolver com tudo porque sabe que é impossível segurá-la mas revelando a maldade das palavras e ações dos outros como um alerta. É um relacionamento interno, com linhas de pensamento e sentimentos conflitantes, disputando meu poder de decisão sabendo que isso afetará as duas da mesma forma.
Um dos atributos da personalidade vibrante, como disse, é a imaginação esperançosa. Ela sente medo de um mundo onde tudo dá errado, que é o mundo da melancólica, e pode ter desistido disso mas tenta instintivamente convencer sua companheira de que as pessoas são boas, possuem boa intenção, que tudo vai dar certo. Ela sempre tem um plano. Quando uma pessoa tenta ferir minha imaginação, meus sentimentos, minha personalidade melancólica já é ferida porque ela reafirma sua convicção de que a maldade humana é uma constante. Já a personalidade vibrante, quando não pode mais recusar que isso está acontecendo, entra num estado de fúria sistemática contra a pessoa que perturbou sua companheira de espírito.
A personalidade vibrante, quando não está lidando com a bondade das pessoas mas com a maldade, transforma o impulso light fuse and get away na personalidade Chessmaster (Mestre do Xadrez). Não é que a melancólica não brigue com os outros, ela simplesmente não tem paciência, nem queria ter começado a conviver com eles para começo de conversa. A Chessmaster sabe como ferir os outros porque tem o arsenal imaginativo da personalidade melancólica à sua disposição e, acredite em mim por favor, só a bondade consegue ser imprevisível porque é providencial e nós não entendemos a Providência, a maldade é sempre sistêmica e humana. A bondade é apenas perceptível, a maldade é previsível. Quando você conhece o mal passa a reconhecer seus padrões, ele sempre deixa um rastro.
A Chessmaster é furiosa, fria, psicótica e faz tudo rindo. Se quiser saber bem a verdade, nunca é bom que ela aja. O simples fato de ela existir causa o mesmo efeito na personalidade melancólica de desconfiar das pessoas porque não se pode confiar nela, causa uma erosão emocional porque não sei se devo confiar em mim mesmo. A Chessmaster é o lado da minha personalidade que você não confia, é a parte da minha pessoa que, se estou usando contigo de propósito, é sinal de que chegou a hora de pararmos de conversar para sempre. A não ser que você a anule com um pedido de perdão e uma dose de amor.
Todas as pessoas que se encontraram, de uma forma ou de outra, com a Chessmaster, hoje me chamam de psicopata. Eles estão certos. A capacidade de jogar da Chessmaster não é admirável, é desprezível, independente dela fazer tudo isso apenas manipulando verdades porque não vê necessidade nenhuma de mentir, independente dela fazer isso apenas com pessoas (aparentemente) ruins. Pode parecer óbvio o que vou dizer: o problema de sujar as mãos de sangue é que elas ficam sujas de sangue.
É importante que, se você me odiou um dia em público e tem intenção de conversar comigo, esclareça sem que eu precise exigir isso de você. É importante que se mantenha limpo antes de conversar com as pessoas, ao menos pra mim, e não sou hipócrita o suficiente para exigir dos outros sem antes cumprir eu mesmo. Tento deixar bem claro quem gosto e quem não gosto, ando aprendendo a evitar falar pelas costas tudo aquilo que eu ainda não disse, de uma forma ou de outra, na cara da pessoa.
Não é que sou um caçador de ofensas, mas a Pequena Londres tem mentalidade de cidade pequena quando se trata de periferia. No meu bairro todo mundo sabe o que acontece na superfície da vida de todo mundo. As chances de eu saber o que anda falando de mim por aí são relativamente grandes, entende? Você precisa tomar cuidado com isso.
E outra coisa: eu não esqueço. Tenho uma memória realmente boa. Guardo todas essas coisas num cantinho, não esqueço delas.
“Que pessoa amargurada!” deve ter pensado, mas isso não tem a ver com amargura. Não tem a ver com meu coração. Minha imaginação é grande, o meu coração não conheço muito bem, não sei nem o tamanho dele. Não guardo nada por necessidade de nutrir sentimentos pelas situações, mas pela necessidade de manter meu mundo imaginativo coerente, para isso tudo é útil. Para isso, você é útil.
Se vier falar comigo estando na minha imaginação como uma pessoa que me detesta, lembrarei disso. Levarei isso em conta. Você automaticamente não conhece o Light Fuse And Get Away mas sim o Chessmaster. Isso, é claro, se eu não simplesmente impedir que conheça essa personalidade em sua totalidade, apresentando apenas o rapaz melancólico. É o que costumo fazer. Preciso dar uma chance e descobrir o que aconteceu para as coisas terem mudado, às vezes elas apenas mudaram, mas se realmente mudaram não vai custar nada dizer “tinha uma impressão errada de você” e desmontar toda essa possibilidade de fraude. Você sabe como é minha imaginação: ela acredita no perverso, conhece o perverso, não pode desligar o sinal de alerta. Mas, personalidade vibrante! se você pedir eu desligo o sinal de alerta. Tem coragem de me pedir para desligar o sinal de alerta? Vai ter que assumir que, até então, havia motivo para ele estar aceso!
Não é bonito como as relações já se tornaram um jogo de xadrez, cheio de lógicas, de planos, de desenhos e traços? Não é assim que me relaciono com pessoas normais, acho isso perturbador. Com o Chessmaster temos uma bifurcação da bifurcação: se a personalidade vibrante e a personalidade melancólica são opostas, Light Fuse And Get Away e Chessmaster são contradições dentro da personalidade vibrante. Light Fuse And Get Away significa um mundo bonito, Chessmaster significa que devo expulsar do meu mundo aquilo que é feio. Sem meu outro lado talvez eu me tornasse, de fato, um psicopata.
Mas chega de Jung, pelo amor de Deus! Vamos para a ação.
Lembro de ter conhecido a Misticismo mais ou menos na época que me despedi da Primeira Vítima. Foi algo assim, só de olhar. Num tempo onde estava bastante violento na minha fé, quase batendo nos outros com ela, porque tinha acabado de reacender aquela chama. Isso durou bastante, pegou todo o tempo entre a Primeira Vítima e a Miss Bondade.
Certo dia, numa mesa com vários amigos, a Miss Bondade me contou que tinha um rapaz na mesa ao lado que não parava de olhar para ela com olhos traiçoeiros. Era um rapaz que ela conhecia e a importunava na época. Então ela pediu para que eu ficasse ao lado dela e olhasse esquisito para o rapaz, o que no dia só me soou fofo, mas parando pra pensar significou muita coisa. Sejamos bem francos, não vou me magoar: a Miss Bondade gostava de mim, não gostava? Ou pior, considerando que ainda somos amigos: a Miss Bondade gosta de mim, não gosta? Sou um idiota, não sou? Aliás, esqueçam, não respondam. Acabo de descobrir que vou me magoar sim. Acabo de lembrar que não sei o que estou fazendo.
Continuando a história: acompanhando esse rapaz que eventualmente acabou desistindo de olhar para ela, depois de algumas ameaças dos meus olhos. Você já brigou com os olhos de alguém por causa de mulher? É uma das coisas mais lamentáveis que existem quando se pensa só na ação, mas é divertido e a razão é sempre boa, e você sempre vence se a menina gosta mais de você que da outra pessoa então o segredo é só entrar nessa quando a batalha está ganha.
Ah, sim, ao lado desse rapaz estava a Misticismo. Eles falaram algo sobre mim. Ao menos suspeitei que era sobre mim, porque ambos falavam enquanto me olhavam. Não tinha idéia nenhuma sobre o rapaz, nem sobre a moça, só sabia que eles freqüentavam o mesmo lugar que eu e, considerando o nojo que a Miss Bondade tinha dele e queria que eu tivesse também, nós nunca nos bicaríamos. Ela é a pessoa que nunca está errada sobre a maldade dos outros, é mais fácil convencer minha personalidade vibrante que uma pessoa é ruim do que ela. Confio nela.
Depois de um tempo fiquei sabendo que tinha se espalhado por aí alguns comentários sobre o que chamarei, para não atrasar a história, de “determinadas coisas aí”. E na Pequena Londres não é muito difícil descobrir quem começa o telefone-sem-fio, eu sabia quem era. Ninguém ligou, deixei o caso quieto, apenas armazenado no disco que chamo de memória.
Um ano e meio depois, em algum evento bobo, esperando pela Miss Maldade terminar a conversa com algumas amigas dela, encontro-me coincidentemente com a Misticismo e ela, ao invés de fingir que nunca existi como sempre fez, resolveu me cumprimentar. Me cumprimentar empolgada, como se fosse um amigo de infância. Óbvio que cumprimentei meio constrangido, pensando “tudo bem”, e fui embora.
Existe algo curioso com a Misticismo que acontece com todas as meninas como ela: ela é exageradamente, agudamente, espalhafatosamente, eufórica. Demonstra uma alegria de quem possui transtorno bipolar, sabe? Sempre parece feliz, o sorriso dela vai de orelha a orelha, mas parece plástica. Parece que colaram lá. Ela é bonita, mas parece todas as outras meninas que possuem o comportamento dela. É claro, você ainda não sabe qual é o comportamento dela, mas saberá e poderá confirmar pra mim.
Ela não se conforma de manter uma identidade visual, sempre está mudando, o cabelo sempre está com uma cor diferente e um corte diferente, constantemente troca o vestuário. Parece sempre insatisfeita. É engraçado porque o mais normal para mulheres, ao menos as que conheci, é assumir que está insatisfeita, se arrumar toda e falar “está horrível” e você precisar avisar que na verdade está muito bom. Com ela não, você sempre vê ela dizendo que está satisfeita com tudo, mas tudo está constantemente mudando mais do que com as outras.
Ela sempre está incentivando os outros a fazerem o que lhes agrada. Parece muito empolgada com isso, é até inspirador, mas ela os incentiva a umas idéias que deixam você pensando como nenhuma menina meteu uns tapas na fuça dela ainda. Um dia descobri que tanto a Miss Bondade quanto a Miss Maldade já quiseram, aí resolvi minhas dúvidas.
A Misticismo é uma menina de igreja, mas ninguém sabe o que, de fato, ela faz. Ela não gosta que ninguém se meta na vida dela. Você nunca consegue fazer festa na casa dela, o que é costumeiro na Pequena Londres. Se ela achar necessário mente onde mora, mente onde trabalha, mente com quem vive, mente que namora, mente que não namora. São essas as características marcantes dela. Uma pessoa dessas não sobrevive na Pequena Londres sem ser mal-vista, mas na internet ela pode ser quem ela quiser através do bom uso das palavras, então ela costuma se aproximar das pessoas pela internet.
Tomem cuidado com a internet, crianças.
Quando cheguei em casa havia uma mensagem dela no meu WhatsApp. Bem, como meu número parou nas mãos dela permanece um mistério. Coisa boa não poderia ser. Toda essa enrolação falando de personalidades lá em cima serviu só para você concluir o que concluiu agora: a Chessmaster ficou no gatilho. Por que essa menina, que um ano e meio atrás ajudou a espalhar maldades sobre mim, resolveu querer conversa comigo agora? O que ela queria?
Uma importante observação sobre a história até aqui, nos três capítulos que se passaram, é que o termo “destruidores de corações” nunca foi utilizado. É verdade que parti corações durante a aventura, mas nunca tive essa intenção, nunca imaginei que faria isso. Honestamente nunca imaginei que, no final das contas, me tornaria um heartbreaker. Não é que estou arrependido de ter feito isso, é que estou arrependido de ser isso, odeio genuinamente ter essa facilidade de entrar na vida das pessoas, fazer barulho e ir embora deixando tudo bagunçado e se pudesse não seria assim. Toda a ajuda do mundo, inclusive os tapas na cara, é bem-vinda. É o traço que mais quero mudar no meu caráter hoje. Está ferindo as pessoas, está ferindo a mim mesmo, todas as outras áreas da minha vida estão tranqüilas se comparadas a essa.
Não espero reconhecimento por tentar fazer algo que deveria ser normal, principalmente porque falhei, mas fiz um esforço sincero para não ir embora da vida de nenhuma das meninas que conheci após descobrir que eu era essa pessoa. Não adianta, não é meu esforço, ele não muda nada, eu vou continuar fracassando. São as coisas que aprendo que trazem à luz detalhes desse problema e aí, vendo por partes, consigo matar pedaço por pedaço. Quase consegui com a Miss Maldade! Ainda não fui derrotado.
A Misticismo, no entanto, faz parte do clã dos heartbreakers. Ela acredita mesmo que nossa natureza deturpada é algo positivo, algo para se usar, algo para se divertir, algo que deve ter como reação “abrir a mente” e “deixar fluir”. Ela acredita mesmo que corações devem ser troféus, que ela deve roubá-los e deixá-los na sua prateleira. Faz isso sem nenhum remorso. Talvez até tenha se induzido a acreditar que está fazendo um bem às suas vítimas.
Era com esse tipo de gente que estava começando a conversar, não fazia a menor idéia de que isso existia. Não para mulheres. Nós homens, como homens, sabemos bem o quão longe um homem pode ir pelo prazer quando tem uma mente depravada, então sabemos da existência do clã dos heartbreakers para homens. Mas e as mulheres? Como podemos saber o quão longe uma mulher pode ir pelo parasitismo quando tem um coração depravado, se sequer sabemos o que é um coração?
Foi com uma dessas pessoas que comprei briga pela Miss Bondade.
Conhecer mulheres do clã dos heartbreakers faz você entender melhor o porquê das mães serem tão protetoras com seus filhos, em especial seus primogênitos. Mães são mães, são experientes, já protegeram seus maridos de muitas heartbreakers e sabem bem quem são essas mulheres. Elas sabem que, mesmo conhecendo a essência do heartbreaking, não dominam completamente as técnicas das heartbreakers da geração de seus filhos. Sempre tem um truque novo que ela não poderia pegar por estar defasada, que depende do caráter e das habilidades do filho para contornar. Meninas, quando pensarem em entrar para o clã, lembrem-se daquele bebêzinho lindo que foi seu irmão mais novo, seu priminho mais paparicado, como você amou pegá-lo no colo; lembraram? Alguém do seu clã vai destruir esse bebê e vai fazer isso rindo.
Quando a mãe não gosta da sua namorada você, primeiro, tem que entender se ela só está fazendo a quarentena ou realmente não gosta, e depois obedecer porque ela sabe o que está falando. O clã dos heartbreakers está lotado de zumbis que não fazem a menor idéia de que estão ali dentro, todos eles conduzidos por meia-dúzia de pessoas que sabem o que está acontecendo e insistem em transformar o romance em um jogo cuja vitória é a corrupção das mentes e corações das vítimas, porque sua vida de diversão depende dessas mentes e corações. A Misticismo faz parte da elite da meia-dúzia na Pequena Londres.
Que história assustadora, não é?
Você quer saber de uma coisa? Isso é ridículo.
Essas pessoas são ridículas, tristes, são engraçadas de tristes. Quando não tão tristes que não dá nem pra ser engraçado. Elas ficam enviando seus soldados, um a um, para tentar chocar a sua imaginação injetando imagens que, caso tenha uma moral abalada (o que é o caso de quase todas as pessoas num mundo como o nosso, convenhamos), você simplesmente cai. Isso não funciona com pessoas íntegras porque elas rejeitam, sentem repulsa, nojo, e vão embora.
Em mim, isso criou um verdadeiro monstro. Recapitularei dois pontos do capítulo anterior: imaginações perversas se comunicam, uma é capaz de emitir um sinal de perversão e a outra é capaz de receber esse sinal de perversão; pedi ao Pai das Estrelas que ele me ajudasse a desarmar as bombas da minha imaginação e ele me ajudou. Certo. Recapitularei, agora, uma palavra de algumas linhas acima: Chessmaster.
A Misticismo constantemente emitia sinais de perversão pra mim nas nossas conversas pela internet. Ela queria me mostrar fotos com partes específicas do corpo, incluindo as íntimas, e me bombardeava de mensagens sugestivas me incentivando a pedir por elas. Eu reconhecia os sinais, eram os mesmos da “firma”, mas não poderia simplesmente rejeitá-la e afastá-la de mim. Ela estava atacando profundamente minha personalidade melancólica, sendo um tipo de mulher que tirava dela a esperança não só em uma pessoa, mas em todas as mulheres; pelo excesso de figuras femininas razoavelmente ruins que tinha conhecido na época, a Misticismo estava dando uma anestesia na figura de boas mulheres da minha mente.
E Chessmaster não percebia, mas sentia isso. E estava nervosa. Muito nervosa. Não conseguia só rejeitá-la, precisava feri-la por ter emitido. Confesso que só escrevendo o que estou escrevendo agora consigo perceber como estou mal, envergonhado, de ter participado disso. Agora já comecei a escrever, vou até o fim: é isso o que sou, meu querido leitor. Consegui achar na minha imaginação a maneira que mais deixaria os desejos da Misticismo frustrados, que mais faria ela se sentir mal por ser quem era, ao mesmo tempo em que não poderia demonstrar isso me ofendendo porque teria de assumir que estava tentando me capturar, e usei.
Como disse mais cedo: o mal é previsível, ele sempre deixa um rastro. Não existe uma maneira de alguém ser perverso contigo sem deixar uma oportunidade de ser aprisionado na própria perversão, quando alguém faz o mal a você essa pessoa automaticamente recebe uma dívida contigo, ela depende de sua inocência ou bondade para que você não a faça refém de seu próprio erro. Quando alguém é perverso com a minha imaginação é muito provável que só se liberte através da bondade, porque minha inocência está descartada. Mas não há bondade para Chessmaster.
Em uma semana de conversa sabia tudo sobre a Misticismo sem ela ter desejado me contar nada. Sabia que ela praticava rituais satânicos, bruxaria, porque alguns de seus desejos só poderiam ser resultado disso e então a pressionei até ela me confessar esses interesses. Sabia que ela estava ficando maluca, maníaca, estava sempre verificando meus passos, minhas palavras, porque sempre conseguia tirar dela informações que uma pessoa normal não poderia ter durante suas tentativas de fingir que se importava comigo. Ah, fingi uma depressão profunda também, montada com imagens do meu passado. Sabia que ela tinha problemas sérios de intimidade e sofria com isso porque aprisionei ela em conversas onde ela só poderia se manifestar intimamente e ela começava a ruir. Fiz muita coisa, algumas bem piores que isso que descrevi.
O que Chessmaster faz com a pessoa é encarcerá-la em situações onde ela vai ficar frustrada e irritada independente do que faça, até que perca a esperança de me afetar e, portanto, deixe de se frustrar para ficar só irritada porque continuo afetando ela. E se afaste de mim, tentando se defender. Foi exatamente o que aconteceu com a Misticismo. Depois de um tempo ela foi desistindo dos joguinhos e começando a se expôr de fato, foi parando de fingir paixão para começar a demonstrar o desprezo que sentia por mim, foi se unindo à pessoa que, há um ano e meio, espalhou boatos horríveis sobre mim porque impedi um amigo dela de aterrorizar uma amiga muito querida minha. O que ela faria comigo se eu acreditasse que ela sentia algo por mim? Isso, leitor, é melhor para todos nós que não imaginemos.
Ela nunca me deixou descobrir nenhuma banda que ouve, mas alguém aqui tem dúvidas de que deve ser essas músicas de gente que gosta de wicca?
A verdade é que a Misticismo venceu.
Não ela, ela em si. Ela ficou horrível. Por dias não conseguiu olhar pra mim sem sentir um misto de raiva de mim e vergonha de si mesma, e eu era terrível, procurava os olhos dela só para ver isso acontecendo. Depois parei de prestar atenção.
Mas o mal venceu. Pela primeira vez eu, o heartbreaker por engano, fui heartbreaker de propósito e comemorei um coração partido. Saí desse jogo exausto emocionalmente, com vontade de desistir de relacionamentos para sempre tamanha mancha deixada na minha noção de universo feminino, minha imaginação perversa foi usada com tanta freqüência que quase voltou a ser a imaginação predominante. Eu não deveria ter feito isso. Como disse, saí com as mãos sujas de sangue.
O Pai das Estrelas, com uma misericórdia absurda, permitiu que eu vivesse num céu sem estrelas por apenas um dia. Ele tinha o Plano para me receber de volta e aplicou um dia depois de eu ter comemorado esse coração partido. Não deu tempo de eu saborear a desgraça, mas a lição ficou. Deixo esse plano para o próximo capítulo, porque no próximo capítulo quero falar de amor, de Deus, de cura, de eternidade. Para esse restou a desgraça. Prepare o estômago, vem aí O Retorno de Chessmaster.
A formação de garotas para o clã dos heartbreakers é bastante triste. Antes delas prejudicarem os outros, elas precisam prejudicar a si mesmas. Precisam demonizar a imagem masculina em suas mentes, reinterpretar a realidade dessa maneira e se convencer disso.
Mulheres, não levem a mal o que estou dizendo, não fiquem tristes, tentem entender isso da maneira menos trágica possível: nós, homens, moldamos a realidade imaginativa de vocês. Nós temos o poder de fazê-las acreditar que tudo é lindo, nós temos o poder de fazê-las acreditar que a vida é uma tragédia. Vocês não conseguem entender o que estão pensando porque estão sempre pensando em tudo, o que significa que podemos colocar o que quiser em suas mentes e nunca notarão que colocamos isso lá. “Isso é porque a sociedade machista criada assim foi…” somos todos adultos, vividos de universidade, de movimentos sociais, certo? Deixa eu te contar uma coisa: o discurso da sociedade machista fomos nós, homens, que inventamos também porque sabemos que na matemática entra a libertação sexual que é boa pra caramba porque faz vocês liberarem mais fácil pra gente. Obrigado.
Isso pode parecer uma desgraça porque estamos no tempo onde as pessoas acreditam que moram em suas mentes, como disse no comecinho desse capítulo, então ao dizer isso pareço aprisionar vocês num estado impotente de subserviência ao ser masculino. Por isso pedi para se segurarem nas cadeiras. Não é realmente isso, vocês não são o que pensam, são o que são. Não tem problema que acordem amanhã pensando algo totalmente diferente de hoje, a mente está muito aquém da definição de ser humano, ela é só uma maquininha que a realidade e as pessoas colocam coisas dentro e aí você precisa decidir o que fazer com elas. Só tentem não deturpar a imagem masculina dentro de vocês, ela define se você vai ter que decidir ser uma boa pessoa num mundo onde você é rainha ou num mundo onde você é uma escrava sexual.
Homens, também não acreditem que estão com a corda toda por causa disso. Tem a contraparte, mas falarei dela depois. Um olhar de rejeição de qualquer uma dessas mulheres que você tem esse superpoder de “moldar a realidade” e seus dias na Terra estão contados.
Isso que eu disse, na verdade, não muda nada pra ninguém. Quem tem uma imagem boa tem uma imagem boa. Quem tem uma imagem corrompida tem uma imagem corrompida. Isso depende da realidade e da vontade de mudar, não do poder de decisão de cada um. O único conselho que fica é: meninas, tomem cuidado com os homens com quem andam e que ouvem. Servir mesmo essa nossa breve conversa só serviu para eu contar a história da Heartbreaker Prototype, a segunda e última história do dia de hoje.
A Heartbreaker Prototype era uma criança de dezoito anos que aparentemente estava afim de um amigo bem chegado meu, também de dezoito anos. Posso estar mentindo as idades. Ela era uma menina visivelmente afetada, demonstrava afeto todo momento de uma maneira meio sedutora, meio pornográfica. Assim que a vi demonstrando esse afeto percebi isso e, sinto muito garotas, bons amigos sempre comentam entre si se a pessoa por quem ele está caindo no charme presta, se alertam, e aliás eu não sinto muito não porque vocês fazem a mesma coisa. Acreditem, nem sempre é uma conversa grosseira, sabemos elogiar generosamente em segredo também.
Ela ouvia muito Lana Del Rey. É estranho uma pessoa que ainda não passou por tragédias emocionais, como essa menina dizia para ele não ter passado, ser muito apegada à Lana Del Rey. A Lana Del Rey é uma desgraça completa, é uma desesperança feminina corrosiva, reafirmadora de corações que não querem acreditar em absolutamente nada. Isso é bom para as mentiras que os homens contam para conseguir tocar em seus corpos, mas não é bom para as verdades que outros homens contam por amor — e com isso não estou me restringindo ao romance, bons pais estão sempre lembrando suas filhas como elas são lindas, bons irmãos resistem aos impulsos de xingar suas irmãs ao menos nos instantes onde elas estão realmente mal consigo mesmas.
Eu conheci a verdadeira Heartbreaker Prototype antes mesmo de conversar a sós com ela pela primeira vez. É claro que internamente dei algumas risadas e achei fofa a inocência do meu amigo de acreditar que estava afim dela, mas não era engraçado. O desastre era iminente. Só uma pessoa poderia acreditar que tinha poder de transformar tudo num tabuleiro e jogar um jogo: Chessmaster.
Assim, devo dizer, não foi nada maléfico como da outra vez. Eram dois adolescentes com seus problemas, uma menina tapeando um menino, só, nada demais. O Chessmaster foi um impulso que se manifestou mais no cálculo dos momentos, porque minha conversa com cada um deles não tinha muito a ver com induzi-los a agir, tinha a ver com fazer cada um compreender o que estava acontecendo dentro de si naquele momento.
Foi uma situação que foi se revelando bastante triste pra mim, me envolvendo além do necessário. A menina não era apenas uma heartbreaker, havia uma parte dela que gostava mesmo do meu amigo como amigo, mas ela estava perdida nos impulsos de quem tem uma imagem masculina deformada. Ela constantemente jogava com ele, seduzia ele, não por raiva mas porque só sabia se comportar com os homens dessa forma. Ele, bem, não faz a menor idéia do que é nada disso: é um bom garoto de igreja sem uma imaginação tão perturbada quanto a minha, foi mais sortudo que eu nesse aspecto, embora eu tenha muito carinho pela minha imaginação apesar do que ela me faz sofrer.
Nasci debaixo de um céu estrelado por um propósito, não por um engano do pai celestial.
Ela sabia que era uma heartbreaker? Um dia fiz o teste. Com algumas perversões que já tinha encontrado nela dei-lhe uma rasteira emocional e fiz com que me confessasse que queria destruir homens, que gostaria de me destruir, ela até mesmo me descreveu o método que usaria pra isso. Ela me disse isso tudo chorando, de raiva, não só dos outros mas de si mesma também. Sentia-se mal por isso, mas estava ali, ninguém poderia negar, tampar esses impulsos com mentiras só faria com que eles se manifestassem nas piores horas.
Se ela não sabia que era uma heartbreaker até então, bem, ficou sabendo.
Chegou no ponto onde eu sabia tudo da vida dela, poderia ser namorado dela se quisesse, e meu amigo que acreditava estar afim dela não sabia nada enquanto ela sabia tudo dele. Um dia eu e ele, tomando um bom sorvete, conversamos a respeito disso e de várias outras coisas e ele começou a perceber que todas as pessoas ao redor dele tinham razão: ele não estava afim dela, ela tinha manipulado seu coração e feito com que ele fechasse todas as portas de sua mente, os pensamentos brigavam entre si e não chegavam ao consenso sobre o que ele achava dela.
Entende o poder que as mulheres têm sobre os homens? Os homens não enxergam seu coração com a naturalidade que as mulheres enxergam, homens precisam dialogar com seu coração para entender mais ou menos o que estão sentindo enquanto as mulheres já estão vivendo o coração o tempo todo. Quando você entrega um coração a uma mulher está entregando as portas dos seus desejos, está dando a ela um poder quase autoritário sobre o que vai ter vontade ou não de fazer. Se faz uma música por mês e ela se agrada com as suas músicas, vai acabar fazendo uma música por semana. Você escreve cinco vezes mais se sabe que ela vai gostar (se eu estiver casado quando sair o segundo Mighty №9 vocês estão muito ferrados). Por outro lado, se ela quiser, ela fecha seu coração de uma maneira que você não tem vontade sequer de viver.
No fundo todo mundo sabe disso mas ninguém bota em palavras. Primeiro por não saber as palavras, segundo porque é muito vergonhoso para os homens assumir que um controle tão importante como esse está nas mãos das mulheres, seres tão mentalmente frágeis. Assim como é meio revoltante para as mulheres ler aquele parágrafo do início dessa história e assumir que os homens, seres tão burros que fazem guerras, não vão ao médico e não abaixam a tampa da privada após mijar, possuem tanto controle sobre suas convicções.
O mundo é isso aí. Todo mundo materialmente dependente de todo mundo. Somos todos impotentes.
Alguns meses depois a Heartbreaker Prototype começou a namorar um rapaz que não conhecia muito bem. Alguns amigos meus o conheciam e até eram amigos, mas depois de um tempo ele se afastou de todo mundo. Ela também tinha desaparecido da vida de todos, inclusive da minha.
Ah, um detalhe importante: nós nunca tivemos uma conversa normal. Normal, mesmo. Ela sempre estava contando seus problemas, ou confessando seus pecados, ou querendo discutir alguma daquelas teorias malucas que estudantes de cursos de humanas precisam aprender. Eu sabia tudo dela, ela não sabia nada de mim. Ela sabia das minhas histórias. O que ela conhece de mim é o que você, leitor, conhece do Escritor, do Homem Por Trás Da História Da Pequena Londres, e garanto que não é muita coisa, a não ser que você seja um leitor que convive comigo e então exijo que me conte o que achou e me dê um abraço porque ninguém nunca tem tempo pra ler o que escrevo! Absurdo, né? Acredita que tem gente que acha que vivi isso? Ah é, você também acredita, desculpa.
Certo dia ela me mandou uma mensagem, bem quando estava próximo de ter oportunidade de sair com ela, então avisei a ela e ela falou que precisava sair comigo. Bem, não sabia o que ela tinha se tornado, e conforme íamos conversando ela demonstrava que mesmo namorando não tinha melhorado a mania de estar sempre tentando seduzir os outros, então obviamente fui de Chessmaster ligado. Até deixei a primeira carta do jogo um dia anterior nas mensagens dela: avisei que tinha problemas com certo tipo de comportamento, mesmo que não tivesse, só para ver se seria algo que ela endossaria ou descartaria por mim.
Ela descartou.
No fundo, ela é uma boa pessoa.
Quando saímos foi a coisa mais engraçada do mundo, que seria trágica se eu não estivesse preparado para exatamente isso, e blindado contra exatamente isso. Ela agia romanticamente com certa constância, fazendo aquelas coisas que só namoradinhos fazem e me deixando num misto de constrangido e uma sensação que não sei descrever mas é o que se passa no seu coração quando você levanta uma sobrancelha e diz com ela “eu sei o que você está fazendo”. Conversamos de muita coisa sobre ela, sobre o relacionamento dela, sobre minhas viagens, sobre várias pessoas. Nada sobre mim de fato, como sempre. Não sou tão tonto.
Depois desse completo fiasco heartbreaker voltamos para as nossas casas, de onde ela tentou partir meu coração da última maneira que tinha sobrado: o clássico “foi meio chato, se estivesse com outro homem [meu namorado] seria melhor”. Meninos que vão passar por isso um dia, deixem-me contar um segredinho a vocês: essa é a pior coisa que alguma heartbreaker pode te falar porque ela entrega absolutamente todo o jogo com isso, nenhuma alto-escalão é tão tonta ao ponto de usar isso. Todo o jogo. Ela entregou a alma de bandeja, você precisa ser muito idiota pra cair nessa.
Mas quer que eu seja sincero? Mesmo que tenha utilizado táticas, que tenha montado o tabuleiro, eu não estava jogando. Essa história é confusa e meio doente, eu sei, mas a verdade é que conversei com o Pai das Estrelas antes de entrar, ele queria que eu entrasse e disse para pensar que era por ela. Senti o orgulho de ter vencido “o jogo” por alguns dias, confesso, porque sou um homem tonto e idiota, só que o ponto nunca foi esse. A minha resposta a ela foi sincera.
Não revelei o que havia de errado com isso, e não vou revelar aqui porque gosto dela como pessoa. Quem quiser conversar comigo depois para se sentir melhor porque caiu no truque eu conto, mas não vou martelar numa história como poderia destruí-la porque isso a destruiria retroativamente e então tudo seria perdido.
O que disse, com sinceridade, foi que fiquei feliz por isso. Meu ponto nunca foi ser o namorado dela, substituir o namorado dela, superar o namorado dela. Só queria que ela entendesse que nem todos os homens são animais descontrolados incapazes de resistir aos seus impulsos, que mesmo uma pessoa como eu, que percebe tudo, poderia simplesmente rejeitar tudo isso e não encostar nela. Queria que ela confiasse no namorado dela, porque eventualmente essas questões iriam aparecer e ela não poderia ter esse posicionamento. Posso ser muita coisa ruim mas imoral não, quem está num relacionamento está num relacionamento independente do que está acontecendo ali dentro. Acho que ela estava cansada de ouvir isso e sempre ver o contrário acontecendo, então não perdi tempo tentando convencê-la, só mostrei a ela e pronto.
Na verdade, descobri que não era um monstro imoral também. Foi um medo que sempre tive. Lembra o que o Pai das Estrelas disse a mim? Ele disse para pensar que era por ela para sossegar o facho, porque era sobre mim. O verdadeiro Chessmaster da história foi o Pai das Estrelas.
Sempre fui a pessoa que teve medo de, por ter todo o passado assustador que vocês leram nesse capítulo, ser imoral. Vivia fechando as portas para relacionamentos porque tinha medo de abri-las e, vindo pessoas completamente erradas, aceitá-las por falta de controle próprio. Nunca testei meu controle próprio, sempre encarcerei as pessoas porque não queria testá-lo, mas não tem o que testar. Eu não sou imoral. Isso não é uma verdade parcial, é uma verdade absoluta.
Esse episódio provou isso e me libertou dessa estranha paranóia.
Quanto à Heartbreaker Prototype? Não sei mesmo o que vai acontecer, não sei nem se me importo. Ela vai ter um longo caminho digerindo tudo o que aconteceu, dependerá dela se o resultado será bom ou ruim.
Vê? Existe todo um mundo de desgraça que você não consegue escapar ficando parado, precisa reagir. O mundo é uma desgraça, você não pode querer mudá-lo, mas também não pode querer viver o que ele impõe ou vai se tornar uma desgraça também.
O light fuse and get away me protege de querer viver o que o mundo impõe. Ele pode não saber proteger da melhor forma, mas não espero que alguém saiba. Ele pode acabar capturando inocentes também, é a vida, pedir perdão às vítimas é necessário mas não vai mudá-lo, a vida vai me dar as situações e Eu tenho o poder de torná-lo menos vilão e mais herói em cada uma delas.
Então ele vai poder dormir mais tranqüilo de noite, chorando menos que é a parte má da minha vida, que se não existisse tudo seria melhor. O mesmo impulso que fez seu namorado tão difícil de conquistar faz ele tão resistente às outras mulheres, é assim que funciona.
Se foi ele quem se convenceu e disse que você é a mulher da vida dele, significa que ele tem o poder de decisão, o controle de si; sei disso porque nunca consegui dizer isso a uma mulher. Se ele se engana uma vez, duas, tudo bem, mas se diz isso para todas aí temos um membro do clã dos heartbreakers.
Se foi você quem disse, o que garante que outra mulher não vai dizer o mesmo e ele aceitar? Nada garante o contrário também, tudo bem, não acho que seja regra, mas tenha certeza (por favor, tenha certeza!) de que não se sentirá insegura com isso porque muitas meninas se sentem. Sei que se sentem. Na intimidade as pessoas são muito inseguras.
O que quero dizer com isso é que o light fuse and get away, fora de controle, é um impulso complicado. No entanto, na medida certa, ele é o que garante a existência do romance. Também é ele a insegurança carinhosa que salva um romance, ao inventar do nada motivos para você sorrir e não ir embora, porque ele precisa de você.
Não o odeiem.
E quanto a mim, leitores? Podem continuar odiando.