Série: o fluxo

Não gosto de crítico de música

2 de outubro de 2024

Você não é indispensável, crítico de música, mas pode tornar o mundo mais interessante se quiser. Então, por favor... queira.

O assunto deve ter esfriado o suficiente para eu poder falar com tranquilidade aqui: não gosto de crítica. Talvez não me importe muito com crítica de cinema, porque não sou uma pessoa muito interessada em cinema. Talvez também não me importe tanto com crítica literária porque eu não procuraria uma crítica literária nem que me pagassem. Mas existem dois tipos de críticas que me incomodam muito quase sempre que esbarro nelas: a crítica de videogames e a crítica de música. Talvez eu também não goste muito das vezes que tenha esbarrado em crítica de animes e mangás, mas não consigo me lembrar tanto delas para tocar nesse assunto aqui.

Pra falar a verdade, eu não pretendo falar sobre crítica de videogames também. Prefiro me ater à crítica musical.

Não gosto de crítica musical. Não gosto do que motiva a maioria das pessoas a falar de música. Não me solidarizei com o rapaz que, pouco tempo atrás, viralizou por criticar uma artista da Zona Sul do Rio de Janeiro que eu provavelmente não conheceria se não fosse pela viralização da crítica. Minto, a princípio me solidarizei um pouquinho sim, até que alguém comentou sobre o rapaz falar sobre João Gilberto sem entender João Gilberto. Só aí fiquei interessado o suficiente para conferir, eu mesmo, a crítica, e achar péssima do começo ao fim. Conforme o texto for passando eu vou lembrando o motivo de ter achado péssima, não me lembro mais do conteúdo da crítica mas tenho certeza que, se ela tivesse sido boa mesmo, eu teria guardado algo a respeito disso. Consigo me esquecer de tudo o que leio, talvez por ler muita besteira na internet e dormir pouco, mas não esqueço quando algo é bom o suficiente para me marcar: uma crítica de Head Hunters do Herbie Hancock na Pitchfork me fez ouvir o álbum, ainda que quase ninguém consiga me fazer ouvir um álbum.

Já devo ter lido algo bom sobre Clube da Esquina, já devo ter lido algo bom sobre Between Nothingness & Eternity do Mahavishnu Orchestra, existem boas críticas, mas é muito difícil fazer uma boa crítica musical porque ela precisa ser musical o suficiente para que as palavras consigam alcançar, de alguma forma, o som. É preciso entender de música para falar de música. Ou talvez não seja preciso, dependendo do aspecto que se deseja tocar. Acho que existe uma sensibilidade auditiva, junto com o interesse nos artistas, em seus contextos sociais, sua cena, suas ideologias, intenções, que é capaz de render uma crítica apaixonada tocando em diversos assuntos na intersecção da obra artística com a arte de ouvir bastante interessante de ler - disso tudo, porém, só julgo indispensável a sensibilidade auditiva. Mas há, também, certos assuntos que só consegue tocar quem já passou horas tentando encontrar um timbre específico para algo que estava arruinando sua mente, outros que só alguém que já tentou confeccionar um som com um conjunto de instrumentos consegue tocar. Há assuntos que só quem se fascinou tanto com um artista que tentou imitá-lo, quem sabe até aprender a tocar um instrumento pra isso, consegue tocar. E há quem, mesmo passando por experiências como essas, nunca consiga tocar nesses assuntos.

O problema de boa parte das críticas que leio é que elas são vazias, imbecis, desnecessárias. Diz-se sobre "o artista ser sensível demais e não poder ouvir uma crítica", como se o processo de criação com uma banda, ou ainda que seja só você e mais alguém responsável pela mixagem e pela masterização, não carregasse por si só uma cacetada de críticas. Como se essas críticas não fossem até mais difíceis de aguentar, até porque elas influenciam diretamente no resultado final, eliminam sons que você considerava tão importantes, que pareceram tão bonitos quando "saíram", que parecem ter descaracterizado a obra quando foram editados. O ponto disso não é falar que músicos são super resistentes a críticas porque não são, são mesmo umas taças de vidro como qualquer outro artista, o ponto é que muitas críticas musicais que li se sentiram capazes de descrever e criticar estéticas sem sequer entenderem o que estava acontecendo ali. Não houve interesse do crítico em compreender, não houve entrega, a pessoa só queria muito ter algo pra falar. 

A crítica musical, talvez como todas as críticas, sente-se capaz de assumir esse papel do "curador". Essa pessoa que vai encontrar defeitos que justifiquem você não perder tempo com a obra, ou que encontra algo extraordinário para que você invista seu tempo na obra, sempre nessa balança do investimento de tempo. Nesse exato momento estou ouvindo um solo meio idiota de bateria do Ted Kirkpatrick da banda de thrash metal progressivo cristão Tourniquet, não estou achando que seja um excelente solo de bateria, as pessoas da platéia estão amando porque elas são metaleiras suadas e acham que ter um kit com pedal triplo, 150 tambores, 300 pratos e mais uns latões de Suvinil significa tocar bateria bem pra caralho, além de serem cristãs e nunca terem visto uma banda de metal progressivo na vida então as referências ficam ainda mais prejudicadas. Mas estou ouvindo e, apesar de meio idiota, acho meio interessante também. Por que não seria interessante? Por que eu descartaria a cultura do solo de bateria do metal progressivo, por que isso soaria irrelevante pra mim? Aliás, o que raios é um bom solo de bateria? Talvez eu tenha alguns palpites mas não sei se me sinto capaz de botar a mão no fogo por eles. A verdade é que estou restrito a falar poucas coisas sobre o solo de bateria meio idiota do Ted Kirkpatrick: posso falar sobre o que estou sentindo nesse exato momento, que de certa forma é o que estou fazendo; posso falar que, de uma perspectiva mais técnica, o solo talvez seja muito melhor do que estou dizendo aqui, ele não toca notas aleatoriamente, está contando sua história, possui densidade, não causa nenhum incômodo no controle do tempo e sua precisão parece boa aos ouvidos; posso falar que o pessoal está curtindo e é o que importa; posso falar sobre a qualidade da gravação, a qualidade do som, a qualidade dos instrumentos, ainda que esteja ouvindo praticamente um bootleg; posso fazer uma análise da cena do thrash metal progressivo cristão e explicar as origens, comparar o Ted Kirkpatrick com o Neil Peart e tentar provar por A+B que ele é um imitador fraudulento, ou quem sabe polemizar e dizer que ele é melhor que o Neil Peart ou o Mike Portnoy usando regras arbitrárias que no fundo eu mesmo inventei agora, ou estou tirando de um acordo coletivo igualmente irrelevante.

Nada disso serve pra uma "curadoria" mas, não só isso, eu não aceito mais que alguém seja capaz de escolher por você o que você deve ouvir. Não acredito no crítico como esse proto-algoritmo, como essa lista de Spotify intelectualizada que escolhe músicas pra você mas você acredita que está tudo bem porque as palavras do crítico são mais bonitas que as do algoritmo oculto. Ainda que você não entenda nem a lógica do algoritmo e nem a lógica do crítico, são duas caixas-pretas que se escondem, e talvez os critérios do crítico sejam ainda mais obscuros. Talvez você não deva acreditar numa crítica minha dizendo que o primeiro do The Vaccines é péssimo porque a música Post Break-Up Sex foi escrita pra você, é o seu momento ali, não sou eu que vou te convencer que você não deva correr pro abraço.

Também não acredito que o crítico musical tenha o papel de "despertar" o músico pra nada. Aliás, crítica sonora sem fundamento e sem um pouco de gentileza não serve pra porra nenhuma. Sei muito bem a diferença de alguém que ouve uma música ou performance minha e diz que o teclado ficou muito estridente e ele não deveria ser assim pra alguém que ouve e diz "está sobrando no agudo, tenta diminuir um pouco", e acho que qualquer músico que já esteve num estúdio ou tocando com alguém acompanhando na mixagem sabe. Qual músico não sabe a diferença de alguém dizendo que você não sabe compor porque um trecho ficou estranho, pra alguém notando que um acorde está fora do lugar e te passando a sugestão de qual acorde ficaria harmônico de fato, sem perder a ideia do que você queria fazer ali? Se você é músico e não sabe, apesar de já ter entrado em contato com gravadora, com estúdio, com qualquer coisa do tipo, sinto lhe informar mas você está num caminho bem complicado porque isso acontece, é normal acontecer. Você não é obrigado a aceitar crítica vagabunda de ninguém, nem do seu produtor, a não ser que isso lhe renda algo em troca.

Essa mania de querer educar o músico através da crítica é uma maneira de enganar trouxas que nunca fizeram música na vida. As pessoas sentem que estão aprendendo sobre o processo de criação musical por meio de palavras que só poderiam ser ditas por quem nunca criou nada. Li uma crítica sobre o novo álbum do Perfume dizendo algo sobre o processo do Yasutaka Nakata que só poderia ser dito por quem não tem interesse nenhum na sua estética, dizendo que é a primeira vez que ele fez algo que ele faz desde o final dos anos 90 com o High Collar Girl do capsule. Sabe? O que você sabe sobre criação com vozes? O que você já treinou sobre criação com vozes, no seu chuveiro que seja?

Acredito no papel de artista do crítico musical. Acredito sim que todos nós, que ouvimos música, temos o direito de sermos pouco gentis ao fazer comentários de bar, como por exemplo "o único álbum bom do Lush é o Scar", "Moonchild é uma bosta quando se força a ser R&B", "Mike Portnoy é um péssimo baterista", "metalcore é coisa de vagabundo", ou direito de sermos gentis até demais como "(quem você quiser aqui) é a melhor artista/banda que existe". Faz parte da nossa beleza ter reações enérgicas a qualquer experiência musical mas, na hora de elaborar uma crítica, é necessário ser artista. Faz-se necessário sim a gentileza porque, pelo amor de Deus, você não pode esperar escrever algo bom de uma música para a qual não se entregou, ainda que seja o debut do Nivaldo. Não quer se entregar? Não escreve, é simples. Você não tem o direito de analisar os sons como se eles tivessem vindo ao mundo por acaso, como se ninguém tivesse pegado um violão que seja, balançado as cordas, combinado com sua voz e dito "waow"; como se o hit mais filho da puta desse verão não tivesse passado por algum maluco que ganha muito dinheiro pra analisar os padrões estéticos mais grudentos e infecciosos, como se isso não merecesse uma crítica tão digna que fosse capaz de expor a indignidade do capitalismo sonoro sem esquecer que ainda é um som, ainda é um acorde maldito mas mágico que faz maioria das pessoas conseguirem cantar uma música inteira com base nisso, dançar numa balada xexelenta e talvez até transar depois. Porque é uma música. Você se dispôs a escrever essa crítica, você precisa falar de música. Você é obrigado a isso. Você precisa falar dessa música e você precisa falar de você, como ouvinte dessa música. Se não ficar claro que está falando de música tudo bem mas, se quer fazer com que fique claro, vai ter que bancar.

E o artista não é obrigado a porra nenhuma, o crítico musical não tem o papel moral de iluminar ninguém. Nem o artista, nem o ouvinte. Como disse, acredito no papel artístico da crítica musical. Acredito na crítica musical como a experiência de ouvir uma música e sentir algo poderoso, seja bom ou ruim, não conseguir conter esse sentimento dentro de nós e transformá-lo numa obra, que muitas vezes exige até mais precisão do que a própria música.


De fato, como disse lá no começo, todo esse texto aqui foi escrito por causa de uma crítica muito ruim a um artista que eu não sabia que existia e, agora que sei, pretendo continuar ignorando eternamente porque sei que serão ignorados. O crítico musical na verdade nada mais fez do que levantar uma névoa de clichês sociológicos de moda pra falar da banda, assuntos como a famosa "apropriação cultural da bossa nova", usou de certo vocabulário musical para descrever alguns fenômenos embora eles simplesmente não tivessem respaldo nenhum na técnica de ninguém ali, conseguiu seu engajamento, conseguiu despertar até em mim vontade de escrever esse texto e dormiu feliz. A artista que foi criticada também conseguiu sua dose de engajamento e também dormiu feliz.

É irrelevante discutir a "apropriação cultural da pisadinha" de uma artista que será ouvida por uma subclasse de uma subclasse de uma subclasse do Rio de Janeiro. Tecnicamente existe a apropriação cultural que tem em suas raízes o racismo, mas... eu acho improdutivo chamar de apropriação cultural algo que nem conseguiu, nem vai conseguir, se apropriar de nada. Nenhum tio com carro de som vai trocar o Barões da Pisadinha por essa artista desconhecida ex-bartender de não sei quem na festa de final de ano da família, o máximo que essa artista vai conseguir nessa festa é que o tio que se sente superior aos outros porque é da classe média de São Paulo tente apresentá-la, aí todo mundo vai achar um porre e voltar pro Barões. Assim como na Zona Sul do Rio de Janeiro ninguém ouve Barões da Pisadinha então a ex-bartender no fundo não vai mudar em nada a vida deles. Estamos no século XXI e um dos grandes motivos para a esquerda não ser tão pop no Brasil é que nenhum cidadão se identifica mais com o Caetano Veloso da mídia, ele se orgulha dessa distância, agora imagine a sua ex-bartender. Ou seja, nem como crítica social isso prestou. Talvez seja importante lembrar que existem pessoas que desejam realizar "higienização" da nossa cultura popular mas acho que nossa cultura sofre ataques maiores e mais passíveis da nossa atenção do que esse mundinho autofágico.

Não é "positividade tóxica" não querer que críticas negativas sejam escritas, querer que sejam feitas apenas críticas construtivas. Levando o discurso por esse lado até é, mas o ponto é que não acho que se possa levá-lo porque não acredito que músicos queiram ler críticas construtivas, eles não pediram a opinião de ninguém. Agora, quem suporta essa quantidade de crítico péssimo se sentindo necessário? O que é insuportável são as pessoas jogando pra cima da música seus próprios delírios e fantasias de grandeza intelectual, e não existe maneira melhor de fazer isso do que com uma crítica negativa, já que ela parece demandar menos esforço afetivo e muito mais esforço dessa parte idiota do cérebro que fica arquitetando "argumentos" e sempre torna os textos uma máquina de frases desinteressantes, burras, incapazes de se situar num contexto, sem contar que invoca um caráter combativo asqueroso da pessoa que ama soar esperta cuspindo o que ela chama de verdades inconvenientes nos outros. Pode acontecer com crítica positiva e até mesmo com outras formas de crítica? Claro que pode mas, do que leio, é o negativo que sofre mais dessa doença. Então sim, estamos saturados de críticas negativas, pelo simples fato de que essas críticas costumam ser mais horrorosas do que as músicas que estão sendo criticadas.

Você não é indispensável, crítico de música, mas pode tornar o mundo mais interessante se quiser. Então, por favor... queira.


Que fique claro que não é uma crítica a ex-bartender, porque não ouvi. Pagando bem, posso acabar ouvindo. E eu gosto bastante do Caetano Veloso.

Você leu um capítulo da série o fluxo

escrito por nubobot42 narrado por lyra