olá, meu querido leitor. sei que esperava de mim mais histórias românticas, o encerramento da noite na pequena londres, mas uma verdade sobre essa cidade é que não há fim para as noites e não há apenas o romance. quanto às histórias românticas aguarde, há um fim para nós, destruidores de corações, filhos dos céus estrelados. há um fim para o nosso sofrimento e angústia, as nossas incapacidades, os nossos traumas e abusos, os anseios emocionais e espirituais que buscamos por conta das marcas de um passado perturbado, mas não estou aqui com esse objetivo agora.
ao leitor que não sabe do que estou falando, não sabe nada sobre a destruição de corações, tenho para vocês essa história aqui. ela não é bonita, mas é didática. aqui não falo de corações, falo de espíritos. aqui falo de anjos e demônios. aqui falo de um dos aspectos mais importantes da noite na pequena londres. para ele dediquei dois ou três parágrafos dessa novela romântica mas não bastou, eu sinto vontade de escrever sobre a batalha espiritual da pequena londres todos os dias. eu escrevo, nos meus olhos e depois na minha mente, todas essas histórias. e agora as escrevo aqui também.
o que está escrito aqui embaixo é propositadamente não-preciso. eu não sou um repórter, sou um contador de histórias. as coisas podem ou não ter sido ditas nessa ordem, essas palavras podem ter sido ditas como foram ou transformadas pelo escritor para melhor compreensão ou explicação da linha de raciocínio, mas tudo, absolutamente tudo, o que está aqui embaixo, existiu no mundo das palavras. se é da forma como o leitor imagina aí depende da imaginação do leitor, a qual eu jamais desejaria moldar, sendo esse escritor apenas uma criança.
aos nove anos de idade, numa briga que tive com meus pais, vim morar aqui. na rua. tenho vinte e cinco anos de idade. é, pensando bem… vinte e cinco menos nove… eu sei fazer conta, meu irmão, eu sou esperto. fui traficante, sabia contar dinheiro como ninguém. estou há dezesseis anos aí, vivendo, é mais da metade da minha vida. eu nem sei mais o que é viver de outra forma.
pra ser justo nem sempre estive nas ruas assim, só andando, só catando latinha pra conseguir meu dinheiro da comida. eu já tive casa, já tive carro, já tive muita coisa, o que eu nunca tive foi paz.
é até estranho vocês pararem o carro aqui, eu pensei “olha só, ou vieram me oferecer droga ou é a polícia”, de repente desceram uns marmanjos com pão e suco pra trocar uma idéia. que nadaver isso aí, mas eu gosto muito, trocar idéia com vocês é muito bom, o que vocês fazem é muito bonito.
mas então, voltando a falar da paz… sabe, vocês já passaram pela situação na vida onde sair na rua era um perigo enorme, onde você sabia que estava cercado de pessoas que queriam acabar com a sua vida? é, meu irmão, é assim que funciona não viver em paz. é a vida do cão, mas era a vida que tinha, né. eu agradeço a Deus por estar na rua catando latinha. vocês que manjam da bíblia, como que é aquele versículo? “de que vale ao homem ganhar o mundo e perder a sua alma”, é assim que fala? não sei, é um bagulho tipo assim, tipo isso aí que eu falei. eu tava sem alma, parceiro. vocês não têm noção do que eu passei não. eu sou muito mais estar aqui, catando a minha latinha, tá ligado? vestido desse jeito, sujo, nem lembro quantos dias faz que não tomo banho, que viver aquela merda que eu vivia antes.
o que eu sei é que Deus cuidou muito da minha vida. a minha mãe é evangélica, deve orar por mim todo dia a véia, minha família não é de muito longe daqui não. é daquele bairro, sabe, o Bairro Que Mais Tem Problema Com Droga Na Cidade. ela é firminha na igreja, mas eu tenho muita vergonha de voltar pra casa. nessa situação aqui? esquece. é complicado. aliás muito obrigado pelo convite pro culto, ou pro Ministério Das Almas Viciadas, mas como que vou chegar lá desse jeito? vocês vão me aceitar desse jeito? o segurança não vai barrar não? é muita vergonha, parceiro, a gente tá… na rua, usando essa roupa aqui, fedendo, como que chega na igreja desse jeito?
eu entendo, sabe, eu preciso de Deus. eu conheço bastante. ele me salvou de muita enrascada. pra começar eu nem sei como estou vivo, os caras queriam mesmo me matar. já tentaram me pegar várias vezes pra me mandar pra prisão, mas eu era ligeiro, sempre escapava, e quando não escapava e os caras me entregavam mesmo dava alguma coisa que eu era absolvido. ninguém me pegava não, eu era muito bom nisso. aí o que acontecia era que os caras chegavam em mim e falavam “é, pode rir, mas se não dá pra te mandar pra cadeia a gente vai resolver diferente. a gente vai te matar. fica esperto que quando chegar a hora a gente vai fazer questão de que demore bastante”.
e quando chegou, rapaz… é sério, eu não sei como sobrevivi, não era pra eu estar vivo não. e não só sobrevivi como não tenho cicatriz nenhuma, só uma aqui na cabeça, de uma paulada[objeto substitutivo] que tomei, mas eu tomei em todo corpo, os caras me arrastaram no asfalto e esfolaram minhas costas, saiu todo o couro das minhas costas. e olha só como ela tá! tá suave meu irmão, foi um pesadelo mas eu sobrevivi a isso, eu saí disso, e ainda fui restaurado dessa situação.
também tomei um tiro de doze nas costas que perfurou meus órgãos e o médico me perguntou se eu era evangélico. eu falei que não, né. aí ele perguntou se a minha mãe era evangélica. eu falei que sim, ela era. ele falou que então ela estava orando por mim todos os dias porque o trajeto da bala não foi normal, nada do que tinha acontecido dentro de mim era normal, não era pra eu estar vivo. é claro que não era pra eu estar vivo.
não vou dizer que foi fácil, que aconteceram essas coisas comigo e beleza, Deus curou. foi uma merda. por que que eu fiz isso? como se não tivesse doído tomar porrada sem parar, sentir as minhas costas ardendo em carne viva, tomar um tiro de doze. e como se eu não tivesse ficado um ano em uma casa com traumas de sair na rua. eu não conseguia sair, vocês têm noção do que é saber que a rua é um lugar hostil a esse ponto contigo? é claro que no meu lugar vocês também não gostariam de sair na rua, ninguém gostaria. ainda bem que hoje eu posso sentar aqui no meio-fio com vocês e trocar uma idéia, porque antigamente eu não tinha como sentar no meio-fio, tinha sempre alguém atrás dos meus passos pra me matar. quem é que aguenta viver assim?
eu tenho um coração, não é assim que as coisas deveriam funcionar. eu sei que mereci tudo isso, mas juro que tenho um bom coração. crime, crime mesmo eu já cometi furto, muito furto, mas já paguei por essas paradas aí. de resto nada nada. se vocês puderem orar inclusive por uma amiga minha que dorme com o pessoal lá no pontilhão por favor orem, ela tá fazendo hemodiálise, e vocês estão ligados como é a saúde da gente que tá na rua, cada vez que ela faz pode ser a última vez que ela faz. ou sei lá se estou com muito medo de bobo.
mas sei lá, meu, já fiz muita coisa errada nessa vida mas não sou tão ruim assim, só não sou muito bom também. já passei por muita coisa e estou aqui, de boa. poderia estar fazendo muita coisa má mas estou aqui, e prefiro estar aqui a estar onde estava antes, eu sei que a vida não foi feita pra se ficar fazendo maldade. é bom, sabe, conversar assim, poder sorrir. é triste eu estar aqui, se eu pudesse mesmo eu não estaria aqui, mas depois que a gente se envolve com droga é complicado. só quem usa sabe. algum de vocês aqui já usou? ah, já usou sim, então tá ligado como que é a fissura. e você já se livrou disso pra sempre? ah não? mesmo com Deus, indo na igreja, todo dia é uma luta, é isso que tá me dizendo? todo dia tem que recusar, todo dia te oferecem? é, é assim aqui na rua também. parece que quando você quer é caro mas quando você não quer é de graça.
eu acredito em diabo, sabe, porque não tem explicação pra sempre ter droga grátis quando você tá na fissura e quer resistir, não tem outra, isso é coisa de exu-caveira [nota do escritor: não sei o que é exu-caveira mas em todo “anjos da noite” alguém menciona isso]. eu não tenho força pra resistir não, é uma luta que eu não venço. queria viver assim que nem vocês, queria conhecer essa parte de Deus aí que dá força pra não aceitar uma droga porque eu tô ligado que vocês não têm força também, ninguém aguenta, bicho.
o ruim é que eu fiz muita coisa errada. sei lá, que bom que Jesus perdoou os meus pecados, é só na misericórdia mesmo, mas como que eu saio disso? já perdi muita oportunidade, quanta moça já se apaixonou por mim e falou “não, eu vou te tirar dessa vida, você vai sair dessa” e não sei que, não sei que lá, mas o caramba que aconteceu mesmo alguma coisa, de onde que mulher tira essas idéias? e uma vez, não faz muito tempo não, que eu tava ali na avenida do lado e passou um cara, baita carrão, e falou “mano, se quiser entrar aqui no banco de trás eu te levo pra minha clínica agora. já fiz parte dessa vida, sei como é, sei que não é fácil. sei que tu tá querendo usar um negócio nesse exato momento até, mas não importa. vamos?”, o pastor lá, me falou as paradas mas eu não quis ir não. trinta minutos depois bateu o arrependimento mas aí era tarde né, não adianta chorar pelo leite derramado. aliás eu não sei se quero me internar numa clínica aqui perto, tá muito perto da cidade, é muito fácil fugir e voltar pra cá, pra rua. tava afim de ir numa que tem lá em Jacarézinho. enfim, sei lá, tem a oportunidade, sabe, mas eu sempre perco. eu não mereço essas coisas. não sei se tem saída pra isso aqui. eu estou numa lista aí de tal clínica, se chamar beleza, vamos ver, mas não tenho muita fé não.
é isso aí. Deus abençoe vocês. valeu aí pelo lanche, pelo suco. espero ver vocês mais vezes, vocês são muito gente boa.
o escritor disse que também deseja encontrá-lo mais vezes, mas não na rua e sim na igreja. e nem mesmo sentado numa cadeira assistindo um pastor pregar, mas pregando e contando sua história de vida.
os anjos da noite agradeceram a Deus por, em apenas três e na chuva, terem encontrado um rapaz tão simpático e cheio de vida, com um sorriso tão bonito e tão receptivo a um abraço. nem sempre a noite na pequena londres é simpática e cheia de vida. nessa noite os presenteados foram os anjos.