já o gerson borges…
uma confissão meio triste: eu, gamaliel, tenho um acervo muito minúsculo de discos que ouço ocasionalmente. que ouço, mesmo já tendo conhecido, porque é uma delícia. que ouço dirigindo o carro, andando a pé, de dia, de tarde, de noite, de madrugada, debaixo de chuva, vendo uma lua cheia, uma lua vermelha, uma lua comum, no calor, no frio, em dias de sol, em dias nublados. pouquíssimos são os discos que me fazem querer explorá-los. pouquíssimos são os discos que são discos. talvez porque eu tenha esse problema de querer explorar o brasil musical protestante e o brasil, convenhamos, é pouquíssimo protestante. o protestantismo no brasil, sem muitos tratamentos para extirpar o que há de mais sórdido no americanismo (que nada tem a ver com a américa mágica, encantadora, que nós sabemos que existe) e num eurocentrismo feito de emulação de signos, de estruturas e conceitos “ótimos”, se assemelha muito a um comportamento de seita. a uma sensibilidade de seita. as estruturas do protestantismo brasileiro não são libertadoras, são limitadoras; não servem para te colocar fora do sistema, mas te aprisionar dentro de um sistema paralelo onde você não entra em contato com a terra, com as pessoas, com a sua própria identidade, com nada.
não entenda isso como uma crítica a uma igreja ou duas ou todas, entenda como crítica a um sistema teológico anti-antropológico. como descrição do comportamento da teologia protestante em reação ao solo brasileiro. a teologia protestante brasileira, de um ponto de vista antropológico, não é brasileira. isso é algo que as teologias pentecostais não enxergam, embora sejam bem capazes de receber essa informação positivamente ao compreendê-la com clareza, enquanto as teologias reformadas sabem mas abominam. porque a teologia pentecostal brasileira é uma teologia de solo, é uma teologia leiga, com suas complicações, que necessita de raízes, mas que ainda mantém a sua capacidade de dialogar com o brasil, dialogar com a favela, com a rua, com o sertão, é capaz de desprezar os parasitas da brasilidade em nome da liberdade do seu povo. difícil enxergar o que estou dizendo? talvez seja, mas tire os lobos, veja o que sobra. já a teologia reformada é uma teologia de resistência ao brasil: ela é uma instalação das tradições ocidentais e tem como essência a manutenção da supremacia do branco europeu, através de interpretações históricas européias, filosofias européias, hermenêutica européia (que alguns teólogos juram de pé junto que é bíblico. que não será encontrado em platão, aristóteles, santo agostinho e tantos outros, como se a reforma protestante fosse um movimento desligado da história); o pentecostal tem fé no coração, não na formação do pensamento, e nessa hora isso acaba se tornando positivo. em outras nem tanto, mas quero falar disso, do que é positivo.
não é que exista um debate teologia reformada x pentecostal. existem dezenas de teologias protestantes acontecendo no brasil há décadas, é que essas são as duas que possuem holofotes, que não disputam sua sobrevivência mas fiéis para encherem suas megaigrejas. mas não, o brasil não se trata disso. o brasil é pouquíssimo protestante, pensando por esse lado que expus, mas também é muito protestante quando pensamos na libertação que está no coração da reforma. é muito protestante, quando sonhamos um protestantismo que nos desperte para a nossa realidade.
o brasil é muito protestante, se o protestantismo for gerson borges.
a discografia do gerson borges é a única discografia com discos que eu, pensando bem, ouviria novamente. ouviria em todos aqueles contextos pra saber como é. aqui no interior norte do paraná há grande oportunidade para a exploração do gerson borges. nós, com nossos traumas do escravismo de quem veio do nordeste e das minas gerais para tentar uma nova vida e acabou não encontrando muita sorte, sofrendo nas mãos dos senhores do engenho capitalista-militarista, sem saber se nossas histórias estavam mais enraizadas nessas cidades de 500 mil habitantes próximas ou nos contos de lampião. a diversidade cultural brasileira no norte do paraná é enorme, sobretudo nessas cidades que não cresceram tanto, onde existiam dois ou mais êxodos ocorrendo simultaneamente.
êxodo.
ainda que seja muito comum ao protestante elitizado torcer o nariz para as teologias latino-americanas, como a da libertação e, de certa forma, a da missão integral, é impossível negar que o brasil tem no êxodo não só a sua chave hermenêutica, mas sua chave histórica. um eterno egito colonial que nos aprisiona, que deseja nos manter escravos, que responde com mais dureza toda vez que pedimos mais liberdade. e nós, constantemente, esperamos o moisés. não, não estou elaborando uma teologia, mas perceba como historicamente nós esperamos mais um moisés do que um cristo – existe tanta escravidão física no nosso modo de viver que a libertação exterior, por vezes, é mais desejada que a libertação interior. e isso não é um “pensamento de esquerda”: o atual presidente, “messias”, foi eleito com a conversa de nos libertar de um “establishment” que não só nos desmoralizava, mas roubava nosso dinheiro, nosso labor, nosso tempo gasto no trabalho duro, nossas horas extras para dar a vida digna aos nossos filhos porque não a tivemos, que está nos tornando cada vez mais refém de bandidos que nos aterrorizam, nos agridem, nos violentam; o pobre que foi convencido a votar na atual promessa de moisés foi convencido dessa maneira, o burguês já pertence a outra conversa. de qualquer forma, isso é tolice e não passa de conversa, porém essa parte do templo não tem muito conhecimento em política para continuar o assunto.
então há, dentro do brasileiro, o desejo por libertação. e há uma resposta negativa do egito toda vez que a pedimos. hoje, há uma certa clareza de que o faraó deseja que trabalhemos até morrer e não façamos muito além disso, que sequer servimos para algo além disso, o que não deixa de ser uma resposta do egito às nossas vãs tentativas de entrar nesse mundo fantástico daqueles que acreditam ser deuses, de querer entender o que há tão de legal nessa tal de viagem para países de primeiro mundo, querer samplear coisa chique para “fazer o nosso som”, jogar videogame de última geração sem precisar ir na casa do primo rico, querer entrar numa universidade e entender o que esses deuses aprendem e até mesmo criar um espaço para nós, os escravos hebreus, intelectualizarmos nossas próprias tradições.
moisés é muito mais do que um libertador físico. aprendeu nos palácios egípcios e através de suas mãos a tradição hebraica saiu das mentes dos escravos e se tornou física, palpável, legível, compreensível. moisés tinha o papel fundamental de dar dignidade ao seu povo, não pode ser apenas detalhe que, para isso, ele tenha aprendido com os egípcios o que é ser um povo digno, soberano, nobre, livre, justo e tantas outras coisas. bem como aprendeu com os egípcios o que é não ser um povo inclusivo, que não considera outros povos como se parte do seu, atitude que Deus veio a repudiar lembrando os hebreus de que “deveriam ser bons com os escravos, pois um dia foi povo escravo”.
o protestantismo de gerson borges é esse protestantismo. uma obra verdadeiramente mágica, nossa, brasileira, que reconhece o nosso coração cheio de desejos de liberdade, às vezes puro, às vezes revoltado. a obra de gerson borges é o primeiro grande exercício de “contextualização bíblica” para o brasil. é a primeira vez que a bíblia vem não como instrumento de opressão nem como remédio amargo imperialista, mas como instrumento de libertação. ou, talvez, eu esteja mentindo sobre ser “a primeira vez”, até mesmo para a “primeira vez para os protestantes” já que a ditadura militar apagou vários tesouros protestantes menos alinhados com o projeto de poder militar, mas posso dizer que foi a primeira obra protestante que conheci que o faz. e olha que até conheci obras protestantes brasileiras boas, decentes, algumas já comentadas aqui e outras não, e para mim é a primeira. não existe mais possibilidade de não compreender a parábola do filho pródigo com um disco como “a volta do filho pródigo”, sendo direto, e sendo indireto não existe como não entender tantas outras coisas agora. é didático ao coração do brasileiro. nos compreende, dança conosco do nosso jeito, conversa sobre dores que são as nossas, luta nossas lutas. e não é apenas uma aventura totalmente introspectiva espiritual para que eu tenha experiências entorpecentes, é uma aventura que está ao meu redor, de modo que posso ouvir dirigindo o carro, andando a pé, de dia, de tarde, de noite, e por aí vai. sempre haverá novidade, sempre haverá conexão.
talvez porque gerson borges seja como um de nós. talvez porque gerson borges seja um de nós. isso me deixa feliz, mas também me revolta. por que o francisco de almeida, nascido em astorga no paraná, evangélico, precisou ser desconstruído emocional e tecnicamente para produzir clones de hillsong? por que o nelson silva, de araraquara no interior de são paulo, passou pelo mesmo processo? por que as igrejas são tão descaracterizadas, desconectadas, da nossa realidade? francisco de almeida é um de nós, nelson silva é um de nós, o senhor pastor que está ali na frente pregando também. todos somos brasileiros. e por que fugimos do brasil, preferindo aderir ao discurso de pessoas que, no final das contas, negociam nossas cabeças com o faraó? a evangelização do brasil exige mesmo um genocídio cultural, exige mesmo apagar a nossa história, as nossas tradições, o nosso povo? e, se sim, por que a europa não precisou fazer essa decisão?