A outra observação é sobre Mighty No. 9 ser um “plataforma 2D” e não um “Mega Man”: não corrigirei, nem simplesmente ressaltarei, mas explicarei melhor agora que tenho mais instrumentos (o jogo todo, e Azure Striker Gunvolt) para isso. Peço para que guardem isso e deixem desenrolar com o texto porque percebi que é importante. É importante comparar com Mega Man, positiva ou negativamente, e é importante comparar com Gunvolt, e com Soul Sacrifice, também deve ser com Onimusha mas não farei isso porque nunca joguei Onimusha.
Em primeiro lugar, Keiji Inafune é o responsável, proprietário e criador de Mega Man. É verdade que o surgimento de Mega Man começa com Akira Kitamura, o homem que dirigiu Mega Man 1 e 2 e, portanto, o responsável pela primeira forma da série: Mega Man 2 é um jogo aclamado, tido como o melhor Mega Man clássico por muitas pessoas que não entendem absolutamente nada da série (só jogaram ele, ou sequer jogaram ele), mas também por pessoas que entendem muito da série. Por que? Porque a veneração a Mega Man 2 se tornou uma onda que atingiu jogadores de videogame em geral, não só fãs de Mega Man, e ele se tornou onda por razões conscientes e nobres.
Mega Man 2 é a obra-prima de Akira Kitamura e ele merece ser. É o chão de onde Inafune levantou um monumento chamado “Mega Man”. Ali está a essência da série, um jogo polido e honesto fundamentado no seguinte corpo: oito fases que você pode passar apenas andando, atirando e pulando, cada fase dando uma nova arma que será, no máximo, útil a priori, e então mais algumas fases onde você é obrigado a dominar algumas dessas armas para terminar. Ele é o feijão-com-arroz do Mega Man, ele é exatamente Mega Man, e Keiji Inafune não é o diretor desse jogo: é uma peça fundamental para fazer essa idéia funcionar na prática, mas não seu principal teórico.
Ele se torna teórico no desastroso Mega Man 3, mas esse jogo “desastroso” é justamente o que determina sua autoridade. Mega Man 3 teve um desenvolvimento conturbado, com a substituição de Akira Kitamura por outro diretor. Esse outro diretor acabou tendo que desistir da tarefa porque era simplesmente incapaz de realizá-la, e quem assumiu essa espécie de hidra com um prazo apertado foi Keiji Inafune. Por que Keiji Inafune? Porque ele era importante integrante da equipe de Kitamura. Analogamente falando (porque não posso dizer que é, de fato, esse o processo), uma das pessoas a quem Kitamura chegava e dizia “Tenho isso daqui e preciso que funcione”, e ele, então, fazia funcionar.
Keiji Inafune conhecia Mega Man, foi uma das pessoas que construiu carros com o motor que Akira Kitamura fez, e a partir de Mega Man 3 disseram a ele “agora o motor é responsabilidade sua”. Mega Man 3, pelo processo como um todo, foi terrível — havia muita idéia nova, boa, que precisava da cabeça original para funcionar; o jogo introduziu a rasteira e o Rush, uma evolução natural dos ITEM de Mega Man 2, e também daquela arma especial do primeiro jogo que ficava na fase do Elec Man. O próprio Inafune sempre reconheceu que “faltava muito para o jogo ser bom, mas ele precisava sair”.
A partir do quarto jogo da série, que teve um desenvolvimento normal e é um bom jogo, vemos um bom resultado. Keiji Inafune, como novo fabricante de Motores Mega Man, era tão competente quanto Kitamura porque sabia o que esse motor realmente precisava e como ele deveria se comportar.
Quem quiser uma história de como isso continuou, quem sabe um dia eu possa escrever. Não é difícil. É possível perceber com a intuição, jogando jogo-a-jogo e vendo o que eles sempre conservam e o que experimentam — todo Mega Man sem exceção tem experimentos próprios, só que alguns são realizados como se fossem teste em laboratório e outros como uma verdadeira reforma na estrutura.
Um exemplo é a possibilidade de carregar o Mega Buster, que primeiro apareceu no Mega Man 2 com a arma do Heat Man, feita com o propósito de ser carregada (quando não, ela é um simples disparo de Mega Buster), e depois incluída como propriedade do Mega Buster no Mega Man 4.
O mesmo Mega Man 4 introduz no Toad Man a possibilidade (a obrigação, nesse caso) de alterar o comportamento do chefe com uma arma, algo que foi melhor trabalhado e se tornou norma a partir do Super Nintendo, tomando a forma de uma-arma-para-cada-chefe apenas em Mega Man X para a série X e, para a clássica, em Mega Man 8. Mega Man 7, vale lembrar, tinha o Burst Man que era interrompido pelo Mega Buster carregado, pela arma de gelo e pela arma de fogo.
A série X encerrou esse ciclo e trabalhou o conceito de interrupções permanentes, onde você alterava os chefes e modificava o padrão deles através das armas, sendo essa arma a fraqueza deles (Armored Armadillo e a arma do Spark Mandrill) ou não (Launch Octopus e a arma do Boomer Kuwanger, sendo sua fraqueza a arma do Armored Armadillo).
Com esses exemplos, creio ter deixado claro o funcionamento da série Mega Man, não só em seu conceito como em sua forma. Toda série que se preze vai alterando levemente suas mecânicas e se adaptando a isso, todo Sonic The Hedgehog precisa se tornar um Sonic The Hedgehog 2. Mas essa é a forma de Mega Man realizar: cada jogo inclui pequenos experimentos que não alteram a sua maneira de jogar, pertencem intrinsecamente à fase ou ao inimigo e então, se der certo, isso pode se tornar algo que pertence ao Mega Man — uma relação com o fato de Mega Man absorver as habilidades do inimigo seria uma boa piada, ou uma bela Teoria Do Além.
Essa estrutura de desenvolvimento da série — tanto isso que mencionei até aqui, quanto tudo o que ficou implícito — é algo realizado pelo Keiji Inafune e, para ser bem honesto, é a identidade final de Mega Man desde que o mesmo assumiu a série. É algo que está em todos os jogos da série, até mesmo Battle Network e Star Force, e só poderia estar porque Keiji Inafune quis, determinou e desenvolveu ou supervisionou jogo após jogo.
Não sei se é possível dizer que Akira Kitamura seria capaz de tratar a série da mesma forma e não dá pra saber, porque tudo tomou uma proporção inimaginável de lá pra cá. O que Inafune fez foi criar uma escola própria de desenvolvimento de jogos. Creio que a etapa mais importante da série Mega Man foi, na verdade, a criação da série Mega Man Zero. A primeira série onde Inafune já não está mais na posição de técnico, mas de professor.
Há uma história enorme por trás da série Zero, mas o importante aqui é a seguinte parte dos fatos: tinha essa garotada chamada Inti Creates que desenvolvia jogos e era fã ardente de Mega Man. Keiji Inafune querendo, por suas razões, um novo Mega Man assim como foi Mega Man X, resolveu soltar a série na mão dessa garotada e educá-los apenas no necessário para não interferir em sua liberdade de criação.
Essa liberdade, ao menos em questão de história, foi sacrificada. Mega Man X6 “aconteceu” durante o desenvolvimento desse jogo, todos os planos de X como vilão real foram embora e muito foi alterado. Muitos eventos complexos ocorreram, foi um verdadeiro caos que só não se compara ao que aconteceu agora no desenvolvimento de Mighty No. 9, mas o jogo saiu. E saiu muito bem. Mega Man Zero foi um controverso sucesso, e logo depois veio Mega Man Zero 2 que, fazendo praticamente uma tarefa de Mega Man 2, solidificou a série e mostrou que era algo realmente muito bom.
No final das contas, a Escolinha do Professor Inafune foi um sucesso. Veja que não estou atribuindo o talento dos rapazes da Inti Creates ao Inafune, o talento é deles, mas aquela experiência com a série Zero e ZX, Mega Man 9 e 10, Gunvolt e agora Mighty No. 9 é uma visível mistura desse talento com as influências diretas e indiretas exercidas pelo Inafune. E eles diriam isso com toda a honra do mundo, ou não se colocariam a disposição dele sempre que ele precisa. A Inti também está envolvida com os Shantae recentes e Bloodstained, o novo projeto de Koji Igarashi.
Onde quero chegar com tudo isso? Quero chegar ao fato de que Mega Man criou uma maneira de se construir um jogo e, por conseqüência, de se jogar um jogo. Se Inafune tem alunos praticamente oficiais, imagine o tanto de alunos indiretos que estão espalhados pelo mundo. Vi por aí pessoas elogiando diversos jogos de plataforma 2D para chamar Inafune de incompetente, Shovel Knight por exemplo, mas imagine só se Shovel Knight existiria sem existir Mega Man? Qual foi a série, afinal, que gerou um dos mais importantes Sequelitises que ajudou muito a popularização do fetiche pelo game/level design que agora alguns usam para criticar, estejam com a razão ou não?
Entende o que quero dizer? Não estou dizendo que Inafune ter criado Mega Man impede Mighty No. 9, ou mesmo o próprio Mega Man, de ser criticado. Pelo contrário. Que bom que sabemos que eles são criticáveis, independente de quem tenha nos ensinado isso; que bom que sabemos alguns princípios que conseguem expressar pela gente aspectos que costumam ser agradáveis ou desagradáveis, louváveis ou incômodos. Mas daí para criticar toda uma obra de vida por exercício retroativo é um salto enorme e enormemente errado, hilário e ao mesmo tempo demoníaco para alguém que, como eu, acompanha tudo isso com lucidez e interesse amoroso há no mínimo dez anos, tempo suficiente para saber distinguir até mesmo a paixão
(chegar num chat dizendo JOGO LINDOOOOOOOOO e xingando todo mundo que discorda só pra expressar o que sente) da satisfação de fato.