Eu não sou um jornalista de videogames.
Quando era pequeno, imaginei que trabalharia com videogames. Talvez ainda vá trabalhar, mesmo, eu não sei o que o futuro me reserva. O fato é que muitas crianças sonhavam em ser astronautas, e em outras coisas que eu sequer me lembro o que eram, mas me restringi entre sonhar com ser um garotinho virtual e um mestre dos videogames.
Por enquanto, parece que optei pelo primeiro.
De fato, a minha dedicação aos computadores é muito maior que a minha dedicação aos videogames, mas ainda há um apreço muito grande que deve só crescer até o fim dos meus tempos. Eu gosto mais de videogame do que gostava quando tinha 12 anos, ou 16, ou 18. O fato de eu jogar menos e aproveitar muito mais um nicho específico do que a grande figura não interfere no meu gosto.
Eu não sabia por que eu gostava de videogames, o que tornava meu gosto muito sincero, mas bastante suspeito por ser vítima de um ego gigantesco descontrolado. Hoje eu sei, e protejo essa área da minha vontade de pregar minhas próprias convicções, de procurar dizer que entendo mais que os outros por saber reparar no desenho dos pixels ou por saber os algoritmos do jogo, de dizer que gráficos importam ou não importam. Às vezes faço isso com outras coisas, o que é terrível, mas os videogames eu poupo.
E guardo com muito carinho no coração as pessoas que poupam e escrevem sobre eles com freqüência, porque são guerreiros.
Videogames são o que são.
E eu sempre conto alguma historinha sobre mim antes de começar a escrever sobre videogames. Porque meu ego é grande, e nesse assunto eu não preciso do meu ego. Posso deixá-lo ali sangrando nos primeiros parágrafos, pingando algumas gotinhas nos outros, mas nada que seja realmente prejudicial.
Mas é bom falar sobre ego e videogames. Uma coisa anda muito de mãos dadas com a outra. São quase namorados. O ego e o videogame. Não pretendo falar de jornalistas específicos porque não sou jornalista, também não pretendo falar de cenas específicas porque não sou desenvolvedor de jogos assíduo — em toda minha história de vida eu compus um total de uma música pra um jogo real e algumas para jogos inexistentes.
Falarei do “geralzão” que é o que todos podem ver, pessoas que estão de fora apenas jogando videogames e conversando com amigos podem ver. O geralzão é horrível o suficiente.
Porque para o geralzão, videogames se tornaram um campo de batalha. Mas isso não vem de hoje. Isso é um problema muito conhecido entre os velhos guerreiros de fórum e de chats coletivos que gostavam de se engajar e debater todos os assuntos possíveis (até mesmo pedofilia e incesto) tendo 15 anos; vamos lá, não tenha vergonha, eu era um deles, você muito provavelmente também foi. Um costume cuja forma evoluída é hoje a linha de frente de comentaristas de videogames, não só pelo Brasil, mas aparentemente pelo planeta inteiro.
Não estou dizendo que as pessoas saíram dos fóruns para serem jornalistas, as situações são diferentes demais para isso. O fórum era um púlpito maluco de ideologias e grupinhos, ou ideológicos ou só de “tocar o terror” mesmo; o jornalismo eu já não sei o que é, mas tenho certeza que não é só isso. Estou dizendo que os problemas dos fóruns e os do jornalismo estão na mesma coluna cervical.
Essa coluna cervical se chama desonestidade. É comum e rastreável, tende a provocar indignações seletivas e talvez não seja resolvida nunca: o melhor que podemos fazer é escapar dela nós mesmos. Não dá pra ir além disso, não tentem. Não dá pra tentar convencer alguém a ser honesto.
Videogame, sendo uma maneira de expressão como qualquer outra, nunca demandou que o autor exigisse nossa opinião sobre o que ele expressou. Não podemos concluir que o autor está interessado na nossa opinião pelo fato dele ter realizado uma obra. É o contrário, ele está interessado em transmitir a própria visão de mundo através dela. Direta ou indiretamente. E a obra nunca vai escapar dessa máxima porque, mesmo se for uma propaganda, é uma propaganda realizada com visões de mundo reais e que superam a própria propaganda. A propaganda deseja evocar coisas que não existem, mas o jogo existe, não se escapa disso.
Dizer que o autor não está interessado na nossa opinião é exagero, mas esses sinais são dados através de ações do autor, não da obra. A obra é a obra. Nós, como jogadores, não temos o direito espiritual de interferir no universo dos outros da maneira autoritária que tanto é propagada por jornalistas e ativistas porque é arrogância, é egocêntrico, é repugnante. Eu não tenho mais paciência para ler textos de “ativismo gamer” e nem de conviver com isso porque é corrosivo, faz mal pro estômago, é o desrespeito e a desonestidade vestindo a camisa da justiça. É a própria anti-empatia.
E, desferidas as ofensas, vêm as explicações.
Jogos são espaços criativos, são universos próprios, a transmissão honesta de algo que existe na imaginação da pessoa (ou equipe, mas gosto de me referir à “pessoa”) que o desenvolveu. O que nós, jogadores, fazemos ao jogar esse jogo é entrar e aceitar esse espaço criativo, incorporando-o ao nosso aceitando as convergências, divergências, e — se julgarmos ter algo a oferecer através da dialética do nosso universo criativo com o dele — descrevendo a experiência.
Isso é a máxima de uma obra.
E, como talvez alguns tenham percebido, essa máxima está diretamente relacionada com a honestidade. Só uma pessoa honesta é capaz de ouvir o que a outra tem a dizer tentando imaginar a figura completa na cabeça dela e, olha só, nenhum de nós consegue fazer isso com plenitude. Estamos amarrados ao “tentar”. Mas tentar, num cenário desastroso como o nosso, é suficiente.
Tentar é o que fazemos no estado de normalidade. Ao pegar o controle pra jogar o Sonic the Hedgehog do Master System a diversão, o deslumbre, vinha de conseguirmos nos concentrar naquilo e, através de alguns botões, viver aquilo. Não havia intenção de dar pitaco na construção do universo, na razão da Green Hill ser verde e não vermelha, em alterar a essência do game design para que ficasse mais fácil ou mais veloz. A nós era apresentado o universo criativo de Sonic, e então nos colocávamos ali, aceitávamos que nossa maneira de interagir estava restrita ao direcional e ao botão de pulo e aproveitávamos a experiência. É por isso que nos fóruns, uma época difícil para os jogadores caracterizada por uns debates esdrúxulos como “o plot de Dragon Quest é muito previsível”, muitas pessoas se questionavam por que era tão mais fácil jogar videogame na infância; e também é por isso que hoje, nas cruzadas ideológicas onde cada elemento de um jogo é uma questão social, as pessoas continuam se questionando e inventam umas respostas absurdas como “a infância é machista”.
Não, a infância era honesta. Mas a honestidade não precisa ficar só na infância. Pelo contrário, a experiência honesta adulta é muito mais intensa, saborosa, que a experiência honesta infantil. Agora somos capazes de nos aproximar muito mais da obra das pessoas, na série Metal Gear Solid por exemplo nos aproximamos de um universo adulto, que crianças podem jogar e saborear mas chegarão a um limite que nós, como adultos, podemos ultrapassar. A recompensa espiritual de jogar um jogo honestamente é muito maior, assim como a vida adulta possui uma infinidade de riscos e incertezas que não existiam na infância, mas os momentos prazerosos são muito mais ricos.
Essa experiência espiritual, no entanto, fica soterrada no meio de adultos que, a todo custo, desejam impor suas vontades. E o que é mais incrível disso tudo é que isso não fica restrito apenas aos comentários, aos jornais, mas isso vaza aos próprios jogos.
Porque, como eu disse, nós tentamos alcançar a figura completa do espaço criativo de quem desenvolve um jogo, mas não podemos. Nos restringimos à convergência da nossa imaginação com a imaginação do desenvolvedor. O que acontece quando o próprio desenvolvedor decide não ser honesto? Quando ele tenta criar objetos que ferem nossas idéias, tentando se impor e não se apresentar?
Acontece outro problema: o “jogo frustrante”. Isso é complicado e varia de jogo pra jogo, de modo que não seria possível explicar aqui, com uma redação só. Graças a Deus existem textos sobre a diversidade de jogos que existem no mundo. A desonestidade, então, o nosso problema primário, não parte do jogador, mas sim do universo.
É quando jogos são artificialmente desenvolvidos para provocar sensações nas pessoas. Quando um Assassin’s Creed coloca um número absurdo de pessoas na tela, atropelando as regras universais do próprio jogo, para provocar um efeito de deslumbre visual no jogador (e muito mais aqui no texto do Neozão do GAMESFODA, que, aliás, exemplifica tudo o que estou falando aqui); quando um jogo de plataforma 2D coloca algo que nunca fez parte do universo apenas para te matar — e veja que isso não é algo que nós rastreamos, é algo que identificamos, sentimos uma sensação de desconforto; não pode acontecer com Super Meat Boy onde o choque das mortes move o jogo; não se trata desse meu vídeo porque essa é a última fase do jogo e todo jogador assíduo de Mega Man sabe por impulso que, onde tem uma plataforma baixa, surgirá uma plataforma acima de você em seguida bloqueando sua passagem e te fazendo morrer, quase todo Mega Man te ensina isso no começo realizando esse mesmo procedimento em um lugar seguro.
Esse vídeo é uma piada, mas muita gente poderia julgar o jogo e chamá-lo de crápula imprevisível através dele, por isso a importância de saber se inserir no contexto maior antes de sair avaliando as coisas. Por isso eu insisto tanto que as pessoas joguem Mighty No. 9, ou ao menos leiam meu texto, antes de sair propagando mil e um discursos propagandistas anti-Inafune. Pra uma geração que nunca entendeu o que sentiu jogando Mega Man, vide a polêmica a cada jogo novo da série desde que a Inti Creates a assumiu, esse jogo será ainda mais difícil.
E é através dessa idéia que percebemos que, quando um jogo deseja propagar ideologias acima do universo maior, ele está sendo desonesto. Quando elementos são colocados fora de um contexto para tentar nos convencer de algo no mundo real, a imaginação de maioria das pessoas sente peso. É algo que interfere na racionalidade do jogo como um todo, que agride o jogador. O jogador não espera algo que deixe de apresentar um universo criativo próprio para inteferir no universo criativo dele, a grande maioria se sentirá ofendida, invadida, pelo jogo. E isso não é algo que as pessoas comuns expressarão com infinitos textos e tweets reacionários como faz a molecada do GamerGate, o GamerGate só representa uma fúria mais ou menos organizada de pessoas que não aguentam mais dizer “nadaver esses jogos aí”, mas as pessoas comuns continuam dizendo “nadaver esses jogos aí” no meio de suas pequenas rodinhas de comer hamburguer nas noites de sábado.
Quando espaços criativos nos agridem, a tendência é que nós estranhemos e deixemos de acompanhá-los. É assim, também, que o revolucionário se sente por não conseguir distinguir apresentação de imposição: agredido por acreditar firmemente que aquilo é um atentado, uma tentativa de manter um “sistema patriarcal” que seja, porque acredita que tudo é imposição. Mas isso é uma falha cognitiva do revolucionário. Hideo Kojima é incapaz de projetar seu universo próprio prevendo as falhas cognitivas dos jogadores, Inafune nunca imaginaria que alguém seria capaz de interpretar sua visão interiorana destrambelhada de século XXI em Mega Man Battle Network como manutenção de um sistema opressor. E se eles são incapazes, e não fizeram com essa intenção, é triste dizer, mas tudo isso é invenção da cabeça do próprio revolucionário. Não tem a ver com a obra maior, não pode ser incluído na obra maior porque não existe no espaço imaginativo de quem a criou.
Um contra-exemplo que eu cheguei a mencionar é o jogo dys4ia, da Auntie Pixelante, que todos que me conhecem sabem que eu discordo completamente daquilo tudo. E discordo de fato, não pretendo escrever esse parágrafo só para dizer que “estou acima dos lados” porque não se trata disso.
Eu discordo das condições para aquela situação existir, mas eu não posso dizer que aquilo interfere no meu espaço criativo porque seria mentira. Aquilo é real, palpável, uma situação que existiu no espaço imaginativo. A maneira como foi apresentada não me convence disso, e sim me revela isso, mesmo que haja um pano de “conscientização” na propaganda do jogo. Não me interessa a propaganda, me interessa o jogo, que eu me propus a sentar e jogar no momento em que obedeci o “Press Start Button”.
Você tem que sentar e ouvir o que a pessoa tem a dizer quando se propõe a ouvir o que tem a pessoa a dizer, e é isso que se propõe ao ligar um videogame e se colocar ali dentro. Isso é o mínimo pra uma pessoa que deseja saber se relacionar com outras pessoas, e está diretamente relacionado com a empatia, que é algo que não ligo tanto mas alguns gostam muito de esfregar na cara dos outros. Um jogo, como uma música, como um filme, como um ser humano, exige que você seja submisso, honesto, compreensivo e esforçado. A recompensa por cumprir esses requisitos é muito grande e, mais importante que isso, cumprir esses requisitos te dá abertura para crescer espiritualmente.
Ouçam mais os jogos que vocês jogam. Seja um, dois, dez, cem. Esperem. Entendam. E aí, quem sabe, escrevam.
Nunca vamos matar o fórum, nunca vamos matar o jornalismo. Mas matar nossos próprios demônios, quem sabe, é tudo o que precisamos.