Não me apego muito às coisas pelo que elas se identificam. Nunca fui uma pessoa de decorar nomes. Nunca soube nomes. Sempre que me perguntam “Você lembra de tal pessoa? Lembra de tal coisa?” eu respondo “Não”; não sei os nomes, nunca me importei de perguntar nomes, talvez por isso eu seja tão ruim em me expressar.
Eu sou, genuinamente, a pior pessoa que conheço para me expressar com palavras. Sou a pessoa das piores analogias, a pessoa das discussões onde o outro está brigando e eu entendi que estávamos brincando, a pessoa do sarcasmo imprevisível, a pessoa que só faz sentido estando perto e a pessoa do “é impossível entender o que você fala”. Era muito difícil assumir isso, agora é muito fácil. É fácil porque é evidente. Uma hora teria de se tornar evidente.
Por outro lado, sou muito bom com aquilo que não tem nome.
Aprecio muito coisas que não tem nome. A palavra é a cristalização de um acontecimento, de uma existência, mas cristalizações costumam deixar de lado alguns detalhes que só a mina inteira de palavras podem revelar. Isso quando podem. Gosto dos detalhes, gosto muito daquilo que não se pode explicar, daquilo que não se pode nomear. Tenho uma atração natural por isso.
É quase a situação normal que eu esteja sozinho admirando as coisas em meio aos outros e, também, é quase a situação normal que eu admire as coisas sozinho. O que não quer dizer que assim sejam as coisas, de fato. Só quer dizer que eu não aprendi a admirar em grupo, não entendo o que um grupo admira em algo que eu admiro, quiçá entenderia o que admiram em coisas que não admiro. Soa muito “inteligente”, “bonito”, ao homem mundano médio que gostaria muito de ser uma pessoa completamente independente em pensamento, mas na verdade não vale de nada.
Existe valor em buscar compreender o que acontece com o próprio espírito, mas não existe valor em vangloriar o próprio espírito. Isso porque dói se vangloriar. Dói acreditar que faz alguma diferença. Dói porque é mentira, não faz diferença nenhuma, e soterra o próprio espírito que não resplandece ao “querer ser”, mas ao “ser”. Ora essa, já dizia um versículo que não me recordo onde está, “o espírito está pronto, mas a carne é fraca”.
É difícil que muitas pessoas compreendam que acreditar ser alguém com dificuldades de se ligar ao pensamento alheio não implica em acreditar que é uma pessoa independente, uma pessoa “especial” no sentido exacerbado da palavra, mas sim uma pessoa que vive cuidando para não cruzar a linha tênue entre a construção do universo interior e a vida como um cárcere dentro desse próprio universo interior. Não é algo para se carimbar anormalidade, mas nem por isso algo para se comemorar, é só… você. E tudo o que há de bom e de ruim em ser você.
Não há valor em ser uma pessoa independente. Há valor em ser um espírito independente.
É impossível ser uma pessoa independente, sendo nossos corpos em um só instante ligados a tantas coisas: nossas memórias, nossa família, tudo o que emana do nosso lar, o ar que respiramos, a água que bebemos, o que comemos, nossos amigos, nossa semeadura, nossa colheita, nossas idéias e muito mais. É impossível ser uma pessoa independente sem se tornar uma espécie de aberração, um corpo incapaz de lidar com as imperfeições das outras pessoas e, por conseqüência, incapaz de reconhecer que seu zelo e cobrança pela perfeição num mundo imperfeito já é uma imperfeição, já que é você o incapaz de reconhecer que o que é imperfeito é imperfeito.
O espírito independente, no entanto, não se trata de uma vida independente. Se trata de um “ser” independente. Que sabe quem é, o que é, de onde veio e para onde vai. Que faz aquilo que foi feito para fazer, com os outros e sem os outros. Que conhece a sua intimidade, e também suas falhas. E, mais importante que isso tudo em si, que reconhece que as tensões e retaliações colocarão em prova tudo o que está nesse parágrafo, mas que, quando tudo estiver no limite, pronto para ser perdido, Deus proverá.
Sendo assim, eu tenho interesse em conhecer, lembrar, entender os nomes.
Eu aprecio pessoas que decoram nomes e números, de tudo, e os usam de maneira a emanar o máximo que aquilo pode significar. Não por ter o nome disponível e querer mostrar, mas pelo nome fazer parte do redemoinho natural de idéias da pessoa.
Aquele que possui uma agenda mental com os aniversários de todas as pessoas importantes pra si, não para despejar um feliz aniversário obrigatório, mas por seus votos reconhecerem sinceramente a importância de uma pessoa como aquela existir. Aquele que sabe que o rosto bonito que viu pertence a uma identidade, o gesto carinhoso também, inclusive aquele curto abraço. Gostaria de ser capaz, mas não sou.
Ao menos não por enquanto.
Por outro lado, gostaria que as pessoas tivessem mais interesse naquilo que não tem nome. É muito importante gostar das coisas mesmo que não se saiba o nome delas. É, aliás, essencial.
Estamos vivendo em um mundo onde forças externas seqüestram o nome das coisas constantemente, somos uma verdadeira babilônia onde cada um fala sua linguagem e todos acreditam que estão falando a mesma. Não podemos deixar de amar, ato que representa o desdobramento do nosso contato com Deus, só porque o nome foi redefinido.
Eu gosto daquilo que não tem nome porque é o que meu espírito gosta, é o que ninguém pode me tirar.
Gosto de olhar as estrelas mesmo sem saber nada de astrologia, sem conhecer o nome delas, porque o desenho do céu estrelado sempre será lindo, admirável e sempre me fará ouvir a voz de Deus, seja numa narrativa astrológica ou cientifico-moderna ou, com o perdão da piada, seja a Terra plana ou um globo. As estrelas são lindas, a Lua é linda, o céu é lindo. O universo é lindo.
Gosto de admirar os prédios, talvez tentando rabiscar algumas equações na cabeça que foram utilizadas para manter aquilo de pé, mas sempre pensando no trabalho verdadeiro que pessoas reais empregaram ali ao pensar em como seria a forma, ao colocar cada tijolo no seu lugar, ao pintar, ao utilizar aqueles aparelhos mecânicos enormes, encarar alturas absurdas por dias. Ao pensar na quantidade de eventos que podem ter acontecido após a criação, porque há vida ali dentro: quantas vidas já passaram por cada andar? Que dilemas viveram? Quantas crises, quantas orações, quantas brigas, quantos beijos, o que cozinhavam? Tinha algum adolescente que passava o dia inteiro na internet? O que pensavam as pessoas quando saíam na sacada e viam a cidade inteira ali, inerte? Alguém já se matou ali?
E, principalmente, porque prédios são lindos. Já morei em um prédio, moro numa cidade grande lotada de prédios, e ainda os admiro com o deslumbre de quem nunca viu um prédio na vida. E posso não saber o nome de nenhum daqueles da Gleba Palhano que observo quando resolvo sentar no Lago Igapó e ficar por horas, ou até mesmo os do centro da cidade que são um conjunto maravilhoso se observados daqui do alto da minha humilde Zona Norte, mas sei como eles são. Meus olhos gostam deles como eles são e, caso sejam reformados e continuem bonitos, gostarão dos novos prédios como eles serão também.
E eu gosto muito de prédios. E eu gosto muito de céu estrelado.
Talvez eu só conviva com pessoas mais equilibradas que eu, que gostam do que tem nome e do que não tem, com moderação. Talvez eu só tenha dificuldade em reconhecer o que as outras pessoas gostam muito que não tem nome. Talvez eu seja, mais uma vez, a pior pessoa que eu já conheci.
Mas eu sinto falta. Sinto falta porque não sou uma pessoa independente, e nem mesmo desejo ser uma pessoa independente. Sinto falta porque eu gosto que alguém entenda o que eu falo, embora não possa deixar de ser o que sou só pra isso.
Sinto falta porque descobri que, quando não se está sozinho ao gostar de prédios e de céu estrelado, os prédios ganham mais detalhes e o céu ganha mais estrelas.