As ciências da natureza
Existe uma percepção mesquinha individual-porém-coletiva na produção e consumo de qualquer coisa, e eu me preocupo com a maneira que universos são apagados junto com isso. É social, inclusive, embora eu pouco tenha interesse em falar de humanos e suas relações com os outros — mas se acabar entrando no assunto, apesar de já pedir desculpas, peço também para que me dê o desconto do flerte.
Na verdade, peço desculpas pelo flerte, como um todo. É impossível discutir o que quero — o universo — sem entrar em pequenas ideias sociais, pequenas (ou grandes, ou mesmo grandiosas) concepções de arte. O universo, do ponto de vista da ciência da natureza, é uma arte; é curioso como uma visão racionalista coloca em cheque todo o interesse da ciência da natureza. Para falar a verdade, uma realidade completamente distorcida da ciência da natureza, da ciência exata, é a de que dependemos de um senso de lógica e raciocínio avançados para lidar com ela.
A ideia parece boa, vendo do ponto que estamos ela parece… ideal. Ela não é. Acredito eu que um dos maiores vícios de pensamento que adquirimos durante os anos, tanto em nossa parte quanto no sistema de geração de conhecimento em si, é que a ciência exata é a ciência do racional, o imutável, o que devemos confiar e que, para nos aproximar dela, apenas com grande capacidade de raciocínio lógico — estamos, aos poucos, convencendo-nos que precisamos ser computadores ambulantes para que tomemos entendimento do natural.
Existe uma sutil contradição ao querer implantar o racionalismo, um conceito humano, na natureza — não seria mais interessante que a ciência humana tratasse do racional?
É interessante como essa ideia empobrece a própria lógica humana do ser enquanto tenta, de alguma forma, racionalizar o que, de forma alguma, devia ser racionalizado. Isso destrói a percepção. A única maneira de matar o estudo da natureza é fazendo com que ele se torne nossa realidade definitiva, acima de um literal ou figurativo “Deus” — ao momento em que crês firmemente na ideia de que um V=Ri, ou equações mais complexas com integrais e derivadas, vai acender a tua lâmpada, estás se afastando um pouco da ciência da natureza; a ideia é que a ciência exata, oras, se é exata, deve ser irrefutável.
Infelizmente essa ideia é tão burra que acaba tornando o ser escravo do que aprende, mas ao mesmo tempo indisposto a aprender mais. É o que compõe, saindo da natureza pura para explorar a nossa manipulação da natureza, a intolerância às engenharias; caímos na miséria de depositar confiança nos “milagrosos” manipuladores de natureza. E não confiança, simples confiabilidade. Depositamos nossos sonhos nas mãos de engenheiros — sejam eles de sistemas, eletricistas, químicos, mecânicos.
Tudo é possível, e se ainda não o é, será porque eu quero. Não pretendo me estender aqui, mas o que está nos movendo é o sonho de alguém, o mais rápido possível, fazer o que desejamos. É no mínimo interessante como as pessoas são racionais acendendo a lâmpada com V=Ri, mas reagem de maneira completamente oposta a um novo dispositivo eletrônico. “Oras, eles podiam ter feito mais isso, e mais isso, e mais aquilo, afinal naquele outro dispositivo tem” elas opinam, incapazes de entender as limitações humanas em contexto — característica-chave da engenharia — no manuseio da natureza, essa sim, ilimitada, irracional e imensurável.
O ser humano é maravilhoso, mas é apenas mais uma pequena figura da natureza, a qual é tão ampla que não podemos saber como foi criada, se foi criada, através de ferramentas lógicas elaboradas por seres que estão na mais baixa camada da hierarquia; ou numa das mais baixas. O universo como realmente é dificilmente é o que está a nossos olhos.
A realidade é que, enquanto dando extremo valor a nós mesmos, nos desvalorizamos completamente. E tudo isso é fruto de, na verdade, não dar valor a nada. Se acreditamos num universo imposto pela distorção do prazer criativo de outros, e se esse universo o qual acreditamos precisa que artistas e projetistas realizem os sonhos que acreditamos que temos, não temos um universo próprio, e não temos alma própria.
O racionalismo não é a ideia mais imbecil que existe, mas, de todas as más práticas intelectuais, é a que mais tenho contato, experiência e a que mais consigo manipular. É interessante como o mal, obviamente, ataca com mais intensidade aonde mais pode se propagar o seu oposto; e, é claro, o centro de tortura psicológica do racionalismo é a formação de pessoas que estão encaixadas nas ciências da natureza.
Não existe maior enfermo de alma que não ter um universo próprio. Que participar de um universo coletivo sem sonhos, desejos, ansiedades, tristezas, glórias, ideais — mas principalmente sonhos. Um universo próprio é lindo, inclusive àquele que não pertence a ele.
É necessidade do ser mostrar seu universo aos outros, e é claro que não vai funcionar realmente — tal como o universo como é não se mostra a nós —, mas é belo o crescimento que o do outro terá ao tentar estudar o seu. Ao tentar fazer, com o seu universo, a ciência da natureza.
É isso que há de mais belo no ser humano. A expansão de seu universo, assim como o próprio universo se expande, e o seu trágico fim — é como se fossemos, realmente, imitação da natureza.
São universos que existem em jogos, digitais ou não, também são universos que estão contidos em pinturas, e também são universos que estão em cada linha de música.
É impossível expressar, em música, universos ricos, quando se há um universo introspectivo vazio — quando se deposita seu universo nos outros. É impossível, também, com seu universo, não ter um choque, interesse e fascínio, por outros ricos universos. É impossível, por meio do racionalismo e não por meio da natureza, da nossa natureza, infiltrar-se em ondas sonoras de almas belas. Não existe arte sem ciência da natureza.