Série: jardim fantástico

Intolerância às engenharias

29 de setembro de 2013

E os sonhos incompletos

de um pacote de produtos que não realiza sonhos, mas ajuda a sonhar 

Dentre o vasto leque de ideias que semeei no Jardim Fantástico, dediquei um parágrafo para fazer menção à maneira que enxergamos a engenharia, e como depositamos sonhos nela.
Algo que, com o decorrer do tempo, achei melhor estender. Não sei se com a linguagem que me apropriei anteriormente, talvez algo mais direto.

A princípio, é difícil tratar de algo relacionado à engenharia como tema geral — aliás, é complexo mesmo dentro da própria área. Não porque ninguém saiba o que faz um engenheiro, e sim porque muito pouco se sabe sobre o que é engenharia. É esperado: é impossível, num lugar onde não se sabe o que é ciência da natureza, saber o que é tomar posse das ciências da natureza.
Engenharia, basicamente, tem esse simples curso de ação. Ela não chega a ser o estudo da natureza, mas sim o estudo do que a natureza nos fornece. É um estudo muito mais “humano”, pois serve de tradução da linguagem de Deus para a linguagem dos homens; temos aí, então, algo nobre não pela sua comunicação direta com o natural, mas pela sua função humana.
(fica claro porque, com essa definição, a ciência da computação é tratada da mesma forma que a engenharia em diversos lugares do mundo; essencialmente, ela pode se comportar como uma engenharia)

A engenharia, talvez, seja a maior vítima das armadilhas do racional. Mais, até mesmo, que a própria ciência da natureza.
A violação dos conceitos da engenharia acontece da forma mais cruel e eficaz: não se trata de exclusão, de retirar sua importância, e sim de seduzi-la a trocar sua gama de características reais por outras, que dão falsa impressão de satisfação de interesses enquanto podam a sua ligação com sua missão. Trata-se de dar, ao mero engenheiro, a tarefa de realizar sonhos.
Dizem que não se aceita algo que não deveria fazer, e a comunicação do universo com o ser humano aceitou a tarefa de ser o próprio universo.

Temos então a visão inicial — muito mais externa que interna — de que engenharia tem honra e alto prestígio. É fácil perceber os motivos. Cabe a ela planejar a estrutura física e virtual que será desfrutada pela sociedade, desde a mais simples — elaborar uma arma com pau e metal para caçar capivara é engenharia — até a mais complexa — toda a internet é engenharia. É uma bela responsabilidade, e deve ser considerada.
Eis então que começam a semear o que se torna o grande caos: a engenharia é, assim como a ciência da natureza, definida como algo que as pessoas devem confiar. Só que a confiança da engenharia é um pouco diferente da confiança da natureza: as pessoas desejam que outras pessoas decodifiquem a natureza da maneira que elas enxergam o mundo, utilizando tudo o que ela acredita ser possível, com o seu tempo ideal e realização ótima. A confiança na ciência da natureza é fruto de um racionalismo nocivo e sem limites, já a confiança na engenharia é puro materialismo, curiosamente irracional.

Como a nobreza infectada da engenharia aceita realizar sonhos que caberiam à natureza oferecer, é ela quem toma o dano das frustrações daquilo que não consegue fazer. Temos pessoas que cresceram já debaixo dessa crença estabelecida e tudo o que podemos ver é insatisfação.
As pessoas não estão satisfeitas. Seus sonhos não estão sendo devidamente realizados. E, nas mentes frustradas, cabe ao engenheiro correr atrás de exigir da natureza aquilo que ele sente falta; é um erro fatal, porque não exigimos da natureza, apenas desfrutamos da graça que a natureza nos fornece e compreendemos através da ciência da natureza. Mas se a engenharia é Deus, como é possível entender que ela tentou realizar um sonho, mas não foi capaz de fazê-lo com perfeição e instantaneamente?
São pensamentos que parecem abstratos, mas estão extremamente próximos a nós. É por isso, creio eu, que o linguajar dessa mensagem que venho a passar é tão mais informal e próximo ao leitor que o outro. O outro é sobre um problema muito enraizado, esse é a bobagem que fazemos no dia-a-dia.

Esse pensamento, em prática, é o que está por trás de milhões de pessoas insatisfeitas com telefones celulares que saem todos os anos, afinal, “tudo o que mudou é que a tela é maior e o aparelho é mais fino” — interessante como, do ponto de vista de quem usa, há uma frustração que poderia ser compreensível, mas não é e não deve ser pela falta de honestidade e desprezo ao comunicador existente no comentário; não devia ser segredo que há um trabalho pesado em replanejamento de circuitos integrados para que essas novas condições físicas sejam satisfeitas, também há impacto no desenvolvimento dos softwares (que pode ou não atingir o desenvolvedor final); mas ninguém sabe, e mesmo que soubessem, diriam com toda a sua rispidez até mesmo cultural ao que é feito por meio da engenharia que “não é de sua conta saber o trabalho realizado. Não valeu de nada”.
As pessoas não se sentem felizes de saber que, antes mesmo de um produto ser disponibilizado, outro já está em desenvolvimento. Não cabe a mim dar aulas de produção, por isso devo a vocês um texto (em fato, se quiserem muito e forem amigos meus, é um assunto entediante), mas é um nível de ignorância altíssimo acreditar que tudo o que há por trás disso é estratégia de marketing. Está fora do espectro de compreensão e interesse das pessoas fora da área a complexidade das fases de projeto e desenvolvimento de qualquer fruto da engenharia, mas como há o manto “divino” por trás da mesma, elas sentem como se compreendessem e se resumisse em “é só fazer assim. E acontece”.

Não é que a engenharia exija que as pessoas sejam computadores para realizá-la: se a ciência da natureza é assim, dificilmente com a engenharia seria diferente. Ela pode ser realizada por meio do prazer humano no conhecimento do natural, e começa assim — é a parte que revolta e faz desistir tantos iniciantes na área, com seu conceito mesquinho de que devemos ver o mais cedo possível aquilo que acreditamos que é útil (imediatismo e utilitarismo? Talvez, mas não me arrisco em ideologias) —, mas necessita também que o engenheiro saiba traduzir as palavras que a natureza lhe conta para realizar algo que ele, como humano, quer.
É essencial que se entenda que o ser humano é mais falho que a natureza e sempre será, porque sempre terá de se comunicar com ela para obter alguma coisa. É essencial que se entenda que é impossível outra pessoa, com a linguagem dela, comunicar-se com o universo e trazer como resultado algo que se encaixa no seu universo, não no dela. A engenharia, além de ajudar os seres humanos com suas necessidades, tem o papel de elaborar mecanismos que facilitem a própria engenharia: que otimizem a comunicação do homem com a natureza, e que otimizem a compreensão da linguagem de um homem com a natureza do ponto de vista de outros homens — esse propósito é desenvolvido extensivamente pela computação, embora todas as áreas o realizem. Essa compreensão é necessária.

Enfim, é uma situação caótica, que afeta também o desenvolvimento — nossa cultura se sai mal na formação de engenheiros, e especialmente mal na formação de engenheiros de alta qualidade.
A todos os seres humanos, dicas valiosas estão no Jardim Fantástico. Aos engenheiros, mantenham seu belo trabalho, mas parem de realizar sonhos; ao invés disso, ensinem aos outros como conversar com a natureza, ou serão vocês que carregarão as culpas de Deus.

 

Você leu um capítulo da série jardim fantástico

escrito por nubobot42 narrado por hannah