por enquanto, ao menos hoje, você pode me chamar de yasu.
ouço muito falar que a idade adulta vai, lentamente, retirando os nossos sonhos. desempilhando-os com a paciência de um ancião que não tem pressa de acabar o seu jogo, como se já não tivesse muito mais o que aproveitar dessa vida, como se seu propósito de vida fosse esse: o de desempilhar sonhos dessa pilha construída cheia de inocência durante a infância.
eu gosto de encontrar sonhos no chão, resultantes desse processo de desempilhagem, decifrar a sua mensagem e seu significado e devolvê-los ao dono. talvez um adolescente que se perdeu em seus devaneios e questionamentos, talvez um adulto que se perdeu em seu cinismo justificado pelo contato com um mundo livre, mas vazio e solitário. quando eu era uma pequenina criança saltitante meu pai costumava repetir aos meus ouvidos, como piada, a frase “i have a dream”, e ele jurava que era de um rapaz chamado martin luther king. pensar nisso hoje é ridículo! todas as pessoas do mundo já disseram a frase “i have a dream” em sua língua materna, todo mundo já teve um sonho, todo mundo foi criança e ou viu alguém pisando na lua e pensou “serei um astronauta!” ou sonhou em cuidar de outras crianças ou qualquer outra coisa do tipo. atribuir uma frase dessas a martin luther king é como atribuir “fome é maior ruim” a mahatma gandhi.
um dia, no entanto, atribuí a frase “i have no dream” a um garoto. fosse ele um adulto em seus plenos trinta anos, ou até vinte-e-cinco, essa frase seria tão ou mais normal que “a frase de martin luther king”, mas ele era uma criança de cinco anos. nós éramos. me respondesse qualquer coisa, por favor! sonhasse em montar uma indústria de meleca de nariz, sonhasse com beijar muito, sonhasse com ficar longe de mim e todas as outras meninas porque meninas são muito chatas aos cinco anos de idade (aos outros anos de idade também, ele diria), sonhasse com jogar videogame para sempre, mas não me diga que não sonha com nada. como posso devolver os sonhos de alguém que nunca os teve? eu fiquei encantada com esse príncipe dos sonhos perdidos, em um dos episódios mais abobados da nossa infância acabei o pedindo em casamento mas não sabia muito bem do que estava falando e nem ele sabia muito bem do que se tratava “casamento” embora houvesse um em sua casa assim como havia um na minha, acho que estava imitando os trejeitos ultra-românticos de mamãe, o que não sabia que se tornaria motivo do divórcio dela com papai alguns anos depois. ele, bem, ele só me disse “você é muito chata”, então eu chorei e ele disse “chorar é muito chato”, aí eu chorei mais, ele me abraçou e aí eu entendi que ele quis dizer que é muito chato lidar com o choro das outras pessoas, não que eu sou chata por chorar muito.
mas talvez eu seja chata por chorar muito.
na verdade não porque eu choro bem pouco.
“eu não tenho nenhum sonho”
- príncipe dos sonhos perdidos
acredito que a falta de sonhos de uma criança está correlacionada com seu apetite especial por contar histórias. contar histórias é testemunhar sonhos, sua concepção, seu desenvolvimento e seu descarte ou realização. alguém que sonha precisa escrever sua história ou chamar alguém para escrever sua história, ou ao menos anotar em algum lugar o seu progresso, do contrário o sonho se perde mesmo se realizado. quantos sonhos você perdeu ao longo dos anos? você nunca disse “meu sonho é acabar a escola e nunca mais ter essas aulas que nunca suportei ter”? porque eu disse! esse era um sonho muito importante que realizei, e não importa que a vida adulta tenha trazido obstáculos e desafios piores, o que importa é que isso acabou e ponto final. está anotado o dia, o mês e o ano em que entrei numa escola pela última vez para assistir uma aula. e olha que eu gostava da escola! gosto até de estudar às vezes. em especial estudar o que é inútil mas, de alguma forma, me faz mais feliz ao ser conhecido por mim.
eu nunca vi o príncipe dos sonhos perdidos escrever sequer uma história de vitória pessoal. é por isso que casei com ele, acho. não tinha por que não fazer isso. nos conhecíamos desde a infância, ocasionalmente esbarrávamos até a metade da adolescência, então ele sumiu. ou eu sumi. não dá pra saber. nos encontramos novamente e decidimos sair, conversar sobre a vida, descobrir o que nos tornamos e fiquei satisfeitíssima com ele e ele deve ter ficado comigo também.
as pessoas dizem que ninguém é obrigado a completar ninguém, que só Deus pode completar as pessoas, só é complicado explicar o fato de Deus escolher a pessoa certa para o momento certo. eu sou uma pessoa muito positiva para engolir essa noção cínica de universo onde tudo é abstrato e a responsabilidade de tudo é de Deus, de um Deus abstrato, que não adianta fazer nada porque ele faz tudo e nhenhenheeeeeeee… ah, me poupe! tenho certeza que melhorei a vida do meu príncipe em uns 500% porque eu sou sensacional, porque ele faz coisas extraordinárias mas tem a impressão de que a vida é toda automática, porque ele sabe o quão especial é cada detalhe de um dia mas não leva a sério isso pessoalmente, só em suas estúpidas histórias e ao encorajar os outros. eu, bem, gosto de interromper os momentos dizendo “você tem noção do que está fazendo?”, “quem é você?” e, principalmente, “qual é o seu sonho hoje?”. eu completo ele porque crio sonhos e entrego em suas mãos e, assim que ele pega a caneta, eu digo “não, oh não. é pra você viver”. e, assim que nos deitamos, pergunto “você viveu nosso sonho hoje?”.
e você? tem noção do que está fazendo no mundo? tem noção de quem você é? qual é o seu sonho hoje? você o viveu? qual sonho importante lhe foi dado na infância e você carrega até hoje, na certeza ou na dúvida de que um dia o realizará? meus queridos, o antigo mundo limitado foi às ruínas, estamos em um novo mundo onde é possível conhecer tudo, imaginar tudo, fazer tudo, no novo mundo quem tem medo ou vergonha de ser completamente insano está limitado. a insanidade não existe mais. só existe fé e a sua vivificação, que alguns chamam de “obras” e outros chamam de “ação”, escolha o melhor. não existe mais o medo de conversar com desconhecidos na rua, não existe mais o medo de dividir o pão, não existe mais a lei que antecede a sua necessidade, não existe mais o obedecer por obrigação, não existe mais o que conservar. estamos no novo mundo, o mundo da liberdade, o mundo onde você precisa fazer o que é certo por amor porque ninguém mais vai apontar o dedo a você, ninguém liga para o que você está fazendo, ou até liga mas existe a opção de se desligar dessas pessoas para sempre.
o novo mundo é espetacular. viva-o em plenitude. se a sua imaginação parece absurda demais, viva-a para que se torne normal e ouse ter novos pensamentos ainda mais absurdos. escreva a história de um universo extraordinário, dê trabalho a todos os institutos de física do planeta, confunda os historiadores e consuma a mente dos pensadores. não se limite, faça os outros sentirem vontade de quebrar os limites como você quebra, transtorne os ambientes onde você está. faça as pessoas precisarem conhecer novos espíritos para lidarem com você, faça as pessoas acreditarem no sobrenatural, faça as pessoas perderem a capacidade de separar matéria e espírito.
eu nunca sei o que esperar de um dia. isso, a princípio, me incomodava. depois percebi que é uma maravilha. que era o que eu esperava da vida, era o que eu queria da vida. era meu sonho. cada dia ser uma surpresa era o sonho de uma pessoa que sempre teve medo da monotonia, que odiava a escola pela monotonia e não queria trabalhar por conta da monotonia de um trabalho pintado com as cinzas do terror fordista. posso dizer que, nisso, o príncipe dos sonhos perdidos me completou. me completou porque uma pessoa com dificuldade para entender seus sonhos está sempre no anseio de mudar, de se transformar, de descobrir rotas alternativas para encontrar tesouros perdidos e encher uma bagagem mesmo que sem muito propósito.
eu nunca sei como devo me comportar porque não há maneira de se comportar com alguém que, às vezes, acorda, decide “agora eu sou assim” e decide viver isso. sempre que estou me acostumando com alguma personalidade logo vem outra e desmorona tudo o que tinha certeza que dava certo, para meu desespero a princípio, para minha diversão depois de um tempo. “já encontrou seu sonho hoje, querido?” comecei a perguntar, com todos os meus sentimentos conflitantes exceto a ansiedade, essa eu já não tinha mais. eu gosto de agradar mas não espero agradar, fico feliz quando acontece, fico triste quando não acontece, mas não acho que interfere no andar da carruagem. não posso dizer que ele sempre me agrada então não tenho pra que querer sempre agradar, tenho?
quando nos conhecemos e começamos algo eu senti uma insegurança extrema, tentando agradar e vivendo esse terreno nebuloso de nunca saber se estava agradando porque não tinha como e ele não se importava muito com isso. ele nunca tentou me agradar muito exceto quando intuiu que eu queria ser agradada. uma pessoa desprovida de interesses muitas vezes é desprovida de desejos de aprovação, ou às vezes os nutre secretamente, por medo ou só por não conseguir sentir a aprovação quando ela vem mesmo. e como estava dizendo: eu não sou essa pessoa, eu amo ser aprovada e achava que esse era o caminho. na nossa primeira briga eu gritei “cansei! você é um saco, não importa o que eu faça nunca está bom, nunca está legal. quer saber? você é que não é uma pessoa boa, você é que não é legal! você é quem não merece minha aprovação!” e ele, rindo, me disse “agora sim você é uma pessoa legal. aproveite a sua aprovação” e foi embora. eu nunca me senti tão irritada antes na minha vida, ele estava brincando com meus sentimentos esse tempo todo, ele sabia que eu queria aprovação, ele sabia de tudo! ou era como eu conseguia enxergar a situação na época. cada ano que passo relembro desse momento e tiro uma conclusão diferente, eu nunca vou saber realmente o que significou aquilo mas posso dizer que nunca retornei à conclusão inicial e a cada nova conclusão sinto que estou mais perto de saber, sempre por minha conta porque ele sempre me conta uma história diferente.
ele estava dando um alerta a esse traço da minha personalidade. “se nós vamos ficar juntos é melhor me mostrar quem você é, não o que você acha que eu quero”, ele perdeu seus sonhos, ele não sabe o que quer. eu, mesmo que sem intenção, acabei ensinando uma coisinha a ele: “as pessoas, quando gostam umas das outras, tentam se agradar de vez em quando”. nós dois tínhamos razão. ele, porque um relacionamento não é fundamentado em aprovação mas em pessoas reais que jamais terão todas as atitudes aprovadas uma pela outra; eu, porque um relacionamento precisa de sinais de aprovação, provas de amor, entre outras coisas do tipo.
em especial um relacionamento como o nosso. mas não, não! eu não pretendo contar tudo a você hoje, meu humilde sonhador. isso é só um aquecimento. eu só não quero que se espante com os sonhos que vou contar aqui, que às vezes entenda que umas coisas bem malucas acontecem na minha vida, que me submeto e submeto o príncipe a umas situações bem bizarras de vez em quando que várias pessoas condenariam sem entender que nós dois estamos numa aventura para encontrar sonhos perdidos. nessa aventura vale tudo. não temos apenas alguns instrumentos, temos vozes. quantas forem necessárias. cantando o que for necessário. caminhando por onde for necessário.
por que você está me lendo hoje? por que você fez o que fez hoje? você ama o que fez hoje? você se ama? quem é você? qual é o seu sonho? você acredita que ele pode se tornar realidade? o que você cantaria pra mim hoje? você acha que eu ouviria?
conte-me o seu sonho ou confesse-me que não tem sonhos. conte-me quem você é ou confesse que não sabe muito bem quem você é. mostre-me a sua música. você pode continuar me chamando de yasu. você pode ter certeza que não sou um extra-terrestre, apenas alguém que viu muitos fantasmas.