SΓ©rie: yasu

yasu iii

10 de setembro de 2021

Existiu em mim, um dia, um sentimento que me levava a escrever. Ele não acontecia um dia. Ele não acontecia dois dias. Ele acontecia todos os dias.

Minhas correntes sanguíneas transportavam palavras como se fosse mesmo o próprio sangue. Talvez porque de palavras vive uma escritora. De palavras vive alguém que se esconde por trás das palavras, por trás dessa dança-de-espadas, com espadas mortais, decepantes, decapitantes, degolantes. De palavras vive um coração aflito num mundo de sombras, onde os rostos não revelam, os gestos não revelam, e até mesmo o mover dos lábios, o cruel mover dos lábios, que ora movem-se por inteiro e ora movem-se apenas em algumas partes, não revelam. De palavras vive quem menos acredita em palavras.

E se me perguntam, “oh, querida! por que é tão difícil acreditar no que dizes?!”, respondo que não sei. Respondo que não tem como saber. Respondo que falar é como dançar com o vento. Queria conhecer as pessoas além das palavras. Queria conhecer as pessoas além do mundo visível. Queria que o exercício de compreensão pra mim não fosse tão complicado. Queria poder me situar nesse mundo onde não se pode ter dúvidas sobre o-que-se-é e o-que-não-se-é. Queria uma vida de mais regalias e menos dores. Queria menos dor. Queria menos dor. Queria menos dor. Queria menos dor. Queria menos dor. Respondo que não sei. Respondo que não tem como saber. Não tem como saber. Eu não acredito no que é dito, tenho tendência a acreditar no que não é dito mas, no fundo, não acredito em nada. Sou das pessoas que acredita que a fala não pertence a quem diz, não pertence a quem ouve, a fala é em-si, em-si-inicia-se, em-si-encerra-se, e quem fala é vítima da fala, e quem ouve é v´ítima da fala, cada um da sua maneira, cada um sujeito ao que só ele mesmo está sujeito.

Eu queria dançar.

Eu queria sorrir mais uma vez.

Eu queria não ver a vida como esse jogo de Tetris.

Onde as palavras caem e preciso organizá-las de alguma forma para, por fim, eliminá-las. Quando as palavras preenchem uma linha, elas somem. Se esquecem. Eu as esqueço, também. Eu sou confusa, eu sei. Eu sou confusa porque, debaixo de todas as minhas camadas de eloquência, eu nunca disse o que realmente queria dizer. Eu esqueço com certa frequência quem sou, qual é a minha personalidade, o que acredito. Eu esqueço com alguma frequência quem, afinal de contas, é a pessoa que amo, se a pessoa que amo não me lembrar, com alguma frequência, de me beijar. Eu tenho na minha alma o dom do esquecimento, e tenho na minha alma o castigo do esquecimento. Mas não existe esquecimento sem que haja, antes, uma negligência que, na idade adulta, tem certo grau de deliberalidade. No fundo eu acho que provoco minhas próprias amnésias. No fundo não tenho forças para lutar para existir no mundo, porque o mundo parece muito bem sem mim. Tudo parece tão nos trilhos quando não abro a boca! quando não estrago tudo, porque ser é estragar, porque o mundo está intacto, é como um lindo vaso de cristal, e a minha existência é como uma turbulência, é como o som estridente que estilhaçará esse lindo vaso da realidade. Eu sou distorcida, eu sou distorção. Eu sou o erro que existe num lugar tão certo! Tão em ordem! Tão no lugar!

Em algum outro momento, tento pensar também que isso é puro egocentrismo. É o que dizem. “Ninguém tem tanto tempo para prestar atenção em mim”. Mas e quem tem? E quem deseja ter? Eu tenho vontade de me afastar do máximo de pessoas possível, para não estragá-las, para não maculá-las, para não arranhá-las. Eu não cortei minhas unhas hoje, acho. Eu gosto de esmaltes claros, não chamam atenção. Muitas vezes passo só base. Eu também não entendo por que as pessoas prestam atenção nos meus coturnos brancos, se eles são brancos. Isso nem faz sentido! Eu acho que coturnos pretos chamam atenção porque são pretos, brilhosos, demonstram atitude, radicalismo, e tantas outras coisas. Mas meu coturno branco é apenas um coturno branco, fofo, angelical, bonitinho. Numa saia branquinha e um pouco florida, numa blusa branquinha e pouco chamativa. Eu não sou uma garota radical. Eu não sou uma garota radical. Eu não sou uma garota radical. Eu queria ser normal.

Eu queria que minha cabeça não fosse tão pesada.

E queria que as pessoas parassem de falar com a minha imaginação, porque elas gritam e nem sabem que gritam. Elas agridem e nem sabem que agridem. Elas fazem parte dos meus sonhos e pesadelos e nem sabem que fazem. Elas nem sabem que eu existo. Mas eu sei que todo mundo existe. Tenho uma base de dados de olhares e, não se assuste, você que está me lendo, mas lembro do teu olhar como lembro do que fiz mais cedo para almoçar. Todos os dias você me olha como me olhou naquele dia, aqui dentro, aqui no meu mundinho tribulado e turbulento, cheio de memórias vivas, de pessoas que hora são mortos-vivos tentando devorar minha mente e me levar à minha tão aguardada morte eterna, ora são prazeres devassos e culposos, ora são a grande saudade que tenho de um abraço que se finca na minha carne e me corta por inteira, me rasga por inteira, me faz sangrar, me faz chorar e me faz rir. Eu queria saber: por que minha cabeça é assim? Por que uma festa cheia de pessoas que não convidei? Por que se esforça tanto para viver mais aquilo que não foi revelado do que aquilo que foi? Por que viver de mistérios, de nuvens negras, de levantar vôos nas piores tempestades? Eu queria acordar cedo, lavar uma louça, ver o sol nascendo, e dormir sem aproveitar muito a claridade dos postes.

Eu queria me livrar da minha cabeça.

Queria me livrar desses caminhos enormes, que me fazem morrer de vontade de colocar alguém ali dentro para percorrer comigo, mas nunca foi possível. É um tormento existir quando só você existe e mais ninguém. Quando se descobre que ninguém pode entender exatamente o que você está falando, ninguém consegue formar imagens na mente exatamente da maneira como você forma, ninguém tem os recursos de informação capazes de montar exatamente o palco que você mesmo montou. Tratando-se de grande profundidade, a existência é só. Isso dói tanto! E não vai parar de doer nunca. Porque para muita gente é mais fácil procurar subterfúgios, e como respeito os subterfúgios!, nos manuais, nas gramáticas, nas teses, nos teoremas, nas equações, nas regras, nas leis, porque nada melhor para pensar a falsa sensação de que nos compreendemos do que medíocres leis universais, que não dizem absolutamente nada se não “Acreditem em mim! Confiem em mim! O que digo é verdade! Quem sou é quem você é! E quem seu vizinho é! E quem seu pai é! E quem seu filho é! E quem seu grande amor é! Se é que você acredita em grande amor! Eu sou todos, então não precisa inventar essa conversa de se descobrir, descubra-me! É muito mais fácil! É muito menos doloroso! Você não precisa dessa impressão horrível de que ninguém mais te entende! Você não precisa dessa vida tão cheia de incertezas! Você não precisa de tantas decisões! Você não precisa errar!”, o que, convenhamos, é muita coisa mas, de fato, é uma coisa só.

Na verdade, não respeito os subterfúgios. Na verdade, odeio-os. Mais do que qualquer pessoa que você verá abrindo a boca para reclamar de subterfúgios, para contestar subterfúgios. A mim, a liberdade só existe no segredo. Você só nunca saberá porque, quando sair daqui, de dentro do meu coração, de dentro dessas grades onde te aprisionei mas não pretendo deixá-lo por muito mais tempo, você sequer lembrará quem sou. Quando me ver na rua, não saberá que estou escondendo isso de você, porque você não é como eu. Eu lhe direi “respeito teus subterfúgios”, você me dirá “que bom”, e a vida seguirá sem que você saiba que, aqui dentro, pensei “eu nunca daria para alguém assim” (se estivesse confessando, encurralada, eu diria “eu nunca daria moral para alguém assim”, porque respeito subterfúgios). Talvez eu saiba fingir um beijo, talvez eu saiba fingir um abraço, talvez eu saiba fingir até sexo, talvez eu saiba fingir um casamento, talvez eu saiba fingir uma vida a dois, talvez eu saiba fingir uma família, talvez eu saiba fingir uma morte. Às vezes acho que é por isso que tenho uma imaginação tão fervorosa, tão fervente, feito uma caldeira. Porque, se minha boca finge, se meus olhos fingem e minhas mãos fingem, alguém precisa não estar fingindo, em algum lugar de mim eu preciso estar e, mais do que estar, ser.

E eu odeio subterfúgios, odeio com todas as forças. Odeio porque eles escancaram todos os meus defeitos. Eu consigo aceitar que pessoas vivam as suas falsidades para que todos vejam as suas falsidades, celebrem as suas falsidades, ritualizem as suas falsidades, mas… ao ponto de acreditar nelas? Ao ponto de realmente serem consolados pela falsidade? Ao ponto de viverem pautados na falsidade? Eu não invejo a capacidade de enganar os outros, pois isso sei fazer muito bem, mas invejo, e muito, a capacidade de enganar a si mesmo. Ando acreditando que isso não é uma falha de caráter, mas uma habilidade. Ando acreditando que não se sobrevive nesse mundo sem isso, porque a loucura às vezes me mata por dentro, me leva a uma dor que penso que meu corpo não vai suportar, que me leva a fantasiar o que há de mais horroroso, mas até hoje nunca morri por fora. Que bom. Mais um dia viva. Que bom.

Eu morro quase todos os dias por dentro. Nem que seja de levinho, nem que seja acidente de trabalho ou de trânsito. E então sinto sua falta, porque seu abraço me corta e me rasga, seu abraço arranca tanta dor, mas tanta dor, que às vezes me parece arrancar toda a dor. É assim que descubro que nasci de novo. E que, mais um dia, não morri por fora.

Mais um dia viva.

Que bom.

VocΓͺ leu um capΓ­tulo da sΓ©rie yasu

escrito por nubobot42 narrado por yasu