Como você pode esperar, não estamos na temporada de primeiras melodias, nem de segundas. Não vim sozinho, e não estou lhe ignorando.
Viemos falar de algo complicado.
Tá, talvez não tão complicado.
Oh, sim, complicado.
E do que viemos falar?
Do que? Eu nunca lembro.
Nós viemos falar do inferno.
Oh, sim? Então você começa.
Uma vez eu estava tentando dormir e tive um pesadelo. Algo envolvendo três pilares queimando na minha frente – estava tudo escuro, eu não conseguia enxergar o chão, nem as paredes. Havia apenas fogo e, de certa forma, algum objeto vertical sendo consumido pelas chamas.
Eu não tive esse pesadelo.
O que ocorreu na verdade foi que eu tive um pesadelo.
E eu não tive.
Isso não tem nome, ao certo. Na prática, o funcionamento é semelhante ao de uma alucinação.
Aonde eu estou acordado.
Mas eu não estou. E enfim. Penso no ser como um monte de rabiscos – não entendo de psiquiatria, e bom Deus me permita não entender mais nada que funcione a base de eletromagnetismo pelos saborosos próximos dois meses -, mas imagino que, embora haja um conjunto de regras que determine certos parâmetros-chave à máquina, o ser é um borrão. O que o ser vê é um borrão; o que sente, o que fala, a sua sequência em memória – não existe o concreto no plano real. Existe o que imaginamos ser concreto.
Não me venha com relativismo.
Não é relativismo!
Eu sei, só queria deixar claro.
É fácil às pessoas seguirem uma sequência lógica para as coisas. É extremamente fácil. É eficiente, evita vários problemas, é correto. Pode-se estar sendo entendido que quero dizer que um tipo de racionalismo é a melhor maneira de se enxergar as coisas, mas não necessariamente falo de racionalismo – falo da maneira comum de se sentir, observando pelo que realmente é, nunca descrendo do que está vendo, ou do que está ouvindo, ou do que está sentindo. Isso é correto; racionalismo não é correto, é burro. Mas isso não se escolhe.
Definitivamente não se escolhe, ninguém escolheria outros meios caso pudesse escolher um meio.
Embora pareça difícil viver quando se há algum senso de lógica.
Viver não é fácil.
Sim! Eu sei. Eu gostaria de proferir um pouco de inveja ao que pode enxergar a vida com um pouco de razão. Ao que sabe que o que está na sua cabeça no dia anterior é o que se passou no dia anterior com firmeza, ao que acredita no que está acontecendo, ao que sabe se está acontecendo. O fogo? Eu não terminei de falar do fogo.
Eu não sei o que você queria falar daquilo.
Você não sabe porque você não presenciou aquilo.
Mas não presenciamos aquilo de fato!
Sim. Bem, bem.
No entanto, se eu vou ter que falar disso mesmo, eu falo um pouco. É no mínimo engraçado, visualizando com uma certa distância de tempo.
Não é engraçado.
Tudo é engraçado. Se você não estivesse com depressão, saberia disso. Enfim, ok, continuando. Você já teve a sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo passando por coisas diferentes em cada um deles? Nem que seja da maneira mais simples, quando se está morrendo de sono e tentando terminar alguma coisa, às vezes dá umas fisgadas e tal, e a realidade parece não se decidir se quer ser aquilo que você tem que fazer, o sono ou alguma memória relacionada ou não-relacionada àquele momento? É basicamente isso – só que sem precisar fazer alguma coisa. Algum de vocês já experimentou viver a vida toda como se estivesse nesses momentos?
Alguém? Alguém? Por favor, alguém?
É bem divertido!
Bem divertido mesmo.
Há um mês e vários dias eu fui um torturador.
Pague pelos seus pecados.
Emocionalmente eu destruí uma vida. Usei várias armas – não todas, talvez eu tivesse conseguido se meu alvo fosse um pouco mais frágil.
Foi horrível.
Eu nunca mais vou fazer isso de novo.
Mas não adianta.
Não adianta. Eu não matei ninguém, mas sei que a pessoa está em depressão desde então. Atualmente ela só dorme com remédios, s…
Você não vai descrever tudo isso, vai?
Você quer?
Sim, dê-me as honras. Há um mês e vários dias eu fui torturado, tive minhas emoções destruídas e estou em depressão. Atualmente só durmo adequadamente com remédios (eu sou o oposto dos hipocondríacos, tenho fobia de remédios, então tenho problemas assim que acordo), sinto medo de ser vítima mais uma vez e sinto medo de não estar no controle. Quando digo estar no controle, sinto medo de acordar um dia e perceber que se passaram dois ou mais dias desde o que dormi, porque os outros eu não percebi que estava vivendo. É, uma certa forma de “viver no modo automático” – mas um pouco mais literal que o que imagino que você esteja imaginando. Quando fecho os olhos, vejo várias imagens, nenhuma delas do vazio que muitas vezes eu imploro para ver, e não consigo.
Você não explicou muito.
Eu sei que não. Isso era o que eu estava falando já antes. Mas eu não quero falar da depressão.
Por que não?
…
Você está demorando pra responder essa.
…
Se quiser, paramos por aqui.
Eu tenho que terminar de desenvolver a ideia!
Então desenvolva.
Eu queria passar a experiência interessante de saber que o ser é, em fato, abstrato. É provável que haja a maneira natural de estar, de perceber, ou de ser – mas é interessante, exceto a quem está preso ou mesmo livre nos meios alternativos e só consegue enxergar a dor, saber que existem n maneiras de realizar o mesmo. É possível que o hoje não se organize como “hoje”, é possível o “só depende de você” ser uma mentira muito frustrante. São tantas possibilidades de dificultar a própria vida que parece impossível imaginar por que alguém entraria nisso – a resposta eu não tenho, porque ninguém entraria nisso; as coisas simplesmente acontecem.
E quando você acorda, tudo está errado.
E quando você acorda, você está se escondendo de todas as pessoas em todos os ambientes para que elas não te percebam.
Não percebam que você não se sente humano.
Não percebam que você pergunta pra Deus todos os dias porque ele se deu ao trabalho de fazer um ser humano como você.
Que acorda todos os dias morrendo de medo do próprio espelho.
E morrendo de raiva por saber que não passa de um monte de lixo que, por acaso, aprendeu a andar e falar.