Série: Yasmine

Eu não confio mais em pessoas que se dizem felizes [Yasmine II]

11 de setembro de 2021

Eu não confio mais em pessoas que se dizem felizes. Eu desisti de me convencer que existe uma fórmula, e também desisti de me convencer que pessoas que dizem que não há fórmulas, que é uma conquista, uma construção do dia-a-dia, que existe um motivo, que existe qualquer coisa, estão corretas.

Essa luz maldita, tire essa luz maldita dos meus olhos. O que você quer com elas? O que você acha que está ganhando com elas?


Eu não confio mais em pessoas que se dizem felizes.

Certa vez, confiei em uma pessoa que se diz feliz. Foi horrível. Um dia qualquer precisei contar que estava triste e não tinha vontade de continuar existindo e ela, espantadíssima, me perguntou de onde vinha aquela conversa. Me disse que eu não poderia ter aquela conversa, que deveria ter mais fé, que eu deveria correr atrás do prejuízo. Eu só queria morrer. Não era assim tão grande coisa, era? É normal, todo mundo sente vontade de morrer de vez em quando, não sente? Mentira. Não sente. E isso é o que mais me perturba em pessoas que se dizem felizes.

O sabor de se dizer “quero morrer” não é amargo, nem doce. Não é tão sincero, mas também não é sarcástico, nem irônico. Diz muita coisa, com relação ao frágil mundo emocional, mas não diz nada, com relação ao mundo concreto e talvez nem ao mundo das ideias. Querer morrer é como um riso cansado, é algum trecho da vida emparedado e encurralado. É como aquelas cenas onde duas pessoas estão conversando do alto de uma torre, fumando, soltando frases filosóficas, despejando pedaços de vida tentando compreender se deveriam ter feito diferente ou não, se era possível fazer diferente ou não. Ninguém solta um “quero morrer” desesperado, à beira do suicídio. O “quero morrer” é um indicativo de força. Pessoalmente, quando me encontro no pior dos meus dias e desejo morrer, verbalizo o desejo de morrer, encontro um certo alívio nessas palavras porque sei que, se tive a força de vontade para declará-las, se elas vieram secas, se foram um mero corte-de-vento, é porque são apenas palavras. Tenho muito mais medo quando, afogada em minha própria miséria, já não sei mais o que quero dizer, se tenho algo a dizer. Meus momentos perigosos costumam ser ao preparar minhas cartas de despedida.

Temo que pessoas que se dizem felizes não fazem a menor ideia do que estou falando, nunca passaram por isso. Temo, até sendo o clichê de velha ranzinza introvertida que sou, que são pessoas que vêem os sentimentos com certo olhar utilitarista. É como se a tristeza atrapalhasse, é como se a dor atrapalhasse, é como se as lágrimas atrapalhassem – não, lágrimas não atrapalham mais, o universo coach descobriu que lágrimas são excelentes para “destravar o seu potencial”; eu odeio pessoas que destravam seu potencial. E o que atrapalha deve ser jogado fora. Deve ser desconversado, deve ser resolvido, deve ser consertado, deve ser adulterado. Não cabe no mundo. Num mundo dinâmico, num mundo eficiente, num mundo bonito, num projeto de mundo. Um projeto de mundo. Um mundo forjado no silenciamento sistemático das dores. Um mundo onde dor nunca tem causador, nem tem reparador, ela é um fenômeno espontâneo sem culpados nem causas. Um mundo ridiculamente falso.

Eu, peço desculpas pelo que vou dizer, gosto da minha dor e gosto dos meus sentimentos, gosto da minha tristeza mais do que gosto de pessoas que se dizem felizes. Eu prefiro me fechar nas minhas tristezas do que conversar com pessoas que vão me recomendar amputá-las, castrá-las. Mas isso não é um manifesto, uma nota de repúdio às pessoas que se dizem felizes, embora esse parágrafo tenha esse caráter combativo e talvez o anterior também.

Isso é uma carta de dor. Isso não é uma carta de despedida. Porém, para ser bem sincera, encontro-me sim emparedada, encurralada. Eu queria me trancar numa sala pouco iluminada e sem janelas com cada uma das pessoas que se dizem felizes em quem confiei, ficar de joelhos no chão e começar a chorar, chorar copiosamente, chorar soluçando, chorar gritando, chorar gesticulando. Quando ela pensasse em correr, tentasse abrir a porta, encontraria uma porta trancada, inquebrável, cuja chave se encontraria nas profundezas do meu coração. Então, se ela nunca teve a coragem de tatear suas próprias entranhas, teria de tatear as minhas. Teria de descobrir o que são sentimentos.

Jamais confie nesse tipo de gente. É o tipo de gente que vai embora. É o tipo de gente que vai te fazer perguntas quando ver a sua dor, que vai te trazer soluções, que vai dizer o certo e o errado, que vai sempre se achar o máximo ao oferecer uma mão quando o mais importante era oferecer dois braços e quem sabe uma lamparina. São pessoas que se sentem incomodadas com a sua dor. São pessoas que, ao ouvirem um problema, fazem de tudo para que o assunto não seja prolongado, porque falar sobre dor é perigoso e desnecessário.

Jamais guarde memórias de momentos felizes com pessoas que se dizem felizes: elas são falsas. Essas pessoas e nós (“nós”? Só tem eu aqui, né?) estamos em universos paralelos, em linhas paralelas, e eventualmente seremos descartados por isso. Não acredite que os momentos com essas pessoas ficam guardados para a eternidade, porque toda eternidade feliz só dura até o momento onde você se torna difícil demais de lidar. Porque em algum momento você se tornará uma desandada, como eu me tornei. Uma insuportável, como eu me tornei. Em algum momento será trabalhoso demais lidar contigo, um peso que só atrapalha e desorienta, que torna a vida de todos ao redor ineficiente. Sempre haverá uma desculpa, um argumento, para que seu descarte seja justificado.

Por mais legais que sejam as memórias, não confie nelas, não guarde-as, esteja sempre pronta para descartá-las em algum momento. Acostume-se a reconstruir sua vida, aprenda a não ter muito apego por ninguém. Acostume-se com a ideia de que as pessoas com quem você andava até outro dia se reúnem para rir de você. Com pessoas que se dizem felizes a culpa é sempre sua, você sempre poderia ter feito mais. Tudo dependia de você ter feito mais. De você ter “corrido atrás”. De você ter seguido as dicas para não ficar triste, de você ter cortado raizes de tristeza dentro de si. De você ter pedido ajuda.

As pessoas que se dizem felizes são muito atraentes, te fazem até desprezar aqueles seus amigos de outrora, com quem se dividiu os piores naufrágios. Não vou te julgar, pois já fiz até mesmo trocas, fascinada por um novo mundo social cheio de alegrias e festas, mas já vou adiantando que doeu demais descobrir que eu estava num deserto sem ninguém quando fui descartada. Como um papagaio, passei a reproduzir todas as falas inflamadas. Assim matei alguns de meus amigos. Outros, muito assustados, optaram por se afastar. Não importava porque eu estava com meus amigos felizes, tinha descoberto o segredo da felicidade, tudo estava bem demais. Não preciso dizer o que aconteceu.

Bem, agora sou uma velha, ranzinza e quase só. Ocasionalmente me descubro pensando na vida, em escolhas certas e erradas, e não concluo muita coisa. Quem conhecerá todas as linhas do tempo para dizer que fiz as melhores ou piores escolhas? E, devo dizer, não vivi uma vida feliz. Não tenho nada a acrescentar a quem quer dicas de como ter uma boa vida, você pode procurar pessoas que se dizem felizes para te dar conselhos. O que posso dizer é que me diverti muito. Muito, mesmo. Que tive uma vida destruída, que fui o mais rico depósito de lágrimas da região, que gritei na frente de quem pude, que sangrei e derramei sangue por onde passei. Que, enquanto estive aqui, arranquei sorrisos de pessoas que se diziam felizes.


Vocês gostaram da minha carta de despedida?

Verbalizada, ela não significa muita coisa, significa?

Eu? Jamais acreditaria em nenhuma dessas palavras! Sejamos felizes. Celebremos a vida. E quem não quiser comemorar com a gente, que fique em casa.


A professora de matemática Yasmine Lisa Wilma está bem, sem ferimentos graves. Foi só um susto. E não se preocupem, não é motivo para atestado médico, muito menos afastamento. Vocês terão a revisão para a prova de transformada de Fourier amanhã e a prova será aplicada no sábado, dia de reposição de aula. Não aconteceu nada demais.

Atenciosamente,
A direção.

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escrito por nubobot42 narrado por yasmine