Eu não escreveria se não tivesse necessidade. Ou talvez sim, escreveria. Não importa.
Cansado de ser acusado de sempre estar fugindo, sempre estar indo embora, de sempre me afastar, quero me defender. Ou simplesmente dizer que é verdade, mesmo. Não importa. Importa? Não, não importa.
Primeiro, deixe-me pegar o fio da meada, porque faz anos que não escrevo pras pessoas. Parece ridículo eu, heartshaped star, aquele que escreveu um livro em um ano e, em outro ano, uns dois ou três livros, falando sobre perder o fio da meada, falando sobre passar anos sem escrever. E realmente, a situação é essa. Eu sinto falta das pessoas. Eu sinto falta de você, que eu via todo dia, indo ao trabalho de bicicleta na Avenida Arthur Thomas às sete e meia da manhã. Acho que não sei escrever muito bem quando estou trancado no meu quarto na maioria dos dias, com acesso apenas às pessoas que são parte essencial da minha vida, pois são parte de mim, pois são eu, enquanto o que sei escrever de melhor é sobre o mundo lá fora, fingindo que estou escrevendo sobre mim mesmo, porque afinal de contas eu faço parte do mundo. Porque afinal de contas eu respiro ar, o ar entra no meu corpo, dá a ele um pouco mais de vida e vai embora, assim sucessiva, infinitamente, até o dia em que eu não puder mais receber ar. Então eu não existo sem o mundo lá fora.
É muito difícil viver sem a imaginação do viver lá fora.
Lembro, também, que essa não é a primeira vez que vivo sem existir lá fora. Tomara que seja a última. Tolerem se eu soar muito repetitivo sem ser legal, apesar de que, talvez, eu sempre tenha sido chato ao ser repetitivo, não seja algo da minha linguagem atual mas uma característica real e irresolvível. Talvez as pessoas enjoem de mim enquanto me lêem, às vezes até no começo do texto. Talvez as pessoas apertem o PAUSE mais do que eu imagino que apertam, talvez passem para a próxima faixa, talvez ninguém tenha me ouvido por inteiro. Isso é assustador. Talvez ninguém nunca tenha realmente prestado atenção em você, em toda sua vida. Você acha que se expressou da melhor maneira para as pessoas, que elas te ouviram, te entenderam, consideraram o que você disse, sentiram o que você disse, pensaram nisso, tiraram conclusões, deixaram guardadas para o futuro. Mas e se a pessoa trocou de faixa enquanto você fazia esse esforço, e você nem mesmo ficou sabendo disso? E se ninguém ouviu por inteiro? E se ninguém nunca te ouviu por inteiro?
E se você quer saber: sim, eu sou uma pessoa má. Sim, ruim. Péssima. Eu apronto com as pessoas, eu fujo das pessoas, eu faço diversas maquinações, eu traço planos de destruição em massa, bem como também traço planos de manipulação em massa, bem como você deve tomar um pouco de cuidado com as paredes do seu quarto, pois talvez eu tenha colocado alguma câmera lá. Posso saber coisas suas que você nem imaginava que eu sabia. Haha! Assustador. Mas não, não quero dizer exatamente isso.
Acho que descobri ser uma pessoa horrível quando percebi que não tenho ninguém exatamente perto de mim. E pior: boa parte das vezes não foi por culpa dessas pessoas, foi minha. Eu simplesmente me afastei. Eu simplesmente agredi. Eu só decidi que sim, já deu. Não perguntei pra ninguém se, de fato, já tinha dado. Não perguntei para a outra pessoa que, foi mal, já deu, se ela concordava com isso, se ela poderia fazer algo para reverter isso, se poderíamos conversar melhor. Não, não poderíamos conversar melhor. A verdade é essa: não poderíamos conversar melhor.
Existe um motivo pelo qual eu fujo das pessoas e das situações, e esse motivo é simples: eu fujo porque um dia não fugi. Porque sou uma pessoa que já ouviu demais, que já apanhou demais. E, como toda pessoa que ouviu demais e apanhou demais, eu já achei que isso fosse normal, eu já disse “Não! Isso não pode ser normal! Eu vou resistir! Eu vou retrucar! Essa pessoa vai saber tudo o que penso, isso não vai ficar assim!” e fiz tudo isso que falei que faria, e o resultado foi incrivelmente estúpido: nada mudou. Ninguém me ouviu, ninguém deixou de me bater, ninguém ficou realmente interessado. Meu histórico de relacionamentos é basicamente constituído de pessoas que precisaram muito de mim mas, quando precisei um pouquinho do muito delas, eu não tive nada. Então, sim, eu fujo. Eu não insisto mais.
Eu fujo desse sentimento de falar tanto para, no final, nada acontecer. Esse esforço hercúleo de comunicação que se mostra monólogo, mostra-se unilateral. Eu estou cansado de não falar, por achar que não serei ouvido, e foi por isso que fui embora, foi por isso que te deixei. E talvez você seja malandro, ou malandra, ou malandros e malandras, o suficiente, para aproveitar-se da minha fuga e dizer “É isso mesmo! Deu no pé! Fugiu da raia! Porque sabia que não tinha nada de errado do meu lado, sempre foi o seu, sempre foi você a pessoa complicada, a pessoa de falas difíceis, a pessoa que não se adequa, que não faz esforço para se adequar e se encaixar. É! É você! Não sou eu!”, que ótimo! aproveite seu sentimento de inocência, conte para todos os seus amigos que você não fez nada de errado, sinta-se bem com a sua retidão e, na próxima oportunidade de encontrar alguém como eu, encontre, viva, e depois deixe-o sair, e seja perfeito, e tudo será perfeito, tudo será lindo. Porque você é uma pessoa boa e incrível. Vocês são todos pessoas boas e incríveis. Eu sou ruim. Eu sou horrível! Meu cabelo é bagunçado, eu uso coturno, eu saio de madrugada um tanto maluco em busca de névoa e bons retratos florestais, minhas caixas de som, quando as tenho, não tocam o que há de mais agradável, refinado, rebuscado, culto e benevolente, e choro com certa freqüência, e me isolo às vezes para repor as baterias que rapidamente se gastaram no meio do público. Como poderia alguém acreditar que vocês, ó senhores de altos discursos de retidão moral, de altas buscas por equilíbrios, de nobres títulos na comunidade dos seres de bem, estão errados? Não, não estão, aproveitem isso, aproveitem seu conceito entre os seus iguais, que aliás são muitos, a grande maioria.
Aproveitem, sim.
Mas sintam o vazio no peito que deixei. Lembrem sempre que fui aquela pessoa que tirou tudo dos eixos, que fez com que todas as peças desse tabuleiro de xadrez fossem trocadas de lugar, fez com que novas táticas fossem buscadas para uma vitória que por vezes foi dada como perdida, fez com que cada talento de cada peça fosse estressado ao limite, fez com que florescessem novas formas de arte para destruir esse intruso, expulsar desse sistema essa coisa que tira dele um equilíbrio que talvez tenha sido provado frágil. Façam o todos-contra-um, sociedade! Mostrem o que a maioria é capaz de fazer com a minoria! Expulsem-me, devolvam-me ao esgoto, arranquem os meus olhos, silenciem-me, cerquem-me de câmaras que façam com que minha voz ecoe apenas a mim mesmo, retornem-me ao estado de louco, alucinado. Diga a todos que meu fogo era de palha! Diga a todos que sou um enganador!
Você, e vocês, estão condenados a nunca me esquecer. A vida não será a mesma sem mim. Nunca será. Seguirão seus rumos, mecanicamente. Voltarão a viver a automatização, a dócil e servil vida que todos vivem, com tranquilidade, fazendo de tudo para acreditar que está tudo bem, nos conformes. Tudo normal. Mas de noite, naquele momento em que simplesmente encostavam suas cabeças nos seus travesseiros e pensavam “boa noite”, não pensarão “boa noite”. Lembrarão de mim, lembrarão do que falei. Lembrarão que está frio lá fora, lembrarão das texturas das árvores mais bonitas do lago, e também das mais feias. Lembrarão que os pássaros não estão lá por acaso, lembrarão que as nuvens não estão lá por acaso. Ouvirão sons e lembrarão que os sons também não são por acaso.
Lembrarão de mim.
E farão de tudo para pensar que escrevo as minhas palavras com ódio, raiva e dor. Imputarão em mim lágrimas que já não choro mais. Me acusarão de uma raiva, de uma erupção, a qual realizei há eras. Sentirão meu ódio. Dirão que sou eu, que eu falhei, eu estou falhando, eu precisava de apoio, eu precisava de saúde física e mental, eu precisava não estar acordado de madrugada. Dirão que, só porque eu coloquei esse fogo no peito, ele é meu.
Saberão, entretanto, que foi amor. Que um ser como eu, consumido por um ódio mortal de uma vida de inadequações, já não pôde mais viver dessa perigosa combustão. Certamente morreria, certamente não aguentaria.
Só sobrou amar. Só sobrou o amor.
Bem sabem que foi amor.