E o que você faz, diante de todos esses desencontros?
Eu queria você por perto. Do jeito que é. Só é muito difícil acreditar que um dia você estará de volta. Do jeito que é.
A seguir, uma série de afirmações falsas que escrevi pensando em você:
1. Schleiermacher afirmou que Deus está nos sentimentos e, portanto, é certo que Deus está nos momentos em que foi inevitável pensar em você, perdida nos ponteiros do relógio por horas e mais horas.
2. Sócrates disse que devemos conhecer a nós mesmos. Mas conhecer a mim mesma é conhecer a você, e todos os vocês que estão aqui dentro, e todos os vocês que eu gostaria que estivessem aqui dentro, mas principalmente o você que não sai e não se mostra há muito tempo. E eu queria perto. Do jeito que é.
3. Não importa o que Heidegger tenha dito, eu queria Ser Ao-seu-lado No Tempo.
4. Nada mais importa. Porque eu não sou inteligente. Não sou uma pensadora.
Ainda assim, me perco em meus pensamentos.
Não penso em pensadores para nada que não seja aproveitá-los, do início ao fim, para escrever sobre a dor de não saber exatamente onde está, como está mas, principalmente, o que se é. (Eu estou com fome). Não sou o tipo de pessoa que se importa com os pensamentos, nem o tipo de pessoa que cataloga os pensamentos, mas sei que você é, e tenho pena de você. Te acho ridículo. Quando me diz que tem certezas, te acho um errado. Te acho um erro. E te amo. Toda a dor que tenho, talvez, seja porque esse erro está dentro de mim, consumindo meus instantes e minhas posições. É mentira. Essa dor é minha. Uma dor de um sentimento que não sei muito bem expressar com palavras, nem com símbolos, nem com gestos e nem com nada que você consiga imaginar porque só eu consigo imaginar.
Eu fecho os olhos e vem, na minha mente, o caos. Rabiscos se movendo em preto-e-branco, colorindo-se e descolorindo-se, transformando-se em desenhos e cenas que logo depois se desmancham. Ruídos que logo tornam-se sons equilibrados e depois se desequilibram, vozes que entram e saem, ambientes que mudam e que permanecem os mesmos, músicas que só existem dentro de mim mas parecem conhecidas por todos, porque sempre as encontro num disco qualquer e depois, quando ouço novamente, percebo que na verdade ela não estava lá. Um disco não existe por si só — existe, eu sei, mas não para mim, que não sou aquele disco mas outro disco, que o absorve e o torna outra coisa que não aquela, e às vezes ouso chamar a nova música de minha entretanto o mais comum e quem sabe mais correto é que chame a nova música de música antiga, algo que roubei, que fingi ser meu por um instante mas guia minha vida, meus passos, minha próxima decisão e eu às vezes acho que apenas aceitei. Eu não sei.
Do jeito que sou.
Eu não sei o jeito que sou.
E o que faço, diante de todos esses desencontros.
Às vezes, quando conversamos, sinto que estou escondendo coisas de você. Sinto que estou escondendo tudo. Sinto que você não sabe que aqui dentro escondo lâminas, ondas, relâmpagos, árvores e labaredas. SINTO, não ACHO, porque digo que sinto. Porque quem diz o que são meus sentimentos sou eu. Pouco me importando com as suas regras de lógica e comunicação. E o que sinto, sinto. Sinto, quando olho nos seus olhos, uma calmaria que sinto que não deveria estar lá. É mentira. Quem sabe realmente sejamos isso, essa tempestade em copo d’água; só que acontece que, do ponto de vista do copo, não há nada pior do que estar cheio d’água. Quem sabe realmente só devamos carregar isso conosco sem que ninguém saiba, em segredo, sem trazer forma de nada ao mundo, como tantas pessoas parecem fazer e parecem estar satisfeitas ou ao menos conformadas em fazer. Quem sabe o mundo de trevas ao meu redor, cheio de desconhecidos e dos desconhecidos, dos sentimentos jamais revelados, das verdades jamais ditas e das intenções jamais desvendadas seja o mundo que deva estar ao meu redor. Eu me conformo. Eu sempre me conformo. É o que faço, diante de todos esses desencontros.
Sinto que estou escondendo tudo. Sou enganada pelos meus sentidos porque, revelando desesperadamente cada fragmento do meu coração, acabo os entregando a alguém que, de fato, me esconde algumas coisas. Porque se esconde de algumas coisas. Para mim você sempre será um garoto, bem pequeno, do tamanho de minhas mãos, que ainda consigo aquecer com um abraço bem apertado, sorridente e envolvente. Para mim as suas equações sempre serão as melhores, resolverão quaisquer problemas clássicos, modernos e pós-modernos. E seus pensamentos: eu não concordo com eles, não porque acredito que eles estão errados mas porque não penso em pensadores para nada que não seja aproveitá-los; seus pensamentos, então, são muito bem aproveitados aqui. Quando você me contou sobre Schleiermacher, confesso, entrou por um ouvido e saiu pelo outro, mas decorei como se pronuncia e como se escreve e, desde então, pareço uma garota muito inteligente onde quer que eu esteja; e não sinto que estou errada, nunca senti nem nunca sentirei. Ainda que alguém descubra meu terrível disfarce e me chame de burra, nunca me sentirei burra, porque o que sinto, sinto, e sei o que sinto, não sei o nome e o sobrenome mas sei o som e a cor, e acredito que de nada valem as pessoas que conhecem todos os nomes e sobrenomes mas não têm ouvidos nem olhos. Para mim os seus sons sempre serão os melhores. E para mim as suas cores sempre serão as melhores, as mais bonitas, eu conseguiria pintar qualquer quadro com seu beijo e apagaria qualquer desenho feio no seu coração com as suas lágrimas. Para mim o seu lugar não é um quarto escuro procurando um sentido, porque para mim você é o próprio sentido.
E, se tantas vezes pedi para que você ficasse quieto, é porque, quando fala demais, vejo que se perde. Quando perde tempo abrindo a boca, é inevitável: você se perde. Não porque suas palavras são pouco sábias mas porque, criando essas montanhas de palavras, você acaba soterrando o que há de mais básico, de mais fundamental, que te lembra que, não, você não é a lição de casa, você não é o texto não lido, a mensagem não visualizada, a defesa desnecessária, a lista não marcada. Você é você.
Eu ainda consigo antecipar a sua dor. Ainda sinto que consigo saber o que você quer dizer, mesmo antes de abrir a boca, mesmo sem fazer qualquer tipo de leitura labial. Apenas pegando nas suas mãos e sentindo a temperatura, encostando no seu peito, compreendendo o ritmo dos batimentos cardíacos e comparando com o compasso da respiração. Ainda sinto que você é o mesmo. Que ainda tem os mesmos sonhos e ambições.
Pudera, faz apenas quatro horas que nos vimos pela última vez.
Do ponto de vista de copo, estou cheia d’água.
E você estava lindo. Como sempre.
~lalala~