Série: nós, peter dangerous, ouvimos 2019

1. earth, wind & fire

31 de janeiro de 2020

eu não seria o primeiro a dizer que os estados unidos da américa são mestres na arte das vozes, mas também não sei quem diria isso, só sei que é impossível que ninguém nunca tenha dito isso. eu nasci e cresci debaixo dos corais evangélicos, e esses corais evangélicos todos nasceram nos estados unidos. e eu nasci e cresci debaixo de umas músicas evangélicas que eram regravações em português de músicas americanas, que estavam aí há décadas, algumas até há séculos.
em todas elas, as vozes.
uma característica que separo ao falar de earth, wind & fire é acreditar, com muita firmeza, que eles são uma banda que exploram a arte da voz. a sensibilidade, a vitalidade, as cores, os tons, tudo o que era possível de se explorar na voz dos anos setenta. essa é a característica. vozes.

ouvir um disco do earth, wind & fire era ter certeza de que ao menos todas as cores primárias e secundárias seriam utilizadas. eu acreditava apenas no vermelho e no laranja quando comecei, mas fui surpreendido com muito azul, principalmente nos céus. talvez porque eu esperava um pouco de james brown e james brown, como todos sabem, só faz músicas vermelhas. por algum motivo, quando penso em funk, penso no vermelho, ainda que sly & the family stone também não seja de fato vermelho. só james brown é vermelho. earth, wind & fire é muito vermelho mas não é só isso, falta o “wind” e o “earth” e, se creio que o azul representa o “wind” já que é uma banda de céus sempre azuis, não consigo pensar em nada tão óbvio para o “earth”.
não estou fazendo relações entre nomes e cores só para brincar, mas também não é nada tão sério. é para lembrar que, nos anos setenta, um grupo de pessoas era capaz de criar um verdadeiro universo mesmo estando distante da cena progressiva da época, e esse universo permanece intacto até hoje. o ewf é “progressivo”, da sua forma, não só porque temos instrumentais violentos e absurdos como zanzibar, ou porque temos longos solos de teclado ou de sax, mas porque temos a “progressão”.

na verdade, temos muita coisa.
tanta coisa que nem sei como continuar escrevendo.

eu posso falar em como descobri que a realidade do pop não existiria sem earth, wind & fire. não existiria michael jackson, não existiria prince, nem madonna, nem cyndi lauper, nem rihanna e todos os outros nomes que confesso não me importar muito no momento, nem tantas outras coisas, porque existe um coração no pop americano que pulsa as cores do earth, wind & fire. é uma mágica, uma familiaridade nos ouvidos que dá a sensação de que ouvir um disco do ewf é como ouvir pop de 1970 até 2070 mais ou menos, como se você estivesse compreendendo os fundamentos dos fenômenos do pop que apareceram até então e também antecipando as futuras manobras, quais os futuros espaços que serão ocupados. está tudo ali. o passado, o presente e o futuro do pop. a impressão que ficou pra mim é que eles inventaram tudo, mais que qualquer outro artista da época. até mesmo as vozes. a discografia do ewf foi um verdadeiro momento de fascínio e espanto, uma conformidade de quem se percebe pequeno, incapaz de inventar esse conjunto de instrumentos, sobrando a mim apenas a montagem (“como se a montagem não fosse igualmente digna e musical”, é claro, mas a dor de perceber que o tempo dos instrumentos se foi às vezes ainda me atinge. eu sou bobo).
eu posso falar em como o negro americano, na música, representa uma liberdade jamais expressada por qualquer outro. o earth, wind & fire, dessa vez como o james brown, me traz uma sensação até atordoante de ouvir quem não economizou em absolutamente nada: e por “falta de economia” não entenda um esbanjo nem um exagero, mas uma entrega completa onde nada ficou de fora. tem suor no som, as guitarras não param de vibrar, as cores não param de ser jogadas na tela, não há silêncio que não seja estritamente necessário, cada segundo é aproveitado. liberdade. liberdade total. é como uma identidade se desdobrando sem vergonha, entregue nu aos ouvidos de quem quiser ouvir. as vozes nada tímidas, sendo tudo o que deveriam ser. o teclado aparecendo sempre que possível, mas nunca em vão. o estridente e o suave, às vezes ao mesmo tempo. as percussões. e eu poderia mencionar tantas coisas, mas tantas coisas, que meu texto se tornaria (mais) enfadonho, triste, lamentável, simplesmente técnico, quando a minha intenção ao citar tanta coisa é ficar babando no fato de tudo isso existir, estar aí, e não poder ir embora assim sem mais nem menos. enquanto qualquer um desses artistas pop que em sua maioria eu nem mesmo gosto estiverem fazendo sucesso um pedacinho intruso de earth, wind & fire estará neles implorando para que as vozes voltem a gritar, para que a liberdade não seja uma pauta, um interesse, um instrumento ou um discurso, mas a própria vida da música.

eu posso falar que, quando ouvi sly & the family stone ali nos vinte anos, achei que não conheceria maneira mais interessante de se contar uma história com “esses instrumentos engraçados”. e que, quando ouvi james brown ali aos vinte e poucos, achei que nunca conheceria alguém com tanta energia – e, de fato, talvez até hoje não tenha conhecido. e que, quando ouvi stevie wonder ainda nesses vinte e poucos, achei que estaria nos limites da sofisticação de todo esse movimento – e, de fato, pode ser que eu estivesse. mas earth, wind & fire tem tudo isso que gostei tanto nesses outros artistas e, ainda que não saiba expressar tudo o que foi ewf e por isso esteja entregando a vocês um texto meio-apaixonado meio-atrapalhado, queria colocar isso aqui. earth, wind & fire me tornou mais livre, mais capaz de modular aquilo que há de mais exagerado no meu coração e transformar em uma das mais puras formas de liberdade. isso me fez mais feliz, mais leve, mais ousado; me fez entender que, dentro de mim, podem existir quantos instrumentos eu quiser ao mesmo tempo e nada me impede de usá-los todos desde que, para mim, faça sentido. coloco-os para fora e Deus faz o resto da mágica.

obrigado earth, wind & fire.

 

 

Você leu um capítulo da série nós, peter dangerous, ouvimos 2019

escrito por nubobot42 narrado por peter dangerous