Enquanto não coloco a Church Of Imagination pra jogo, e não consigo acessar meu próprio Medium, vou criar um Paper.wf para colocar alguns textinhos que vierem na minha mente. Sempre sinto que escrevo um pouco demais no Twitter e ter uma plataforma de textos me ajuda muito, anda me fazendo muita falta.
Quero falar um pouco sobre como é meu relacionamento com a raça, até para esclarecer a mim mesmo onde estou, o que estou sentindo, aceitando, não aceitando, etc. Eu tenho esse problema de não me compreender muito bem enquanto não passo para o papel, e meu papel anda muito parado ultimamente, então imagino que eu esteja uma verdadeira confusão por dentro e isso é normal. Aos 18 anos é desesperador, mas aos quase 30 já é muito aceitável.
QUANDO DESCOBRI QUE ERA NEGRO E DE UMA FAMÍLIA NEGRA
Vamos começar com o seguinte: ali pelo meio de 2019 eu descobri que era negro. Sim, antes disso eu não sabia, e eu acho que isso é bastante comum para pessoas que marcam nos papéis “Pardo”, que não entendem muito bem porque ganham cotas assim como quem marca “Negro”, que moram em centros urbanos no interior do Paraná onde não se debate(ia) tanto isso em bairros periféricos. Não é que eu nunca tenha passado por um episódio de racismo: é que, quando uma pessoa não se entende como não-branca, ela fica blindada de dizer que “é racismo”, a não ser que algum branco em seu racismo quebre o silêncio e faça como aqueles velhos que saem na mídia chamando outros de “preto imundo”, de “criolinho”; andam juntos o não-entendimento do que é a branquitude com a negação do racismo. Já passei por vários, de racismo recreativo a racismo explícito, que só faltou dizer o motivo, só faltou colocar minha cor na mesa e ela não seria colocada. E vim a passar por outros também, mais pra frente.
Eu não descobri que era negro por ler Djamila Ribeiro, Silvio Almeida, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, entre outros. Também não foi por estar no meio de várias pessoas da internet que conheciam o assunto porque, honestamente, e bem sei que faço parte disso, é muito difícil tentar aprender coisas com outras pessoas na internet. É tudo muito agressivo, muito reativo, o calor da internet é o calor do lugar onde todas as teorias estão pra jogo, sendo experimentadas ou usadas ou até encarnadas, e se chocando umas contra as outras.
Eu descobri que era negro porque a pessoa com quem namorei e hoje sou casado é descendente de japoneses então, assim que entrei na família, já fui informado de que era negro. Poderia ter sido uma história de racismo e discriminação – como vi acontecendo com muitos, inclusive amigos meus, inclusive amigas nipônicas minhas que amavam negros mas sua família não aceitava o relacionamento – mas, felizmente, essa família afirmou minha raça. Percebiam coisas estranhas como o fato de eu ter vergonha do meu cabelo e não deixá-lo crescer, como eu não me considerar negro sendo que eu era, que esses eram meus ancestrais e ponto final. E também num episódio especial uma das pessoas da família veio me perguntar se eu me ofendia de ser chamado de algo que nem lembro o que era, começou a falar que tinha um pouco de medo porque hoje em dia tudo poderia ser racismo (era um pouco pejorativo e um pouco sincero), que os negros não deveriam se rebaixar a usar cotas e aquela conversa anti-cotas de sempre, e aí outra pessoa mais próxima de mim na família resolveu se levantar pra defender que os japoneses não entenderiam isso porque os japoneses não foram escravizados lá atrás, e essa pessoa... entendeu, simplesmente. A pessoa que me defendeu votou, em 2022, em Jair Messias Bolsonaro, como mais de 70% dessa região metropolitana. É uma ambiguidade do interior do Paraná que quem está de fora não deve saber muito bem lidar, e que às vezes me sinto cobrado por saber lidar, mas eu sei, e sei que é necessário saber, porque 2026 está longe mas existe.
Sendo assim, tive que encarar esse choque: se eu não me considerava negro, azar o meu, porque minha nova família me considerava. Porque minha ancestralidade me dizia. Porque as pouquíssimas histórias sobre uma tataravó paterna escrava alforriada casando com um italiano branco pobre que veio enriquecer aqui, e como seus filhos todos discriminavam abertamente ela com coisas como “papai era bonito e mamãe era muito feia, sofrida de feia” significavam muita coisa. Há muita coisa na minha ancestralidade. Os pais do meu avô materno colocaram ele e uns irmãos em algum transporte que nem sei qual foi, porque eles morreriam de fome se ficassem lá em Sergipe, e meu avô acabou parando aqui; minha avó materna é do interior de São Paulo, branca, não sei a história de seus ancestrais, mas nenhum deles é rico e nunca foi; meu avô paterno é negão, minha avó paterna é parda. É muito misto, mas um caldeirão inegavelmente brasileiro. Sempre dei atenção a isso da perspectiva de um escritor, mas nunca da perspectiva de um descendente, do que isso significaria, talvez porque não exista muito isso de “ascendência”, “descendência”, em famílias como a minha. Meu sobrenome é Santos Ribeiro, Santos é o segundo sobrenome mais comum do Brasil, Ribeiro é o décimo-segundo. Ninguém nunca ligou pra isso. Ninguém nunca colocou uma imagem na parede com a árvore genealógica da família escrita em sua língua materna.
Também é difícil me situar porque minha família, sendo assim, é gigantesca. Não estou falando de mapear todos os Santos e todos os Ribeiro do mundo, estou me restringindo apenas aos Santos e aos Ribeiros que estão comigo. Minha família é espalhada por muitos cantos do Brasil e já foi muito mais. Minha família é composta de itinerantes que já moraram no Mato Grosso, no Mato Grosso do Sul, no Pará e em Sergipe. Composta de pessoas que hoje estão espalhadas pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, e fora do Brasil também. Só aqui em Londrina, além da minha própria casa, existe a casa dos tios da minha mãe, dos primos da minha mãe que já são outras famílias com talvez 30 pessoas e seus costumes. Temos histórias de donos de bordeis a prostitutas, de católicos fervorosos a freiras a crentes fervorosos (por um tempo, nós inclusive) a umbandistas, pessoas que já se interessaram por espiritismo. Pessoas que “cresceram na vida” e se tornaram classe média-alta, uma das primeiras mulheres engenheiras formadas na FEI de São Bernardo do Campo é da minha família. E pessoas que, hoje mesmo, passam necessidades. Pessoas filiadas ao Partido dos Trabalhadores, pessoas que fizeram campanha para o Jair Bolsonaro. Militares, policiais rodoviários, usuários de drogas e traficantes, inclusive quem sabe alguns desses irmãos entre si. Transtornados. Até gente que casou com parente do Carlos Drummond de Andrade. Tudo o que você imaginar, que você imaginaria “esse tipo de coisa acontece no Brasil”, aconteceu na minha família em algum momento.
Isso, eu não sabia, faz parte de ser pardo, faz parte de ser negro. Percebi que outras famílias não possuem tanta história pra contar. Não é como uma das minhas famílias que simplesmente não gosta de contar muito essas histórias mas, se você começa a fazer tal coisa, seu parente surta porque lembra de alguém que trilhou o mesmo caminho e teve péssimas consequências, elas... Só não possuem tantos familiares assim, quando tem festa de final de ano e enche aquela casa com 30 pessoas são as 30 pessoas da família, só tem isso mesmo. A outra das minhas famílias enche uma casa com 30 pessoas e eventualmente pode brotar gente do nada, aí de repente eu descubro que essa pessoa é da família também, a pessoa começa a beber e contar história e todo mundo nascido antes de 1985 sabe a história.
Essa é a minha família, no contexto mais amplo. Ainda não explica muita coisa, eu sei, porque eu tive uma criação peculiar hora exaltando isso hora repudiando. Eu fui criado por um casal de evangélicos, “jugo desigual” a princípio. Minha mãe era católica e meu pai evangélico, depois de um tempo casados minha mãe se converteu. E a conversão teve um impacto bastante estranho na minha cultura familiar porque, embora o neopentecostalismo seja algo bastante negro pelos fiéis, ele é muito branco da parte dos líderes – é claro que o pastor da igrejinha do bairro muitas vezes é negro, mas ele presta contas a uma teologia branca, quando não a donos de redes de igrejas brancos. Fui uma criança que ouvia louvores e era proibido de ouvir qualquer outra coisa, mesmo que meu avô fizesse roda de moda de viola todo final de semana; que meu tio-avô, de Londrina mesmo, fosse músico da banda da prefeitura e tocasse bossa nova, MPB, samba, forró, guarânia, etc. nos bailinhos da cidade; que meus primos fossem agroboys e a gente ouvisse Grupo Tradição na casa da minha avó e no fundo eu achasse Michel Teló um dos sanfoneiros mais fodas que existem; que minha tia, também de Londrina por um tempo, cantasse MPB nos bares; que toda a minha família por parte de mãe conhecesse absolutamente tudo do samba e da bossa e da música popular brasileira, que minha mãe tivesse crescido ouvindo isso, que sempre que eu descubro algo do MPB e posto nas redes sociais todas as minhas tias e até minha avó vêm me falar “Olha o que você desenterrou! Eu ouvia isso direto”. A última banda foi o Quarteto em Cy. Eu fui privado de tudo isso por ter crescido num meio evangélico onde música secular era proibida e “do diabo”, todo o meu espírito musical acabou extravasando para as músicas dos videogames, sendo eu compositor de chuveiro desde os sete anos de idade, e só sobrou na adolescência passar disso para o caminho mais transgressor possível que seria o rock.
Isso ajuda um pouco a explicar ainda mais a confusão com a minha identidade racial. Acho que eu carrego coisa demais, culturas conflitantes demais, identidades conflitantes demais. O meu evangelicalismo não é nada negro, ele é branco, as músicas gospel que eu tinha obrigação de ouvir eram brancas, inglesas, australianas e norte-americanas. A minha igreja é composta de pastores brancos, faz parte de organizações brancas e norte-americanas, o ideal de ser humano na Terra para eles é branco não porque eles sejam supremacistas mas porque tudo o que eles aprenderam é branco. Teologia branca, norte-americana e hegemônica, “bíblica”, superior às demais que são taxadas de “ideológicas”. Eu cresci achando que o comportamento da minha família musical e não-evangélica era errado, enquanto o comportamento da minha outra família, a “mais” negra inclusive, estava correto, porque eles eram evangélicos. Isso é mais uma ambiguidade a se lidar: na verdade, a minha família “mais negra”, evangélica, ainda assim, é a que mais sofre racismo, porque é uma família dura, criada na brutalidade, por ter participado de uma realidade muito mais difícil, por ter encarado casa de chão batido e quase nada pra comer, por ter colocado meu pai pra trabalhar aos dez anos de idade como bóia fria, servente de pedreiro, engraxate, o que viesse, para pagar seus materiais escolares. Eles brigam mais mas ninguém entende isso de fora, os julgam muito do lado de fora, sem saber que isso é só consequência do ambiente em que foram criados, porque era necessário criá-los daquela forma naquela época difícil de ditadura militar. E essa criação bruta, não sabia eu ainda, era também parte da identidade negra, parte de mim, porque eu também fui criado assim até meu pai descobrir que existiam maneiras mais amorosas – ele foi descobrir isso comigo mais velho, muito porque fui uma pessoa que o peitou bastante e disse “eu não quero ser tratado assim”, e ele foi compreendendo meu lado e hoje somos bastante amigos.
Enfim, estou jogando todo esse histórico em vocês mas saibam que, quando eu fiz esse exercício de me identificar com o negro, tudo isso veio pra mim também. E não veio como forma de texto. É como aquelas catarses que você tem e reescreve toda a sua vida, todas as suas memórias, te dá todo um novo jeito de interpretar a sua história. Isso é relativamente normal pra mim, visto que sempre fui um pouco maluco e fui fazendo isso ao longo dos anos conforme descobria qualquer coisa nova. Só que acho que foi um pouco mais... forte, porque não tocou nas áreas da vida que eu mais tinha dificuldades (relacionamentos amorosos), tocou em todo lugar. Me fez perceber privilégios e opressões que para mim sempre foram normais e aceitáveis e, de repente, começaram a me indignar.
Não eram como as carências que sempre doíam por nunca serem supridas, eram dores que eu tinha me acostumado muito bem a lidar, a fingir que nem era dor. E agora era dor, e doía, e tudo fazia mais sentido assim.
MEU CABELO E ESTÉTICA
Em primeiro lugar, eu decidi deixar meu cabelo crescer. Isso não foi ideia minha, confesso. Foi ideia dos meus familiares japoneses como exercício de afirmação da identidade racial. Deixei meu cabelo crescer e a primeira reação estranha foi dentro de casa: meu pai não entendeu, minha mãe também não, já meus irmãos pagaram muito pau. Depois, claro, vieram piadinhas de outros lugares. Também acabei tendo que perceber que não cuidava tão bem do meu cabelo como deveria, passei a gastar mais caro com um cabeleireiro que fosse acostumado a lidar com cachos grandes, a gastar caro com produtos capilares, mas sempre deixei claro que me deixava puto saber que um homem branco não precisava fazer nada disso para se afirmar no mundo, que todo homem branco que cuida do seu cabelo cuida pela sua vaidade e não porque os outros ficam enchendo o saco para ele cuidar.
Foi uma história muito interessante, de qualquer forma. Foi mais ou menos na mesma época que teve aquele Big Brother Brasil com o ator Babu Santana, que deixava claro que seu cabelo era um símbolo de resistência, com o pentezinho ali em cima, e eu pensava um pouco que não tinha como dizer que ele estava errado mas achava que meu caso era diferente, mas o meu cabelo foi um grande sinal de resistência e afirmação também. Se não para os outros, para mim.
A minha afirmação da identidade racial finalmente trouxe luz ao caminho que eu deveria seguir para entender toda a questão da auto-estima. Parece estranho falar disso, mas eu já fiz progressiva no cabelo. Sou uma pessoa vaidosa e tenho direito de ser, gosto de me sentir bonito e me frustro muito quando me sinto feio, não vou para um evento de qualquer jeito, gosto de botar uma roupa bonita e estilosa, gosto de arrumar muito bem meu cabelo, gosto até de passar maquiagem. Isso sempre me foi negado. Sempre fui considerado uma pessoa muito feia, era comum ser o menino mais feio da turma na escola, e ajudava bastante que eu era nerd então tinha muita dificuldade de lidar com as pessoas, de usar esses rótulos em meu favor como via outras pessoas mais descoladas que sofriam com o mesmo fazer. Nunca me animei, então, para ter qualquer tipo de prazer estético. Usava roupas porque eram úteis, raspava o cabelo ou deixava um corte social todo sem graça porque era útil, o máximo da representatividade que tive na escola foi usar boné, sempre usei boné, mas não tinha coragem de usar aba reta como era moda na periferia porque o boné tortinho cobria meu rosto e o aba reta o expunha. Cresci me achando horrível e tinha ódio do espelho, na minha vida adulta não conseguia ter relacionamentos e um dos motivos era não acreditar que era bonito, mesmo que a pessoa interessada dissesse isso abertamente. Eu sempre inventava uma prova de que ela estava mentindo ou me zoando. É inesquecível pra mim o episódio onde eu estava com meus familiares numa praia de Guaratuba e um palhaço, literalmente palhaço mesmo, decidiu que tinha o direito de chegar em mim e começar a gritar “Olha que menino feio!!! Olha como é horrível!!! Meu Deus do céu cara, você é MUITO feio!!!”, tem quem ache graça disso mas foi horrível e continua sendo horrível lembrar disso.
Quando comecei a fazer progressiva era em busca desse auto-cuidado, de encontrar essa “beleza” e, bem, digamos que eu estava procurando no lugar errado. Tinha sentimentos variados e até conflitantes me vendo no espelho com uma progressiva. Gostava muito da bagunça quando acordava, se eu desse uma brincada virava algo parecido com o visual-kei, dava para fazer franjas, eu poderia fingir que era emo, mas... era muito desequilibrado, era como se faltasse algo, me causava crises de identidade, sem contar que o cheiro do formol (era formol? acho que era) era horrível e ficava no cabelo por dias. Quando eu decidi deixar meu cabelo cacheado crescer eu tinha uma sensação diferente de me olhar no espelho, não porque era perfeito, mas porque eu sentia que... era parte de mim. Cabelo é, no final das contas, uma parte do corpo. Ele dessensibilizava com a progressiva, me causava sensações esquisitas de temperatura misturando o tempo com a química, com água, enquanto o cabelo cacheado é algo que você sente, que esquenta e esfria contigo, e é algo que você não precisa cortar desesperadamente porque uma coisa está virando outra, você corta como se fosse uma ovelha ao sentir que tem lã demais ali em cima e está ficando desnecessariamente pesado e quente então é hora de tosquiar. Mesmo porque o “sentir” de um cabelo cacheado não é o mesmo de um cabelo liso (ainda mais um falso liso, vindo de progressiva e relaxamento), o cabelo cacheado parece crescer pra dentro antes de crescer pra fora. Eu nunca tinha prestado atenção nisso, mas hoje em dia sentir o cabelo é muito importante pra mim. E mesmo quando vou me arrumar meu cabelo sempre ficará um pouco parecido, mas eu, que o manuseio, sei que cada momento mexendo ali dentro com produtos e água ou sem é especial, desembaraçar nós, puxar fios para fora, etc. Entendo um pouco melhor que a auto-estima não é só aquilo que você sente ao olhar pro espelho, tem a ver com a própria relação com o corpo também, por isso imagino que para as mulheres (e para homens que fazem em segredo para “não pegar mal”, eu falaria se fizesse, mas ainda não aprendi a vencer a preguiça para experimentar) deva ser um momento tão gostoso, íntimo e restaurador passar um creminho nas pernas, no rosto, entre outros.
Não vou dizer que me sinto uma pessoa maravilhosa, mas tenho os momentos onde penso “caramba, eu sou bonito”. Eu vinha trabalhando isso desde as progressivas, até por um tempo postava umas selfies e gostava de receber uns likes como forma de afirmação, não era frustrante porque poucos de pessoas importantes já bastavam, mas acho que não teria como sem vencer esse obstáculo da identidade racial. Hoje eu vejo que não tenho mais essa necessidade toda de selfies e likes, consigo me sentir bem só por mim mesmo. Ainda tenho meus problemas com o espelho e acho que sempre terei, mas encontrei um caminho decente, além de sentir uma liberdade estética enorme de usar roupas que combinam comigo.
Vejo também que essa minha “ousadia” de deixar o cabelo crescer fez com que outras pessoas o deixassem crescer também. Recentemente, deixei meu bigode e minha barba um pouco maiores, e vi que isso também criou uma influência positiva em outras pessoas ao meu redor. Pouco importa quem gosta ou não gosta, eu estou gostando, e só tirarei quando parar de gostar.
EU SOU DO PARQUE OURO VERDE
É claro que, desde que decidi assumir minha identidade negra, comecei a ver racismo em várias atitudes que anteriormente passavam despercebidas por mim, ou que eu encarava como piada. É claro que, podendo ler, eu também resolvi ler a obra de alguns autores antirracistas brasileiros. Chegou sim o momento onde encarei aqueles autores que mencionei mais acima, eu comecei pelo Pequeno Manual Antirracista da Djamila Ribeiro para participar de um debate no SESC Cadeião de Londrina, online por ser da época da pandemia, e percebi muita coisa, mas percebi também que era superficial e que precisaria me aprofundar um pouco mais. Foi aí que eu decidi ler a obra da Lélia Gonzalez e fiquei em choque com a atualidade de tudo aquilo que ela escreveu durante a ditadura, toda a sua postura, e até todos os seus embates com outras questões do Movimento Negro como o machismo dos homens que tentavam silenciar as mulheres lá dentro e a maneira como o capital tentava afagar os negros dando migalhas de representatividade nas propagandas de televisão. Foi uma série de identificações e confrontos que me deixaram atordoado, mas eu sabia que ela tinha razão e que ressoavam comigo. Também tive que lidar com a contradição de ler, praticamente sozinho, essas obras dos grandes centros urbanos, e saber que teria de transportá-las para a minha realidade, num centro urbano do interior de um Estado do Sul e formado basicamente de pessoas que mal terminaram seus êxodos rurais. Não que não exista possibilidade, e não que não exista nenhum movimento de esquerda em Londrina nem na minha cidade de origem que é Porecatu. Na verdade, dois dos mais importantes assentamentos do Movimento Sem Terra estão aqui e lá, e Porecatu deu mais de 50% dos votos para Luís Inácio Lula da Silva porque eles tiveram o “privilégio” de viver a ditadura militar como ela realmente era, ao contrário dos londrinenses médios.
A questão é que nem a pauta racial nem a pauta de classe chega na periferia londrinense, hoje vejo que éramos todos criados para viver por si e crescer na vida ignorando os nossos. As questões não são conectadas. Existe tráfico de drogas, mas tudo o que pensávamos era que o tráfico era o caminho mau e o trabalho era o caminho bom, e quem entrava para o tráfico deveria ser morto para não atrapalhar e não manchar a imagem daqueles que estavam lutando pelo bom caminho. Talvez, por vivermos entre nós e só entre nós, não tivéssemos sequer noção de que as pessoas fora daquele lugar não sofriam metade do que nós sofríamos para traçar esse “bom caminho”, e no fundo nós nunca chegávamos lá. Nem todos os meus colegas de classe entenderam a importância de entrar numa universidade por meio do FIES, do ProUni ou do SiSU, existem pessoas do meu ensino médio que fizeram Ciência Sem Fronteiras, são referência em áreas de ciências exatas e biológicas e conheceram toda a Europa, enquanto existem pessoas que saíram da escola e foram trabalhar de caixa de supermercado, de borracheiro, sem nem se dar a oportunidade de conhecer outras profissões que pagam mais e que trazem maior satisfação na vida. Mas acho que grande maioria tinha isso em comum, de estar sempre atento apenas à sua própria vida, ao seu próprio “vencer na vida”, embora eu tenha sido um dos piores e por isso possa ter passado despercebido pelos que pensavam diferente. Os católicos do meu bairro eram muito justiceiros sociais, mas eu sempre repudiei o catolicismo e só passei a prestar atenção nas pastorais durante a pandemia, onde vi os evangélicos virando as costas para o povo lutando apenas para abrir seus templos e os católicos sem problemas para abrir seus templos porque eles se tornaram abrigos de pessoas em situação de rua.
Mas nunca foi falado sobre raça, sempre foi aquele discurso abstrato e aparentemente vazio contra o racismo, do racismo como questão superada. Era isso que o governo tinha a oferecer às escolas no Dia da Consciência Negra, era muito insuficiente, só não perde para o momento atual onde o Dia da Consciência Negra passou a ser ignorado por todos e até hoje não significa nada pra Londrina. Nunca me trouxe identificação, nunca me despertou interesse e nunca falou muita coisa. Os alunos também não discutiam sobre isso, tudo o que fazíamos era cantar Racionais MC's entendendo muita coisa porque a periferia de São Paulo e a periferia de Londrina possuem suas muitas semelhanças, mas não entendendo que o componente racial tinha seu peso nisso tudo. Acho que éramos bons, de certa forma, de criticar o capitalismo, e isso se reflete muito nas letras do nosso próprio rap paranaense, do Thiagão & Os Kamikaze do Gueto, do Mano Fler, entre outros. Mas não sabíamos que deveríamos ser contundentes numa crítica ao racismo quando estávamos criticando o capitalismo. Nós sabíamos que existiam pessoas engravatadas contando nosso dinheiro enquanto lutávamos tanto pra ter o nosso emprego, mas só sabíamos criticar esse tipo de gente, não sabíamos que tínhamos o direito de criticar o morador do Centro e da Zona Sul antes do União da Vitória (ainda não existia Gleba Palhano na minha infância e pré-adolescência) porque eles não passavam metade do perrengue que a gente passava. Meu pai diz que minha vida foi muito fácil, e eu concordo que comecei a trabalhar aos 18 anos com algo que considero muito legal para “crescer na profissão” enquanto ele começou a trabalhar aos 10 em algo que ninguém gosta para pagar seu próprio material escolar, concordo com ele, sou muito grato pela vida que tive, mas não posso deixar de olhar para as pessoas que só começaram a trabalhar depois que se formaram, que estudaram nas melhores escolas, que comeram nos melhores restaurantes da cidade, vestiram as melhores roupas, tiveram os videogames da geração, e pensar “não somos iguais”. Eu sou apaixonado por arte, por música, comprei meu teclado por conta aos 18 anos e aprendi a tocar sozinho. Eu aprendi inglês sozinho vendo anime legendado e jogando videogame, o que me coloca como privilegiado nessa cidade, apesar desse privilégio vir do fato do meu pai ter conseguido uma bolsa integral para fazer faculdade de computação e feito não sei quantos bicos para comprar um computador em 2000, não fui bancado para fazer cursinho de inglês em lugar nenhum, bem como não fui bancado para fazer cursinho pré-vestibular.
Eu vi policiais e traficantes executando vizinhos meus por problema com droga, vi policial entrando em sala de aula e revistando todo mundo, dando tapa na cara de aluno que ele “já sabia” que estava envolvido com o tráfico (e sabia mesmo, ele estava), vi pessoas marcadas para o dia em que fariam 18 anos. E vi gente rindo e batendo palma para isso. Achava perturbador demais embora até pensasse que fosse correto às vezes, mas muitas pessoas que crescem na periferia gostam de aplaudir para que sejam “afastadas” desse tipo de gente aos olhares dos outros.
E aí, quando entrei no mercado de trabalho, eu conheci “os outros”. Não vou mentir, eu conhecia sim “os outros” por ter estudado numa escola de bairro mais bacana por todo o Ensino Fundamental – só estudei no meu bairro no Médio, porque disseram que eu era muito delinquente pra continuar lá. Minhas notas foram boas, embora eu tivesse um comportamento meio rebelde, que se fosse hoje vejo que seria encaminhado para algum psicólogo para ver algo sobre autismo antes de tomarem qualquer decisão relevante. Não sei o que significa “delinquente” –, mas existiam pessoas em situações melhores e piores que a minha e, embora eu nunca tenha reparado nisso na época, todos os “popstars” desejados pelas meninas eram brancos, descolados e riquinhos, embora isso tenha sido um julgamento coletivo e desconectado da intenção de todas as pessoas, o tal do “estrutural”, porque muitos deles eram meus amigos e excelentíssimas pessoas. Eu só torço para que eles tenham continuado excelentíssimas pessoas.
No mercado de trabalho as minhas gírias foram podadas.
Já eram um pouco pelos meus pais, porque pais periféricos fazem muito isso, eles demonizam mais do que os outros as coisas da periferia não porque acham isso horrível, mas para que você não sofra por isso lá na frente. Meus pais nunca acharam que droga era a pior coisa do mundo, mas sempre fomos ameaçados de expulsão de casa se descobrissem que usamos porque, o dia que a polícia nos visse mexendo com isso e convivendo com “pessoas que mexem com isso”, o que haveria para nós seria prisão ou cemitério. Até com meu cabelo foi um pouco assim: sou uma pessoa de cargo gerencial onde trabalho, ainda que tivesse 26 anos meu pai temia que eu seria excluído e eventualmente demitido com meu “cabelo novo” porque esse cabelo não era agradável para fazer reuniões, para fechar negócios, entre outros.
Bem, como estou tentando dizer, no mercado de trabalho as minhas gírias foram podadas. O mercado de trabalho é exatamente branco, é masculino e é branco. Tem jeito de se vestir, tem jeito de andar, tem jeito de falar, tem opiniões a concordar e opiniões a repudiar. Não me espanta as denúncias no Paraná sobre assédio eleitoral em 2022, me espanta a falta de denúncias sobre assédio eleitoral em 2018, porque você concordar ou discordar com certas coisas te fazem uma pessoa “marcada”. No mínimo marcada como louca, e o pessoal do TI desfruta um pouco desse privilégio, eles são todos um pouco doidos e ignorados, mas aí você tem que torcer para nunca ser nada além de programador. Quando chega a hora definitiva, como uma eleição, aí você tem que mostrar um pouco da sua “sanidade à direita” ou pode se tornar perigoso. Você não pode “falar que nem mano” no mercado de trabalho, não pode pensar como mano, tem que ouvir as opiniões ridículas que alguns patrões e gerentes têm sobre a periferia e ou ficar em silêncio ou dizer amém. E tudo tem limite. O dia que eu ouvi de um empresário em uma mesa de bar que “nós da Zona Norte deveríamos ter nossos títulos de eleitor confiscados” porque a nossa região dá muitos votos pra família Belinati eu imediatamente abandonei todos os meus ideais de direita, virou a chavinha na hora, foi muito fácil entender que essas pessoas não eram as minhas. E acho que não consegui eliminar totalmente meu vocabulário de estudante de escola de periferia ali pelos 2007 a 2010, voltimeia alguém me diz que falo engraçado ou tenho expressões engraçadas, mas sinto que, depois que entrei na faculdade, me desconectei do “meu bonde”, ouço alguns raps, funks e batalhas de rima londrinenses de vez em quando e vejo alguns documentários e tenho dificuldades de entender, fiquei no passado.
É estranho porque na época não valorizei isso, o que valorizava era pessoas nerds como eu, que curtiam anime, videogame, e isso os “nerds” dos meus locais de trabalho supriam, mas sempre tinha essa coisa minha diferente de todo mundo, que era o fato de que eu vinha da Zona Norte, eu vinha do Parque Ouro Verde. Eu conhecia Thiagão & Os Kamikaze do Gueto mesmo que contra minha vontade na época, e eu não imaginava que estava impresso tão forte nos meus passos, no meu jeito de falar e de pensar, porque cresci no meu apartamento meio protegido das maiores tragédias do bairro, só que... Estava em mim, está, sempre estará. Quanto mais eu me afasto desse lugar, trabalhando com gente de classe cada vez mais alta, me mudando para um apartamento na Gleba Palhano, mais eu percebo que sou uma cria escritinha do Parque Ouro Verde. Que acho estranho esse povo que xinga porteiro e não troca idéia com faxineiro, que se bobear é vizinho também, que sempre que é contrariado chama de “ditadura” e quer “democracia” pra falar as mais absurdas atrocidades, que acha que tem direito de dar de dedo na cara do açougueiro, do caixa do supermercado, do motoboy, do garçom. Sempre digo que muito do reacionarismo de periferia é por não entender as nuances do abismo entre eles e o centro (o tamanho entendemos desde criança), a classe média-alta, porque se entendessem, saberiam muito melhor se diferenciar desses.
Então, voltando aos trilhos originais da conversa, somos pouco conscientizados sobre a pauta racial e as nossas vidas. Nós temos pouca teoria sobre a consciência racial do Paraná, sobretudo do interior. Nós elegemos nossa primeira deputada federal negra, que também era uma das poucas pessoas negras na Câmara de Vereadores de Curitiba, junto com outro dos poucos deputados estaduais negros eleitos. Tudo o que temos é importado de fora, é de São Paulo, é do Rio de Janeiro, é de Pernambuco, é difícil se identificar em todos os pontos. Mas eu li e fiz o meu melhor para entender como essas coisas se conectam a mim, como a minha identidade racial é formada, o que tem de igual e o que tem de diferente, e continuo fazendo isso. Tornou-se questão importante me emancipar e emancipar os meus da branquitude. Tornou-se questão importante NUNCA demonizar meus pais por sua “criação bruta”, ao contrário de pais brancos que são brutos sabe-se-lá por qual razão e às vezes até tenha seus motivos também, porque eu descobri que nós, negros, somos demonizados pela nossa “agressividade”, pela nossa “loucura”, porque nós guardamos coisas por toda a vida e aí quando explodimos é “surto”, é prova de que somos agressivos mesmo. Meus pais não são nada agressivos, meus pais são pessoas com altíssima capacidade de diálogo, muito além do que existe por aí na sociedade, e meus pais não me fizeram tanta pressão para escolher um curso de faculdade porque eles eram “ruins” ou “capitalistas”, e sim porque sabiam que, se eu errasse, eu não teria a mesma chance que um branco.
Tive que trabalhar com 18 anos no segundo ano de faculdade e não foi trágico, foi um privilégio, porque muitos dos meus colegas só puderam entrar na faculdade se bancando como lojista, como caixa de supermercado, como garçonete. Uma bolsa por nota no vestibular bancou meu primeiro semestre, meus pais bancaram o FIES por dois semestres, e partir do quarto foi comigo mesmo. Muito obrigado Fernando Haddad e cia. É desse lugar que eu vim, não do lugar que é preferido numa entrevista de emprego, e sim do lugar que mesmo numa economia perfeita pode ser recusado por “não ter o perfil”. Tive que construir um personagem extremamente dócil, sábio e equilibrado para agradar as pessoas e não passar fome e isso nem me faz tanta diferença em maior parte do tempo, e que transformava seus próprios dilemas em maluquices e gracinhas para poder externá-los sem ser julgado como um bicho, mas fez da minha vida íntima um inferno, e me fez ter muito medo de me relacionar com as pessoas porque eu acreditei que era uma represa prestes a explodir e seria perigoso demais. Sem contar que já me aconteceu de retrucar uma menina branca e sua mãe se sentir no direito de dizer que chamaria a polícia. Enfim. Fico de coração partido vendo pretos demonizando seus pais, sem saber a dificuldade que eles têm carregando seus fardos, sem saber que estão tentando seu melhor, ao mesmo tempo em que sinto pena desses próprios pretos tendo que ser adultos antes da hora suportando esse fardo com seus pais. Ninguém tem culpa de nada, é tudo muito duro.
Foi meio mágico porque muitas dessas coisas eu encontrei nos livros de outros pretos. Me batia a dúvida “Será que estou exagerando? Será que eles passaram por isso, e eu não? Só estou fantasiando porque preciso de respostas?” mas hoje entendo que, se me identifiquei, é porque é verdade. Muitas coisas que eles passaram eu não passei, não me identifiquei e pronto. A vida seguiu. Se me vi ali, é porque estou ali. É muito duro ser preto, não sei se é pior sendo pardo mas acredito que não, tem sempre um gaslighting, uma voz dizendo “não, você está exagerando, você está sendo incoerente, você está mesmo errado”, dizendo “nada dessas coisas que você enxerga é racismo”, dizendo “racismo não existe, é incompetência sua mesmo”. Mas isso está documentado em mais lugares, eu não estou só. No Brasil, Lélia Gonzalez e Silvio Almeida, que são os que mais li, estão comigo – e mais gente estará, porque lerei muito mais, me envolverei muito mais, o ódio que senti vendo o racismo exposto nessa Copa do Mundo após a derrota do Brasil me motivou a retomar coisas que eu já tinha até deixado para segundo plano. Fora do Brasil, James Cone, Malcolm X e Martin Luther King Jr. estão comigo. Todos eles relataram muito do que sinto constantemente, todos eles me fazem não me sentir maluco, paranóico, percebendo o que percebo. Disse de ser pardo porque no meio evangélico existem muitos pretos de direita, meus parentes mesmo se enquadrariam nisso, e eles diriam “ué mas você nem é preto de verdade”, e é um pouco difícil de lidar com isso vindo deles. Já quando vem de brancos, já se tornou até bem fácil de lidar.
NA IGREJA
Muita coisa acontece na igreja, não é?
Nunca sofri um racismo explícito dentro de uma igreja evangélica, até porque seria bem difícil para eles se acontecesse, mas o discurso de supremacia branca se aflora nos detalhes. Se aflora no racismo recreativo, em todas as piadas que você se torna o cara que quebra os climas se não participar, e por muito tempo preferi não ser o cara que quebrou climas e fico triste comigo mesmo por isso. Se aflora em trazer pastores dos Estados Unidos para pregar no Brasil, mulheres que pregam maneiras de cuidar da família que só existe na família de quem tem empregada, babá, mesa de rico, cadeiras de rico, casa de rico, quarto de rico, acessórios de rico e por aí vai. Se aflora mais em ver pastores dizendo “Olha como não existe racismo aqui! Olha o tanto de negros aqui me assistindo!”, enquanto nas primeiras cadeiras estão os pastores e nenhum deles é negro. Se aflora nas pessoas querendo se reunir para discutir racismo e cristianismo e sendo silenciadas dizendo estão “permitindo o marxismo de entrar na igreja”. Se aflora na preferência pelas pessoas brancas de conseguirem cargos de influência na igreja e se acharem no direito de criticar, até mesmo como se fosse antibíblico, a postura de “favelado” de outras pessoas, as opiniões políticas de outras pessoas que não tiveram o privilégio de serem criadas no Centro, na Gleba ou até no Alphaville com papai e mamãe bancando tudo, e também no estranho fetiche que eles têm em dar cargos para os negros que expõem a opinião que eles querem ouvir. É negro, quer cargo na igreja? Faça que nem aquele rapaz lá da Fundação Palmares, fique postando que racismo não existe e é mimimi, ou que até existe mas os esquerdalhas são uns oportunistas que só se aproveitam disso, siga aquela farsante que foi no Brasil Paralelo uma vez falar que o Movimento Negro começou na direita, aí você ganha o cargo de chaveirinho de branco e todo mundo fica feliz. Não estou sendo duro com a igreja, não é a igreja evangélica que é assim, é a sociedade que é assim e a igreja evangélica só se submete a fazer igualzinho. Que pena para a luz do mundo, né?
Fui muito querido na igreja enquanto falava as coisas que todo mundo queria ouvir. Depois que parei com isso, fui convidado a muitas coisas das quais não quero falar aqui, e estou muito feliz com a minha volta ao anonimato. Só gostaria que fosse mais, que falassem um pouco menos de mim pelas costas, e me deixassem realmente em paz com a minha vidinha e as minhas humildes descobertas de teologias não-brancas.
ONDE ESTOU
Ainda assim, não me considero um militante nem nada do tipo.
Eu me descobri negro, isso foi tudo o que aconteceu. Não entrei para o Movimento Negro, não me filiei a nenhum partido político, não entrei para a mídia, não me tornei influencer. Eu só me descobri, só estou tentando lidar com tudo isso. Só estou tentando descobrir quem eu sou, o que quero ser, com o que me identifico, com o que não me identifico, quais brigas compro e quais não compro.
Eu não passo de um programador em uma empresa que me agrada, com fantasias de ser músico e escritor, vivendo uma vidinha confortável em um condomínio de apartamento na Gleba Palhano, que é algo que ninguém na minha família imaginava que seria possível 30 anos atrás. Não quero comprar uma briga política que pode custar meu emprego, sendo que a política brasileira é branca e masculina, e o político de esquerda também não tem muito interesse em me bancar caso minha militância comprometa minha vida financeira e profissional. Não é de todo mentira dizer que “a esquerda é oportunista com pautas raciais”, digo, não é que seja verdade, mas isso expressa um sentimento genuíno das pessoas pretas que se sentiram abandonadas pelo governo que prometeu salvar a periferia – não pode ser verdade porque a esquerda é muito mais o Movimento Negro, que comprou brigas com todos os governos, inclusive os do PT, do que o próprio PT, mas muitas pessoas entenderam dessa forma. Meu pai me ensinou que eu preciso ir atrás do meu, que ninguém vai atrás do meu pra mim, e isso infelizmente é verdade. Eu não pude me tornar artista porque meus pais não tiveram coragem de me deixar correr risco de morar embaixo da ponte, sem amparo nenhum, e a verdade é que eu gosto tanto de computadores quanto gosto de rock, me sentiria vazio sem programar, então é melhor priorizar quem paga minhas contas com consistência. Mas vou me tornar, um dia. Um bom artista, um bom escritor. Quem sabe aos 30, quem sabe aos 40, quem sabe aos 50. Tenho paciência.
Mas eu não passo disso. De uma vida em aberto com muitas descobertas. E, nesse momento, a descoberta mais importante, a que me destruiu e me salvou várias vezes durante esses anos, foi a racial. Porque não é só tragédia, não é só ver os outros e até você mesmo reproduzindo racismo e sentir dor, é aceitação. É firmeza em saber quem você é. É amar e respeitar seus gostos, sua trajetória, sua ancestralidade. É não deixar que os outros pisem em você, não deixar que os outros tentem te salvar de coisas que eles não fazem idéia do que é, não deixar que os outros inventem sentimentos para você sentir e ideias para você pensar. Tinha o costume de achar que o pensamento de todo mundo é melhor que o meu, não pelo exercício de humildade que costumo fazer agora em pensar que todos têm seus motivos para pensar como pensam, mas por simplesmente achar que minhas ideias eram pouco intelectuais, muito brutas, analfabetas, burras. Isso foi algo que a extrema direita soube muito bem manipular por um tempo, inclusive. Tinha o costume de endeusar pessoas que catalogam muito, sejam livros, sejam filmes, sejam músicas, e é claro que catalogar é muito legal, eu sou um grande catálogo de músicas asiáticas, européias e norte-americanas e até sinto falta de conhecer as músicas que minha mãe conhece e esconde de mim, mas eu não preciso disso. Isso foi o que meu pai mais tentou ensinar com seu jeito bruto, porque meu pai é uma pessoa que esteve em todas as camadas da sociedade, se não como atuante ao menos como espectador. Não é que meu pai despreze o Caetano Veloso, o Chico Buarque, o Carlos Drummond de Andrade, o Lô Borges, a Elis Regina, Harumi Murakami, Paulo Coelho, William Shakespeare, etc., é só que ele faz esse exercício de afirmação constantemente porque ele sempre soube, mesmo sem saber dar a isso o nome de “racismo”, que brancos não costumam se contentar em serem bons artistas, fazerem boas críticas à sociedade, travarem bons combates políticos, eles têm uma leve inclinação a acharem que seu jeito de viver é melhor, mais civilizado e superior esteticamente ao nosso, e isso meu pai não aceita. Meu pai aceitou por muitos anos, como eu aceitei, mas em algum momento da vida ele cansou de aceitar e se sentir um lixo, e reconhecer minha identidade racial me fez aprender a não aceitar também, muitos anos mais cedo do que meu pai.
Eu só estou aqui, sendo e existindo, um pouco mais do que antes, se Deus quiser um pouco menos do que no futuro.
E acho que precisava escrever sobre isso, porque nunca escrevi. Só rascunho e rascunho e rascunho e rascunho, falo coisas no Twitter, mas antigamente tinha costume de escrever e deixar o Twitter só como uma ponta de iceberg onde as pessoas poderiam aprofundar mais em outro lugar e elas estavam sem isso. Bem, agora existe alguma coisa, qualquer coisa.