Um baile de máscaras
Sábado, dia 12 de julho de 2025. Foi um dia bastante feliz, bastante ansioso, bastante tudo. Acho que boa parte das tamancas já estavam separadas, só faltavam os... detalhes. Acho. Posso estar enganada.
Outro motivo pelo qual arrumei uma boa parte das malas no dia anterior é que eu tinha uma festa de casamento pra ir. Sim, pegaríamos ônibus meia-noite e tínhamos uma festa de casamento pra ir. Por muita sorte essa festa não começava tão tarde, então não era uma grande preocupação conciliar esses dois. Era até conveniente, não? Encher o bucho de comida de casamento sem gastar nada (mentira, claro que ficaria mais barato comprar um lanche do que dar presente de casamento. Mas vocês entenderam), uma comida boa, à vontade. Maravilha.
Tudo isso conciliando essa enorme ansiedade e euforia sobre a viagem pro Japão. Estavam lá familiares da minha esposa, já que o noivo era primo dela, bem como algumas pessoas da antiga igreja que eu frequentava porque por um tempo todos nós frequentávamos lá. Alguns deles eram jovens com quem convivi por muito tempo, digamos que semanalmente, em algumas ocasiões quase diariamente, seja porque eu ia muito na igreja na minha época mais fervorosa quanto porque uma das pessoas era minha colega de seminário.
Um casal de jovens já tinha um filho, o outro casal estava tentando faz tempo, e nós... bem, não vou dizer que não queremos ter filhos, mas prometi que só teria um filho depois de fazer a viagem pro Japão e estava falando muito sério. Na igreja as pessoas têm essa mania de namorar rápido, casar rápido e ter filho rápido. O passo do namoro pro casamento é por motivos bem engraçados (poder parar de fingir que não estão fazendo sexo), mas o passo de ter filho rápido... eu sinceramente não entendo. Digo, tem aquela lógica de certa forma política da igreja evangélica de expansão populacional, ou seja, enquanto as pessoas estão parando de ter filhos, os evangélicos continuam tendo mais e mais filhos e daqui a pouco todas as pessoas do ocidente serão evangélicas - o que não vai acontecer pelo simples fato de que não tem filho de evangélico que suporte ser evangélico. Mas motivo pessoal, pessoal assim? Não entendo não.
Queria falar pra todo mundo que estava começando uma saga até o Japão em poucas horas então, assim que pude, eu o fiz. Acho que estava muito nítida a minha felicidade naquele dia. Estava falando bastante, contando bastante piada, falando de assunto aleatório, com palavra pros noivos, me divertindo bem na festa. Comi docinho até não poder mais.
Mas, quando nos despedimos, ainda cedo, já que eu estava com medo de acontecer qualquer coisa que me impedisse de pegar aquele ônibus pra São Paulo, me veio um pensamento que compartilhei com a minha esposa e sintetizou um sentimento que sempre tive. Um sentimento que só fez sentido depois que me assumi e me entendi, mas sempre esteve lá, sempre foi esse fantasma que devorou todas as minhas relações sociais. E que só foi embora depois que me assumi, me entendi e fiz algumas coisinhas mais.
Não é triste saber que, se essas pessoas soubessem que eu sou uma travesti, elas não teriam o mesmo relacionamento comigo? Aliás, eu nem estaria aqui nessa festa? Nem teria sido convidada?
Um pensamento que me atormentava um pouco sobre a viagem era que não sairíamos em fotos em redes sociais. Porque, assim, tudo ao meu redor é muito evangélico e/ou muito conservador. Isso inclui as famílias. Os amigos e inimigos. Tudo. Eu já tinha escolhido muito bem as pessoas que não gostaria que soubessem e essa lista é enorme, o meu grande medo eram meus pais porque... e se eles descobrissem de alguma forma? E se eles já soubessem desde o início? E o pensamento das fotos me atormentava não porque me faria muita falta, já que tenho meu Instagram privado, mas porque eu tinha medo que as pessoas fossem pensar coisas ao ver várias fotos no Japão e eu não aparecendo em nenhuma.
É muito doloroso pensar que eu passei tanto tempo da minha vida morrendo de medo de ser desmascarada pelos outros por algo que eu nem sabia o que era. Não uma "síndrome do impostor" com relação a, sei lá, algum talento meu, alguma qualidade minha, mas com relação a toda minha vida. A minha vida toda tratei a identidade como uma sustentação que eu precisava manter, eu tentava me sentir tranquila e conformada de viver me sentindo constantemente segurando máscaras porque, no meu entendimento, todo mundo estava fazendo isso. Eu tinha toda uma filosofia pra explicar o mundo como um baile de máscaras e, assim, não é que eu estivesse errada ao todo, mas existe um grau de sintonia com a realidade que passei a atingir e não atingia antes. Talvez as pessoas estejam usando máscaras sim mas elas escolhem qual máscara usar (ou não escolhem? Aí não é mais problema meu). A transgeneridade é o único caminho pelo qual eu mesma posso escolher a minha máscara e dizer ao mundo que essa é minha máscara. Na cisgeneridade é como se o mundo me desse a máscara e me obrigasse a usar mesmo que eu não queira, que não dê conta de sustentá-la, que me sinta inadequada, que todo mundo está me olhando dançar a música do jeito errado.
O que estou dizendo agora é até um pouco invasivo quando penso no dia 12 de julho de 2025, porque de lá pra cá eu entendi muita coisa. Lá eu já dava conta me sentir bem melhor com relação a mim mesma, mas ainda não dava conta de lidar com o fato de que construí uma vida inteira com essa máscara errada, dançando e olhando pros cantos pra ver se estavam percebendo que não estava certo. Eu me culpava muito por isso, achava que devia aos outros a "verdade", que defraudei o mundo inteiro e um dia precisaria prestar contas disso. Muito aconteceu de lá pra cá para que eu entendesse que não tenho dívida alguma com a sociedade por um problema que ela inventou e empurrou pra mim.
Ah, é. Ah, sim. Não embarcamos pra São Paulo no dia 12. Eu peguei a passagem mais barata que encontrei, com muita antecedência, de uma linha que era meio pinga-pinga e marcava pra chegar meia-noite mas às vezes chegava até uma da manhã. Bem, isso é história pro dia 13.